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Categoria: Literatura

28 de Outubro, 2009 Raul Pereira

Momento de poesia

A boa e descansada vida que levam os nossos frades-pios, digna de inveja por todas as considerações

Frade


Desde que nasce o sol até que é posto

Governa o lavrador o curvo arado,

E de anos o soldado carregado

Peleja, quer por força, quer por gosto:


Cristalino suor alaga o rosto

Do barqueiro, do remo calejado;

Do cascavel ao dente envenenado

Anda o rude algodista sempre exposto:


Trabalha o pobre desde a tenra idade;

O destro pescador lanços sacode

Para escapar da fome à atrocidade;


Todos trabalham, pois que ninguém pode

Comer sem trabalhar; somente o frade

Come, bebe, descansa e depois fode.


Antologia poética de António Lobo de Carvalho, poeta satírico vimaranense do séc. XVIII.

[via Torre dos Cães, há muito inactivo, para mal dos nossos pecados]

2 de Outubro, 2009 Carlos Esperança

Uma mulher é que não… (Crónica)

Quando a ditadura e a ICAR viviam em união de facto

Em 1962, Manuel da Silva Mendes, era Director Escolar interino do distrito de Castelo Branco, substituindo nas funções Liberato de Oliveira, de quem era adjunto, nomeado presidente da Câmara da cidade.

Foi como director que se deslocou à Covilhã para intimar os 45 professores do ensino primário, previamente convocados, a receberem o Sr. Presidente da República, com os alunos, num determinado dia em que Américo Tomás visitaria a cidade.

Silva Mendes tinha voz de falsete e pretensões humoristas: “Claro que os senhores professores estão dispensados de comparecer, se tiverem duas pernas partidas, com uma perna sã e uma muleta estarão presentes”. Perguntei-lhe, com mais insensatez do que coragem, se era ordem ou pedido, ao que o biltre me intimou a explicar a pergunta. Sem possibilidade de recuo, disse-lhe que, se era ordem, teria de a formalizar por escrito, mas, se era pedido, o declinava. Foram grandes o silêncio e o pasmo naquela sala, ante a vigorosa admoestação que precedeu o rol de qualidades que atribuiu ao chefe de Estado, qualidades que o Director interino foi eloquente a sumariar apesar da total ausência de mostras e do excesso de provas de sinal contrário. Terminou com ameaças, irado, a mandar-me rapar o bigode, perante 44 professores constrangidos e assustados.

No dia aprazado, salvei a honra recusando vassalagem ao biltre salazarista que viajava, vestido de almirante, a cortar fitas, improvisar discursos e maltratar a gramática. Defendi o bigode, apesar da frequência com que o Director interino passou a visitar-me e do reiterado argumento de que o adorno piloso dava mau exemplo aos alunos. Repetia-lhe que era improvável que crianças de 7 ou 8 anos deixassem crescer bigode, mas o que doía ao inveterado fascista era a certeza da minha antipatia pela ditadura que ele estremecia, as relações com opositores ao regime e a renúncia a dar a aula de Religião até aparecer um padre para me substituir.

Ainda hoje sinto o abraço da mãe de um aluno a agradecer-me, com lágrimas, por lhe ter poupado o filho à recepção ao Tomás que era odiado pelos operários têxteis dos Penedos Altos, Borralheira e Lameirão, donde provinham os meus alunos.

Nos dois anos lectivos, 1961/62 e 1962/63, coleccionei numerosos amigos e fiz três inimigos íntimos: o padre Morgadinho, que se julgava o braço armado da senhora de Fátima e me denunciou à PIDE, o tenente Gaspar que comandava a PSP e me acolheu várias noites na esquadra, para interrogatórios e conselhos, e o Director interino que regularmente vinha ameaçar-me com a demissão. O argumento era pouco convincente para quem recebia líquidos 1.492$30 mensais, remuneração suspensa de 14 de Julho a 1 de Outubro aos professores agregados, mas, a concretizar-se, suficiente para impedir definitivamente o acesso à função pública. O 25 de Abril viria repor a justiça mas, a uma dúzia de anos de distância, ninguém sabia.

