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Categoria: Política

18 de Agosto, 2013 David Ferreira

Hóstia dominical – IX

Só um Estado laico pode proporcionar uma condição de verdadeira e
diversificada liberdade religiosa. Por isso, a não ser que pretendam secretamente
que a sua religião se superiorize a todas as outras, não se percebe por que
alguns teimam em cuspir no prato que sustém sem vazamento as conjeturas de que
se alimentam.

14 de Agosto, 2013 Carlos Esperança

Espanha – Um país e dois Varelas

O cardeal Antonio María Rouco Varela, bispo de Madrid, um dos mais reacionários de Espanha e do mundo, abriu feridas insanáveis com a ajuda de Ratzinger, ao canonizar e beatificar, em doses industriais, defuntos admiradores de Franco.

Foi um ato deliberado contra a democracia e, na pressa, nem todos eram aconselháveis para os altares apesar da generosidade com que Bento XVI elevou fascistas à santidade.

Podia ter-se ficado por Escrivà, a quem devia favores e dinheiro, apesar da conivência com a ditadura e o ditador, e poupado a Espanha ao reavivar de memórias dolorosas de quem viveu horrores praticados dos dois lados da guerra civil.

Depois apareceu outro Varela, a quem também não faltam vestes talares e a nostalgia do ditador cruel que, depois de ganhar a guerra, nunca mais perdeu o espírito sanguinário.

O juiz de instrução do Supremo Tribunal, Luciano Varela, levou a julgamento Baltasar Garzón, por ter decidido investigar os desaparecidos da guerra civil e do franquismo, ‘violando a lei de amnistia geral de 1977’. Faltava este Varela para evitar que os crimes de um dos mais sanguinários ditadores do século passado fossem conhecidos com rigor.

Exultaram os franquistas, incluindo a maioria do clero, que assistiram à democratização de Espanha, convictos de que Franco era o enviado da providência divina. O fascismo ainda vive nas Forças Armadas, nos Tribunais e nas Universidades que permaneceram intactas, tal como a Igreja católica, e se mantêm redutos sólidos do fascismo espanhol.

Quando o juiz Baltasar Garzón, certo de que os crimes contra a humanidade não deviam prescrever, resolveu exumar os crimes da Guerra Civil, com a mesma coragem com que perseguiu os da ETA, viraram-se contra si os carrascos que logo rejubilaram.

O julgamento de Baltazar Garzón foi um um libelo contra a democracia e o direito dos descendentes das vítimas à verdade, a vingança mesquinha contra um juiz que, ao ser afastado, perdeu o direito à proteção policial e ficou sujeito às balas dos inimigos.

Era talvez isso que os algozes queriam. Bastou ao Varela de toga poder ter feito o que o Varela de mitra não conseguiu. Nem o escândalo internacional, nem a indignação dos descendentes das vítimas, nem a estupefação de magistrados democratas o demoveu. O ódio velho não cansa.

Hoje, com Baltazar Garzón irradiado, a lei da Memória Histórica beneficia a proteção dos carrascos que executaram milhares de espanhóis por razões ideológicas, depois de terem derrubado a República sufragada pelo voto.

Em Espanha, com as conivências conhecidas, ficam impunes os crimes do franquismo. Nem sequer se podem investigar para que a História os registe.

9 de Agosto, 2013 Carlos Esperança

O desafio à laicidade permanece impune ou é estimulado

Em novembro de 2005 eclodiu uma insurreição nos bairros periféricos de Paris que abrasou a França e contagiou a Europa. Foi um fenómeno assustador. A conjuntura económica, a segregação agravada pelo comunitarismo e o desemprego foram o húmus que alimentou a rebelião. Surpreende como, tão depressa, se esqueceu a insurreição.

Foi nesse caldo de cultura que explodiu a violência e o ímpeto destruidor que espantou os franceses e assustou a Europa, há quase oito anos.

As causas permaneceram e agravaram-se sem que uma resposta se vislumbre em França ou no resto da Europa. Enquanto as soluções tardam, os pescadores de águas turvas não deixaram de aproveitar-se do sobressalto e explorar o medo, o racismo e a xenofobia.

Curiosamente ninguém pareceu dar-se conta de que nos bairros suburbanos numerosos imãs pregam o ódio aos infiéis, acicatam as jovens a desafiar, com o véu, a escola laica e procuram ganhar influência para substituir a escola pública por madraças.

Um pouco por todo o lado é o ódio à laicidade que desabrocha. Parece que o islão e o catolicismo se concertaram na desforra de que o clero francês parecia ter abdicado.
Por coincidência os tremendos desacatos aconteceram a um mês do centenário da lei da separação da Igreja e do Estado que se comemorou no dia 10 de Dezembro desse ano.

