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O milagre como causa

Em breve será canonizado o Nuno Álvares Pereira, guerreiro, patriota, cristão devoto e oftalmólogo honoris causa. Uma parte do processo de canonização «consiste no exame dos milagres atribuídos à intercessão do “venerável”. Se um deste milagres é considerado autêntico, o “venerável” é considerado “beato”. Quando após a beatificação se verifica um outro milagre devidamente reconhecido, então o beato é proclamado “santo”, como acontecerá com D. Nuno Álvares Pereira.» (1)

O primeiro problema é concluir que o milagre é autêntico, como apontou David Hume. Um milagre é algo contrário às leis da natureza. Se estiver de acordo com o que consideramos natural não é um milagre, mesmo que seja invulgar. Usando o exemplo de Hume, uma pessoa aparentemente saudável morrer de repente não é um milagre. É raro mas não viola qualquer lei da natureza. Milagre é ressuscitar depois de morto três dias. Isso sim violaria o que esperamos ser a forma como a natureza opera.

Mas só apontamos como uma lei da natureza aquilo em que temos o máximo de confiança que se pode justificar. Aquilo que verificamos ocorrer sem excepção. É por isso contraditório afirmar que algo é uma lei da natureza e, ao mesmo tempo, que um milagre a violou. Se conhecemos uma excepção já não podemos concluir que é uma lei da natureza. Ou, como argumentou Hume, não podemos aceitar um milagre com base no testemunho seja de quem for porque nunca o testemunho de uma pessoa, ou mesmo de muitas, pode ser um fundamento mais sólido do que aquele que exigimos para designar algo como lei da natureza (2).

Outro problema é identificar o milagreiro responsável. A senhora Guilhermina pediu a cura ao Condestável mas, na sua aflição, certamente também terá proferido muitos “Ai Jesus”, “Valha-me Nossa Senhora” ou “Deus me acuda”. E nada impede que outro santo se tivesse compadecido do seu sofrimento e, mesmo sem invocação, pedido a cura ao Altíssimo. É por isso precipitado, e especulativo, proclamar Nuno Álvares Pereira como o milagreiro neste caso.

E há ainda outro problema. Mesmo supondo que houve milagre e que Nuno Álvares Pereira tenha pedido a Deus que curasse o olho da senhora Guilhermina, só podemos atribuir a cura ao beato se estabelecermos uma relação causal entre o pedido, o milagre e a cura. Ou seja, se pudermos concluir que a intercessão do beato causou a intervenção divina e que a resultante suspensão das leis da natureza causou a cura à senhora Guilhermina. Sem estabelecer uma relação causal apenas podemos constatar uma co-ocorrência que pode ser mera coincidência. E não se quer santos por coincidência. Julgo eu.

Uma causa é um factor sem o qual o efeito não ocorre e que obriga a ocorrência do efeito se estiver presente, sendo todos os outros factores constantes*. Por isso podemos inferir uma relação causas se controlarmos os outros factores. Por exemplo, num grupo de pessoas com lesões oculares causadas por óleo quente testamos uma terapia em metade e comparamos os resultados com os restante, não tratados, que servem de controlo. Assumindo que todos os outros factores são semelhantes ou aleatoriamente distribuídos pelo grupo, qualquer correlação é indicativa de uma relação causal entre terapia e cura. Infelizmente, isto não se pode fazer com santos milagreiros. Pode-se fazer com médicos, medicamentos ou qualquer terapia mas, por alguma razão, os santos iludem qualquer tentativa rigorosa de examinar o seu trabalho.

A outra forma de estabelecer uma relação causal entre é conhecendo o mecanismo pelo qual uma causa produz um efeito. Se a bola branca bate na bola preta e esta última começa a rolar posso afirmar que o seu movimento foi causado pela colisão porque compreendo o mecanismo. Só que isto também não se aplica aos milagres. O mecanismo pelo qual os santos pedem favores a Deus pode ser semelhante ao que se passa por cá, mas o passo seguinte é um mistério absoluto.

Mesmo assumindo que Deus suspendeu a operação normal da natureza no momento da cura da senhora Guilhermina não podemos concluir que essa suspensão causou a cura. Porque nem podemos procurar uma correlação entre ambos numa experiência controlada que elimine a correlação com outros factores, nem conhecemos o mecanismo pelo qual suspender as leis da natureza pode curar um olho. E nunca poderemos conhecê-lo, porque todos os mecanismos que conseguimos compreender são aqueles que fazem parte das regularidades que podemos observar na natureza.

Antecipando já a confusão costumeira, deixo claro que não pretendo demonstrar a falsidade do milagre, da cura ou do santo. Parece-me que esta cura milagrosa é uma treta, mas não é isso que estou a defender aqui. O que quero defender é que a conclusão da Igreja Católica é infundada. Não têm, nem poderão alguma vez ter, evidências que justifiquem concluir que ocorreu um milagre, que o milagre causou a cura e que foi a intercessão deste homem morto que causou o milagre. Mais uma vez, vendem pura especulação como se fosse conhecimento.