Perante a ameaça de demissão, se continuasse no distrito, alguma forma havia de arranjar o Director interino com o desvelo do padre Morgadinho e do tenente Gaspar, decidi efectivar-me longe de tais biltres, enquanto o Silva Mendes foi sucessivamente nomeado Director Escolar, Presidente da Câmara de Portalegre e Administrador da Casa da Moeda.

Fiquei em primeiro lugar nas escolas a que concorri. As femininas e mistas eram interditas a professores mas, nas masculinas, as professoras só podiam ser colocadas se não houvesse candidatos masculinos. Como havia poucos professores, a colocação era facílima para os homens. Coube-me o 1.º lugar da escola masculina da Lourinhã, posto em primeiro lugar no boletim de concurso, e desloquei-me a Lisboa para tomar posse.

Recebeu-me o Director Escolar, Olinto de Araújo Vilela, com visível satisfação por empossar um beirão, espécime que no seu convencimento devia ser crente, de sãos princípios morais e admirador do Estado Novo. A PIDE tinha-se atrasado na informação.

Ficou descoroçoado quando lhe disse que não era crente e não exultava com a mobilização para a guerra que o regime mantinha em três frentes. Notei que a conversa, embora cordial, desagradava ao Director que dizia ter-me destinado o lugar de Delegado Escolar. Ainda lhe disse que as minhas opções ideológicas não me recomendavam nem da minha parte havia apetência por um cargo de confiança.

Queixou-se da decepção que eu lhe causava, a ele que era da União Nacional, da Legião Portuguesa e vereador de uma Câmara Municipal, no Ribatejo, cujo nome se me apagou nestas décadas.

Mantive-me respeitosamente silencioso, aliviado por ter descarregado a ira contra o Estado Novo, certo de que nada seria pior do que a ida para a guerra.

Houve um pesado silêncio entre ambos, pareceu-me uma eternidade, o Director coçou a cabeça e, por fim, disse: «Vai ser o Delegado Escolar da Lourinhã, uma mulher é que não».

Li em voz alta que seria fiel às leis da República e o mais que constava do diploma de funções públicas, custava uma fortuna, e ambos assinámos o auto com duas testemunhas que recrutou para a cerimónia.

Despediu-se, cordialmente, e disse-me: Então… até Outubro, senhor Delegado Escolar.
Não quis acreditar no que me anunciava, não havia em Portugal um Delegado Escolar menor de idade, nem percebia por que motivo me seriam atribuídas tais funções.

Em Outubro lá fui parar à Lourinhã e logo recebi a visita do Director que me vinha felicitar por ser o director da escola masculina e anunciar que já tinha mandado para o Diário do Governo a minha nomeação de Delegado Escolar.
De facto, com vinte anos, antes de atingir a maioridade, o meu nome veio publicado na 2.ª série do Diário do Governo nomeado Delegado Escolar da Lourinhã.

Só então me dei conta de ser o melhor professor do concelho. Era o único. Mais de oitenta professoras tinham um defeito de género que superava a minha inexperiência e quaisquer defeitos de um homem.

O pecado original perseguia as mulheres e a excelente profissional Maria da Conceição Carneiro foi exonerada para que eu assumisse um lugar que não queria e para o qual as mulheres eram inaceitáveis.

Uma mulher é que não.

30 de Setembro, 2009 Carlos Esperança

Memórias achadas (Crónica)

A certeza do encontro não atenuou o pasmo da chegada e a emoção da despedida num dia de Agosto que começou tarde demais e depressa se findou.

Aquele olhar carregava quatro décadas e meia de separação. Quem pensa que a ausência é esquecimento? É a memória fechada no baú do tempo e a separação um laço forte em estado de gravidez sem previsão de termo.

Saiu-lhe da carteira um artigo de jornal com uma foto, dobrada e tão puída, que logo se desfez por entre os dedos como um vestido de seda preso nos espinhos de um silvado.

Quando dobrou de novo o papel, pelos vincos rasgados, ele afastou o olhar para ocultar o efeito atordoador da surpresa, naquela forma natural, com tanta gente a ver, capaz de reacender as brasas da paixão que o tempo não apagou.