Afirma-se que a paz social se obtém com apoio do clero, cúmplice da onda de violência que insiste em acicatar nas mesquitas, madraças e canais televisivos onde debita o Corão.

A resposta tem de ser policial e nunca, absolutamente nunca, se deve transigir na defesa do Estado de Direito e no carácter laico que preserva o pluralismo e contém os ímpetos prosélitos de uma civilização decadente que procura na fé o lenitivo para o seu estertor.

Não foi o modelo francês de integração que fracassou – como se disse –, foi a tibieza na sua defesa, a hesitação no seu aprofundamento e a insuficiência da sua aplicação.

Desistir do carácter intransigentemente laico do Estado é comprar a paz a curto prazo e fomentar a guerra no futuro. Confiar aos clérigos a defesa da tranquilidade pública é dar aos transgressores os meios para subverter a lei e comprometer a liberdade. Mudar de paradigma é estimular o desafio às instituições e enfraquecer a democracia.

Em Portugal, este Governo aposta em abrir as portas à subvenção do ensino privado. Na sua cegueira ideológica abdica do ensino laico e demite-se da obrigação constitucional de preservar o ensino público e defender a sua neutralidade confessional. É uma razão acrescida para, em nome da República, combatermos a capitulação do Estado que o PR e o PM promovem, abandonando às sotainas a formação cívica dos jovens portugueses.

6 de Agosto, 2013 Carlos Esperança

O laicismo e o ateísmo ao serviço da democracia

O Laicismo é uma exigência democrática e o ateísmo uma regra higiénica

[A discriminação religiosa é inaceitável, incluindo a positiva]

O Estado não é o notário que possa certificar o carácter sagrado de um livro. Distinguir um é excluir os outros, eleger é também proscrever. Sagrado é o livre pensamento e o direito de perscrutar a própria consciência.

Se o Estado considerasse sagrada a Bíblia, por exemplo, teria de reconhecer aos outros livros, onde as religiões se fundamentam, o mesmo carácter, igual respeito, idêntico grau de veracidade. E esses livros não apenas se excluem entre si, como as religiões, que deles se reclamam, se digladiam mutuamente.

O Estado é obrigado a aceitar os crentes sem ter de aprovar as crenças. Não pode privilegiar um credo, não deve conceder um tratamento diferenciado. O ateísmo é, no mínimo, tão respeitável como qualquer religião.

A Bíblia é um livro respeitável, tal como o Corão ou a Tora. Mas, havendo quem os leve a sério e se sinta obrigado a impor as suas prescrições, é preciso travar o proselitismo porque colide com os princípios humanistas da democracia. Doutro modo os homens ficam reféns da vontade de Deus, interpretada pelos profissionais da fé.

A paz entre os povos não se alcança pelo armistício entre as várias religiões mas pela perda da sua importância, pela libertação da sua influência, pelo afastamento dos seus clérigos da esfera do poder civil. Quanto mais laico é um Estado mais livres são os seus cidadãos.

44 hectares de sotainas procuram amordaçar a humanidade a partir de Roma. Procuraram sempre. Em Israel a fúria insensata dos judeus ortodoxos, que insistem em considerar-se eleitos, desrespeitam os palestinianos e negam-lhes o direito a uma pátria. Os adeptos de Maomé não desistem de destruir os infiéis, em geral, e o grande Satã, em particular. Que sucederia se os homens livres deixassem acorrentar-se à onda demencial que grassa pelas sinagogas, mesquitas e igrejas, onde se prega o ódio e se promete o paraíso a quem combate os inimigos? O ateísmo não persegue os crentes mas as religiões esmeram-se a castigar por igual ateus e crentes de religiões concorrentes.

As religiões enjeitam o pluralismo, acoimam de heresia o livre pensamento, odeiam a diferença. Mantêm uma vocação totalitária que só a secularização das sociedades pode refrear. Se hoje a exótica obstinação suicida do islamismo se nos afigura mais exuberante é porque esquecemos o proselitismo com que outras confissões ensanguentaram a humanidade. O espírito libertador da Revolução francesa não nasceu nas sacristias.

Não podemos enjeitar os princípios humanistas para reabilitar as religiões que os combateram ou contra as quais se afirmaram. Deus não vale a vida de um só homem e todos os dias há quem morra e quem mate em nome dele. Impor a religião é um anacronismo, um ato de intolerância, uma violência. Os valores morais não são apanágio das religiões nem fruto da tradição eclesiástica.