* Se for um factor causal determinista. A coisa complica-se um pouco quando os factor causal é probabilístico, mas a ideia é a mesma. E não me parece que seja suposto Deus fazer milagres com margem de erro e intervalo de confiança.

1- Agência Ecclesia, 3-7-08, Papa reconhece milagre do Beato Nuno de Santa Maria
2- Um excerto do texto original de Hume está em Modern History Sourcebook: David Hume: On Miracles, por Paul Haslall.

Em simultâneo no Que Treta!

7 thoughts on “O milagre como causa”
  • Jeniffer

    Pessoas,
    me desculpem por este comentário, mas quando encontrei o blog fiquei animada com as discussões que daqui poderiam surgir. Contudo, depois de quatro meses percebo que o enfoque são os ataques à Icar (não que eu não concorde com vcs sobre tudo), mas esperava um debate mais científico e inovador. Porque estas baboseiras da Igreja católica já estou cansada de ouvir.

    Um abraço a todos, Jeniffer.

  • MF1

    “não pretendo demonstrar a falsidade do milagre”.

    Nem é preciso, qualquer um vê que é falso.

  • Carlos Esperança

    Uma argumentação demolidora.

  • Olhar Ateu

    Uma das condições necessárias para que a igreja considere que seja milagre é que a pessoa em causa estivesse a orar no momento milagroso.

    Como é que se provou que a sra. estava de facto a rezar na altura é que me escapa !

  • Virus

    O verdadeiro milagre ainda está para vir, (talvez) mais turismo aqui para a terra.

  • centauro

    A dona Guilhermina, quando sentiu o olho salpicado pelo óleo fervente, desatou a correr e as suas primeiras palavras foram: “fod… que já me queimei” , “bardamerda pró peixe”, “ai ai, o meu rico olhinho, queres ver que nunca mais vejo a telenovela?”, e mais uma série de frases que só o decoro (porque isto é um blogue de gente séria), só o decoro, repito, me impedem de publicitar. No outro dia, já mais refeita, com o olho inchado como uma batata, lá começou a fazer as imprecações, desculpem, as invocações do costume: “meu rico santo antoninho, vê lá se me saras o olho…”;
    “Fatinha do meu coração, põe-me a ver que te ofereço um cordão de ouro…” e, finalmente, depois de mais de 100 invocações, lá se lembrou do Nuno Álvares Pereira e, ajoelhando-se, pediu-lhe que lhe sarasse o olho com um milagre à boa maneira portuguesa.
    Verdade, verdadinha, Nuno Álvares Pereira não lhe fez nada, nem lhe podia fazer, porque está morto e bem morto, mas como o inchaço já lhe tinha desaparecido, ela lá começou a ver um bocadinho melhor pelo que, satisfeita da vida, contou o prodígio aos vizinhos e também ao pároco local, que se encarregou de divulgar a notícia. Foi isto que aconteceu, verdade, verdadinha, eu seja cego, surdo e mudo, pois foi uma fada que mora ao fundo do meu corredor, chamada Floribela, que me contou, estava eu a ressacar de meia dúzia de uisques..

  • centauro

    A dona Guilhermina, quando sentiu o olho salpicado pelo óleo fervente, desatou a correr e as suas primeiras palavras foram: “fod… que já me queimei” , “bardamerda pró peixe”, “ai ai, o meu rico olhinho, queres ver que nunca mais vejo a telenovela?”, e mais uma série de frases que só o decoro (porque isto é um blogue de gente séria), só o decoro, repito, me impedem de publicitar. No outro dia, já mais refeita, com o olho inchado como uma batata, lá começou a fazer as imprecações, desculpem, as invocações do costume: “meu rico santo antoninho, vê lá se me saras o olho…”;
    “Fatinha do meu coração, põe-me a ver que te ofereço um cordão de ouro…” e, finalmente, depois de mais de 100 invocações, lá se lembrou do Nuno Álvares Pereira e, ajoelhando-se, pediu-lhe que lhe sarasse o olho com um milagre à boa maneira portuguesa.
    Verdade, verdadinha, Nuno Álvares Pereira não lhe fez nada, nem lhe podia fazer, porque está morto e bem morto, mas como o inchaço já lhe tinha desaparecido, ela lá começou a ver um bocadinho melhor pelo que, satisfeita da vida, contou o prodígio aos vizinhos e também ao pároco local, que se encarregou de divulgar a notícia. Foi isto que aconteceu, verdade, verdadinha, eu seja cego, surdo e mudo, pois foi uma fada que mora ao fundo do meu corredor, chamada Floribela, que me contou, estava eu a ressacar de meia dúzia de uisques..

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