Tantos anos livre de quem não a mereceu e, agora, feliz, num reencontro afectuoso, braços abertos ao abraço que já não pode prendê-la, face oferecida aos lábios sequiosos, a depor um beijo terno de quem esqueceu ou já perdoou. Há vinte anos tinha havido um encontro, breve e alegre, de quem esquecera o rosto até recordar a suavidade da voz e o brilho do olhar, sobressalto aquietado pela constante interrupção do diálogo por uma multidão de convivas. Agora era diferente, não esteve na origem uma efeméride ou um desses acasos que surgem nas andanças da vida. Foi um encontro planeado, com desejo mútuo a torná-lo possível e a prolongá-lo com o pretexto de festejos populares. A vida é feita de acertos e desacertos, de enganos e ilusões, da ambição de agarrarmos quem estremecemos e do receio de nos prendermos a quem perdemos.

Na ditadura tudo era negado, éramos só nós tudo o que tínhamos, e nada ousávamos por ser proibido. Desse tempo, dessa saudade, ficou o remorso de não termos arriscado, o desalento de não crermos no futuro, a vergonha de termos sentido medo e a raiva de não o termos vencido. Do mundo que poderíamos ter construído restam a derrota, as feridas e as dúvidas sobre o futuro que seria. Não é possível voltar atrás e reiniciar, como se a vida pudesse repetir-se ou a mesma água do rio banhasse de novo o leito.

A vida não é o que olhámos, é o que vimos, o que lembramos, os silêncios resignados, respostas por achar para a rendição sem glória. Quem um dia desiste de lutar nunca mais sai vitorioso, ficou inacabado o voo de quem fechou as asas. Que importa a renúncia por amor ou o silêncio por devoção? O que não se diz no tempo certo não se repete depois. O Sol não surge com o crepúsculo embora a claridade nos faça sonhar com a madrugada que desperdiçámos.

Somam-se acasos e frases incompletas, sons que chegam sem liberdade, guardados por cumplicidades e disfarçados em pretextos. Sonhar é um direito que resiste ao tempo e à vontade, quimera que se inventa para afagar o coração e disfarçar o remorso.
Um dia, o telefone toca. Chega a voz esperada na véspera e ansiada na manhã seguinte, voz que acompanha a carruagem que se afasta a cento e trinta quilómetros por hora, tão tarde, para impedir o embarque, tão breve, com tanto para dizer, e tão triste, com o som a perturbar os sentidos e a dilacerar a memória. Que raio de sorte a do viajante que não pode inverter a marcha do comboio que o aprisiona, que desolação para quem deixou fugir o bálsamo para a ferida que não sarou.

O amor é um sentimento que resiste ao tempo e ao bom senso, capaz de comprometer o recato e a tranquilidade, roleta russa que compele ao disparo, com jogadores dispostos a morrer por se sentirem a sangrar por dentro e a esvair. O remorso, esse, é o espinho cravado na memória ferida.

Sabemos que amámos quando nos despedimos sem partir ou, partindo, ficamos presos. E quando, caminhando sem rumo, tropeçamos na memória.

20 de Agosto, 2009 Carlos Esperança

Com a corda na garganta (crónica)

O cavador, vergado ao peso da enxada e da fé, descansava ao domingo por imposição canónica e dos outros paroquianos. Choravam-lhe os filhos, com fome, e doía-lhe o mutismo da mulher. Vivia em aflição e, enquanto o padre transformava em benta a água vulgar e em hóstias consagradas as rodelas de pão ázimo, ia duvidando da fé.

Não o empolgava o latim, não se condoía do martírio de seu deus e descria da virtude do padre.

No domingo ansiava pela segunda-feira, esperando que um lavrador o chamasse para os trabalhos agrícolas, à espera de oito mil réis e da canada de vinho com que criava forças para, com a côdea de pão e o escasso peguilho, aguentar a jorna e a família.

Já por várias vezes temera ter de vender as cabrinhas que os filhos apascentavam à beira dos caminhos. Sem leite, queijo e cabritos que dali vinham, sem o toucinho que ficava da venda dos lombos e dos presuntos do porco que a mulher criava, como iria alimentar os seis filhos que ainda restavam dos dez que Deus quisera?

No Inverno não havia trabalho e era escassa a comida. Na panela fervia um coirato que acabaria repartido por todos para acompanhar as magras fatias do pão duro que restava da última fornada. O naco de toucinho, que saíra da salgadeira, escoltava o coirato para dar paladar às couves e batatas que ferviam na panela de ferro. Que raio de vida, a dos pobres. Era a vontade de deus que, assim, se cumpria.