O paradigma das sociedades livres terá de ser a tolerância e não a fé. Os ateus tolerantes têm um papel pedagógico a desempenhar.

A tolerância exclui, todavia, o relativismo e afirma-se no distanciamento das religiões. Os ateus não se diluem nem renunciam aos princípios. Proclamam-nos para abrir os caminhos que libertam a humanidade da escravidão religiosa ou ajudam a mitigar o potencial de violência das religiões.

Não podemos ser arautos dos milagres que o mais abjeto dos patifes é capaz de produzir quando a sua canonização convém à santa mafia que em Roma se opõe ao progresso da humanidade. Em nome do pragmatismo não podemos renunciar aos princípios. O poder não dispensa princípios e só estes justificam o empenho no seu exercício.

A fé é inimiga da razão. A água benta não se torna potável. O incenso agride a pituitária dos homens livres. Os sacramentos não são o instrumento dialético que transforme os homens mas a mezinha que domestica o intelecto.

A liberdade, a igualdade e a fraternidade são princípios que as igrejas combateram e combatem e que se conquistaram na luta contra o clero. Pio IX achou que a Igreja era inconciliável com a liberdade e a democracia. Acabou a fazer um milagre e a ser beatificado. Falta-lhe outro milagre para concluir a carreira de santo a que a santidade de turno (JP2) o quer destinar.

Aceitar a promiscuidade religiosa no Estado é desonrar a ética republicana. Consentir outra hierarquia que não seja a que os povos livremente sufragam é transigir com poderes antidemocráticos que as teocracias promovem.

A luta do laicismo, a que os ateus se associam, é pela paz, ao serviço do pluralismo e do livre pensamento. Não pode haver na humanidade reservas territoriais exclusivas de um credo, de uma filosofia, de uma forma única de pensar. Teremos de ser o fermento da mais ampla tolerância com a mais firme das convicções.

Não há hoje em Portugal perseguições anticlericais. Há, isso sim, uma carência de pudor republicano, uma capitulação dos homens livres perante as sotainas, uma demissão face às investidas clericais em curso. Quem se habituou a viver de pé não quer morrer de joelhos. A genuflexão é um ato indigno de homens livres.

Na podridão da fé há de florir a razão.

Temos de ser dignos do exemplo dos que nos guiaram nos caminhos do laicismo e nos preveniram contra a lepra que dos confessionários e dos púlpitos corrói o tecido moral das sociedades. As “causas da decadência dos povos peninsulares” não foram ainda erradicadas e nós não podemos desistir de o fazer.

Alto à fé para ouvir a razão. Rezar é a forma mais fácil de não pensar. Fim a Deus, em nome da paz. E da liberdade. E da igualdade. E da fraternidade.

P.S. – Não me revejo numa qualquer derrapagem mística a caminho da sacristia. Se a idade ou a moleza das convicções leva alguns à regressão cultural, de que a inteligência e a honra os haviam emancipado, espero, no que me diz respeito, que a coerência me acompanhe ou, caso contrário, a demência seja diagnosticada a tempo, para poupar um exemplo deplorável aos outros e um fim vergonhoso a mim próprio.

 

29 de Julho, 2013 Carlos Esperança

O papa Francisco defende a “laicidade do Estado”

O papa Francisco surpreendeu claramente ao defender o Estado secular: “a coexistência pacífica entre as diferentes religiões fica beneficiada pelo estado secular, que, sem assumir como própria, nenhuma posição confessional, respeita e valoriza a presença do fator religioso na sociedade “.

Como se conciliam tais palavras, que admito sinceras, com o que se passa em Portugal:

– Isenções de impostos de que beneficia a Igreja católica Apostólica Romana (ICAR);
– Pagamento pelo Estado dos capelães militares, hospitalares e prisionais;
– Existência de uma disciplina de EMRC;
– Contratação de professores da EMRC, livremente nomeados e exonerados por bispos;
– Presença de cavalos, músicos e militares nas procissões e em outros espetáculos pios;
– Profusão da iconografia católica nas paredes dos edifícios públicos;
– Presença de sotainas em cerimónias do Estado;
– Designação pia de hospitais quando não há uma só Igreja com nome de políticos;
– Com restrições orçamentais, uma embaixada exclusiva para o bairro do Vaticano;
– Etc., etc., etc..

27 de Julho, 2013 Carlos Esperança

Para onde vai o S.N.S.?

A crescente transferência dos serviços sociais para domínios do chamado sector social – Misericórdias e IPSSs – ocupados pela Igreja católica, revela a irreprimível tendência de substituir a solidariedade pela caridade e de reduzir direitos humanos à vontade divina, discricionariamente administrada pelos bispos católicos.

O desmantelamento do Estado social leva ao regresso do poder clerical e ao retorno do status quo salazarista. À medida que a salvação da alma se torna cada vez mais uma não preocupação, as necessidades do corpo são progressivamente confiadas aos prosélitos da fé.

Não admira a ovação dispensada aos governantes que gravitam em torno de Cavaco, e a este, quando foram, em bando, prestar vassalagem ao novo patriarca de Lisboa.

Os portugueses perdem um módico de segurança e dignidade, que era função do Estado assegurar, e são entregues como mercadoria pia ao arbítrio das sacristias e a instituições privilegiadas pelos detentores do poder político.

A religião católica deixou de ser um assunto particular que cabe ao Estado respeitar, tal como todas as outras associações legais, e passa a parte integrante, sem se saber onde começa o poder das sotainas e termina o dos agentes do Estado.

Vamos por mau caminho. Querem impor-nos o Céu fazendo-nos descer ao Inferno.

25 de Julho, 2013 Carlos Esperança

Os fiéis defuntos e os cadernos eleitorais

Quando as doces catequistas da minha infância me iniciaram no ódio aos hereges, ateus, maçons, comunistas e judeus, ensinaram-me igualmente a rezar pelos fiéis defuntos.

Cedo me tornei o melhor aluno da catequese, qualidade a que não seriam alheias as três refeições diárias e o inevitável lanche de que não beneficiavam os meus colegas que iam descalços à catequese e se referiam às barrigadas de fome, nos dias piores.

Talvez por isso, eu era mais sensível aos horrores do Inferno, ao abandono das almas do Purgatório, às delícias do Paraíso e a outras lucubrações metafísicas. A fome e o frio de outros garotos tornavam-nos indiferentes. Não entendia a necessidade da missa para os defuntos que já gozassem o Paraíso ou para quem penasse no Inferno, dada a ausência de trânsito entre os dois destinos, mas as catequistas diziam que, na dúvida, devíamos rezar por todos. E todos rezávamos, eu e os que, descalços e com fome, tiritavam nas pedras da igreja, entre o altar e o transepto, nas noites frias de inverno.

Sempre pensei, apesar de ser em novembro e no dia 2 a missa que lhes era consagrada, que fiéis defuntos fossem os mortos irrecuperáveis, os que não trocavam a defunção por uma ressurreição, salvo no dia de Juízo Final, quando no Vale de Josafat, regressado à Terra, viesse Cristo julgar os vivos e os mortos, como o credo romano ensinava.

Mais tarde, quando acompanhava a minha mãe aos atos eleitorais, passei a ter uma outra interpretação dos fiéis defuntos, julgando que eram aqueles mortos que, sem abdicarem da defunção, eram convocados pelo presidente da mesa eleitoral para votarem na lista da União Nacional quando, à leitura do nome o presidente da mesa se benzia enquanto o secretário introduzia o respetivo voto na urna. Eram, de facto, defuntos fiéis a Salazar. Nem a morte os impedia do cumprimento do dever cívico na única lista a sufrágio.

Depois dos catorze anos, perdido o medo do Inferno e o interesse pelo Paraíso, alheado da fé e da liturgia, deixei de pensar nos fiéis defuntos, mesmo quando a opção ateísta se impôs. Só voltei a pensar nos fiéis defuntos, há poucos anos, quando soube do interesse autárquico por eles.

Os fiéis defuntos adicionam 5% do ordenado do PR ao de vários edis e deles dependem as dotações orçamentais das juntas de freguesia e o nível do salário dos seus elementos. Sem a sua persistente permanência nos cadernos eleitorais, e nos censos populacionais, eram muitos os que só tinham a perder e apenas beneficiava o erário público que, por ser público, serve para benefício privado.

Os fiéis defuntos merecem que as associações autárquicas lhes mandem rezar a missa.

Coimbra, 25-07-2013 – Carlos Esperança

15 de Julho, 2013 David Ferreira

Quando os cães se calam

Não, hoje prometo não açoitar demasiado a abominável lambisgoia de sacristia que deambula existencialmente entre a base do altar e a pia de água benta, num puro reflexo condicionado. Com o excesso de calor, a consistência das neves vai-se derretendo aos poucos até à desidratação mental.

No seu sermão hebdomadário, o luminar abominável translada o seu paliativo fluxo salivar, que o aroma a hóstia faz efervescer, para a língua afiada dos cães raivosos, esses indigentes rafeiros que o infortúnio permitiu multiplicar no anonimato das tabernas, entre minis sempre poucas, dietéticos pires de tremoços e interjeições catárticas endereçadas aos políticos alternantes e seus respetivos familiares. Segundo o abominoso escriba, estes canídeos excedem largamente em produção de perdigotos o que lhes falta em armazenamento de grãos de sabedoria.