Uma tarde, a mocha, a cabra que dava mais leite, pareceu doente. De manhã acharam-na morta, barriga inchada, quem sabe o que comera. O cavador teve de carregar com ela e enterrá-la, nem a pele lhe aproveitou.
Dois dias depois os sinos da aldeia tocaram a sinais. Perguntei quem tinha morrido, foi o Zé da Catrina, menino, devia estar doido, com mulher e seis filhos, fazer uma coisa dessas, não andava bom da cabeça. Prendeu na trave da casa a corda que lhe ficou da cabra e, com ela, fez um laço. Subiu a um banco e meteu-se dentro. Quando voltaram da missa, a mulher e os filhos foram dar com ele, com os olhos muito abertos, a língua de fora e o banco caído.

Ficou assim no dia seguinte, as moscas a poisarem nele, até chegarem as autoridades. Foi o maligno, murmurou-se na aldeia, só podia ser, o Zé era pouco devoto, abandonou deus, entraram nele os espíritos.

O padre recusou fazer o enterro. A Catrina  ajoelhou-se a implorar que o acompanhasse mas o sacerdote invocou o direito canónico. O coveiro abriu-lhe a cova longe dos outros mortos, num talhão ainda sem campas e por benzer, talvez para não atormentar os que morreram confortados com todos os sacramentos.

Já lá vão seis décadas, não sei se a terra comeu o Zé da Catrina de forma diferente dos que temeram a deus e cumpriram os mandamentos.

13 de Agosto, 2009 Carlos Esperança

CRÓNICA (Verão)

A tarde cálida suga-me as forças. Mergulho no jornal, à sombra das videiras do quintal, e ali fico a percorrer notícias de incêndios, assaltos e acidentes.

Olho as videiras que me dão sombra. Já cá estavam quando nasci. E vão ficar, cada vez mais velhas e podres, nos anos que vierem. As uvas, que orgulhavam os avós, estão agora cheias de moléstias que não deixam crescer os bagos. Têm falta de calda, é um crime, dizem as visitas, o senhor é um desleixado, mas eu já não herdei o saber de as tratar nem o gosto de aprender. Sou da geração que apenas soube esbanjar o que ficou e o que devia legar.

Sem me dar conta estou no lugar que o meu pai ocupava quando as forças começaram a faltar-lhe. À minha frente está vazio o lugar da minha mãe que aos oitenta anos colocou Saramago no seu devocionário e começou a devorar-lhe os livros com a pressa de quem sabe que escasseia o tempo.

Os anos vão passando. Não sei por que razão regresso onde fui feliz, onde estes espaços sempre foram  reservados, para sofrer com o lugar que ora me cabe.

A vida é um privilégio que rapidamente se esgota e a morte uma injustiça irreversível.

Numa rua próxima passa a procissão. Ainda vem gente para sacudir o pó aos santos e levá-los a laurear pela vila por entre cânticos, orações e foguetes. Não sei o que pensam as pessoas que seguem o arcipreste e as que lhe seguram o pálio, nem que sentido tem a custódia erguida para o céu que abandonou as gentes e as aldeias que esperam o sumiço da última geração dos lugares onde nasceu.
Apesar da exuberância do Verão, o equinócio virá aí com as folhas a tecerem a manta morta que cobre os campos e o Outono da vida esgota-se aos que ficaram e vão partindo sem que alguém ocupe o lugar que deixam. Não há herdeiros que reclamem tal herança.
Talvez por hábito, ainda volto, de vez em quando, quem sabe se para me deixar apanhar à falsa fé e desaparecer onde surgi.

Deambulo pela vila em busca de gente como náufrago à procura de terra firme. Aguardo o lusco-fusco para que os corpos cansados apareçam em busca da brisa e dos restos de vida que ainda deve haver dentro das casas arruinadas que a autarquia se encarrega de caiar por fora. As lojas continuam abertas, com prateleiras cheias de coisas que ninguém pede, portas à espera de alguém que entre, enquanto os proprietários as não franqueiam para sair.  Onde param as pessoas que restam, aquelas que ainda querem tirar da terra a comida que há-de faltar?