O abominável não convive bem com quem se manifesta desagradado pelas miseráveis condições económicas em que nos encontramos, muito à semelhança de alguns Cardeais da nossa praça. Tanto, que vai ao cúmulo de escrever um artigo onde critica o crítico comum. Não o crítico credenciado, o avençado dos Órgãos de Manipulação Social, mas o crítico comum, o Zé da esquina, a Maria do canto, os que falam muito acerca de tudo sem perceberem um pouco acerca de coisa alguma.

Reconheço que ainda tive uma réstia de esperança de ler um comentário da sua parte, por muito lacônico que fosse, ao Reality Show encenado pelas elites governamentais durante a tomada de posse do novo Cardeal patriarca de Lisboa, onde as palmas e as luzes ofuscaram literalmente a propalada doutrina da igualdade entre os homens e do amor aos pobres. Os vendilhões do templo anteciparam-se à chegada de Sua Eminência Reverendíssima, não montado em burro, mas em topo de gama (há que acompanhar os tempos) e montaram um verdadeiro espetáculo de auto veneração a que não faltou a merecida benzedura. Mas não. Não se morde a mão que nos alimenta.

Diz então o soporífero opinante que “Quanto menos se sabe de um assunto, mais se fala dele; e a veemência cresce com a incerteza e a insegurança”. Diz e eu não sei o que dizer à laia de comentário. E continua, estimulado por anos de dedicação extremosa aos dois poderes que adula: “Quando alguém sofre, para mais injustamente, as suas palavras ganham peso especial. Por isso os maiores disparates passam por sabedoria na boca de vítimas.” Zzzzzz…

Acordei já no fim do ominoso artigo ao som de uns longínquos e acanhados latidos: “Nos momentos difíceis, as pessoas sentem uma irreprimível necessidade de falar, normalmente com mais veemência do que juízo. A vantagem desta compulsiva ânsia de dizer disparates é que cão que ladra não morde.”

Foi nesse momento que tive uma epifania! Ouvi bem ouvido, com estes olhos que bem leram o que li, um grito de angústia a cruzar a tarde soalheira:

– Tirem-me os pregos! Tirem-me os pregos!

8 de Julho, 2013 Carlos Esperança

D. Manuel III e a sé de Lisboa

Começou mal a patriarcar a sé de Lisboa o Sr. D. Manuel III, da dinastia dos Manuéis. A missa era a peça de abertura do espetáculo pio que lhe cabia abrilhantar no coliseu da fé – o Mosteiro dos Jerónimos. Bastavam os pios funcionários de Deus a brilhar nas vestes femininas, com que têm o hábito de se travestir, para transmitirem o colorido exótico de que a missa precisava para refulgir na televisão a cores.

O paradoxo esteve na assistência. Eram restos do governo morto, com um presidente em estado terminal. Eram primeiras figuras do Estado laico a tornarem-se as últimas de um regime que teimam em inumar. Eram homens e mulheres que juraram respeitar a CRP, a pôr as mãos, a fazer flexões a toque de campainha, a balbuciar orações ao ritmo da peça, de joelhos, como apraz à fé, e de rastos como gostam os padres e se destrói a laicidade e a honra.

Alguns, de olhos vagos e esgares medonhos, afocinharam junto à patena que protegia o cálice donde saíram hóstias transubstanciadas por sinais cabalísticos do último Manuel, sem que o alegado sangue se visse a pingar da comissura dos beiços ou se adivinhasse a carne a errar pelo aparelho digestivo e a fazer o trânsito intestinal.

O Manuel e acompanhantes foram recebidos com palmas. Foi a primeira vez, depois de tanto tempo, que insultos deram lugar aos aplausos, no ambiente lúgubre que a luz das velas tornava mais tétrico. Quem desconheça os hábitos canónicos há de ter pensado que a joia arquitetónica do templo se convertera numa casa de alterne e que a estrela do espetáculo era a primeira bailarina.

Não foram os incréus que desonraram o espetáculo pífio, foi o bando subserviente que, ao prestar vassalagem a uma religião particular, cobriu de opróbrio o Estado e a Igreja.

À falta de colunas vertebrais salvaram-se as colunas de pedra do esplendor manuelino, a ossatura da joia arquitetónica que, no espetáculo de abertura do novo gerente da Sé de Lisboa, foi convertida num circo para arlequins mediáticos.