Definitivamente, não se vê vivalma. Só dentro das casas se encontra gente, as pernas já não aguentam, à espera de familiares que não aparecem. Amanhã é domingo, talvez venham muitos, roídos de saudade e de remorso. Há uma nova procissão, em honra da Senhora da Barca, que conserva a veneração apesar de avara nos milagres e indiferente aos que deixam as terras, a fé e a vida.

O dia nasceu calmo. No lar da Misericórdia os velhos tomam banho e biscoitos no leite da manhã. Alguns já foram avisados dos percalços que retiveram os filhos. Uma velhota cheia de alegria e de lágrimas olhou com orgulho os colegas e gritou, são os meus netos, enquanto se amparava nas muletas em direcção ao filho que a viera mostrar. Deram-lhe dose reforçada de insulina, hoje abusará, tem o filho e os netos, vão insistir que coma, terá sobremesa, que lhe faz mal, e a nora que não lhe quer bem.

Esquece as dores reumáticas e as articulações, entra para a parte de trás do automóvel e beija os netos que prosseguem os jogos electrónicos e perguntam se o almoço demora.

Queixa-se a velhota de que os campos estão abandonados, este ano já não apanha a azeitona, perdeu-se a vinha grande, os pastores derrubam as paredes, chegam-lhe ecos de que ninguém respeita os prédio e o monólogo acaba interrompido com a reprimenda azeda da nora, devia ter vendido, queria viver para sempre, agora ninguém lhes pega.

Ó mãe, as viagens ficam caras, a vida não está fácil, eu sei meu filho, cada vinda custa mais de duzentos euros, os miúdos faltam à piscina, faltaram aos anos do amigo, lindos meninos que vieram ver a avó, que Deus os abençoe. Reprime as lágrimas e remexe os bolsos  a apalpar duas notas de vinte euros que reserva para os netos, não se evaporem.

Depois de pesado silêncio o carro detém-se à porta do restaurante. Os miúdos correm para a entrada, a nora vem abrir a porta à sogra enquanto olha a linha do horizonte e espera o marido para içar a mãe que sai penosamente com o reumatismo, as articulações e a fractura do colo do fémur a cobrarem-lhe a visita.

A refeição é demorada, o serviço é lento, a empregada recita a ementa, não há muito por onde escolher, eu como qualquer coisa, os miúdos exigem bife, batatas fritas e ovo, o pão vai servindo como redutor de ansiedade para o repasto que demora, a nora diz que comia melhor em casa, escusava de percorrer quatrocentos quilómetros e outros tantos que há-de fazer no regresso, lá chegam o bacalhau e os bifes, ó mãe beba menos água que lhe faz mal, avó limpe a boca, tanto ruído, a refeição avança, vem mousse de chocolate para todos. Dois cafés e a conta.

Ó mãe, já não passamos lá por casa, vamos deixá-la no lar, eu sei que queria ver as suas coisas, ainda queremos chegar de dia, já nos vimos, sabe como é, cada um gosta de estar na sua casa, ó menina traga-me a conta, da próxima vez vimos de véspera, estamos mais tempo, nem penses, bem sabes que não durmo na casa da tua mãe, o esquentador não funciona, a água sai suja, as camas necessitam de ser mudadas, é boa vontade fazermos oitocentos quilómetros num só dia.

Não tardou a ver-se amparada por uma criada, à porta do lar, enquanto fazia adeus aos netos e o filho abanava o braço esquerdo pela janela do carro em movimento. Procurou o lenço no bolso, trouxe com ele duas notas de vinte euros, ai a minha cabeça, afligiu-se com o descuido, os netos já iam longe e a porta esperava que ela entrasse para se fechar.

Lá estavam os amigos habituais, nenhum indagou como fora o dia, os velhos adivinham os dramas, conhecem as mágoas das visitas, sabem o estorvo que são e contam as horas, cada vez menos felizes, sempre mais pesadas.

Aguardam com ansiedade as visitas que não chegam e, quando o fim-de-semana expira, sentem o alívio de não terem vindo. Para a separação definitiva, nada melhor do que as ausências cada vez mais longas. É a vida. A morte é o acto que ainda falta para rematar a tragédia.

Carlos Esperança in Jornal do Fundão – 06-09-09