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A Morte do Miguel ou as injustiças de Deus

No dia 27 de junho de 2007 o Miguel teve o seu funeral. Caíra no sábado anterior à saída do casebre. Quebrou o fémur e ganhou um hematoma na cabeça. Transportado ao hospital faleceu no dia seguinte.

O funeral foi na terça-feira. O Miguel teve missa, flores que os amigos lhe levaram e os responsos canónicos antes de baixar à cova. Já não o acompanharam os pais e avós, que partiram antes, mas estavam lá os amigos que com ele jogaram à bola na Praceta, colegas da escola primária onde começou e terminou os estudos.

Para os que acusam os jovens de egoísmo foi tocante ver os que vieram de longe, alguns bem instalados na vida, outros à procura de uma oportunidade. E eram muitos.

O Miguel é que não teve vaga. Não conheceu o pai, falecido quando ele ainda não tinha dois anos. A mãe esqueceu-o na amnésia da droga e não o recordou quando partiu sob o efeito de uma dose reforçada.

Os avós recolheram-no. Partiu primeiro a avó e não se demorou o avô. O Miguel ficou aos baldões da sorte, ao abandono, não lhe faltando os pontapés da vida nem a companhia de outros desgraçados.

Tinha 31 anos e mantinha os olhos de criança no rosto já cansado. Passou fugazmente por várias drogas mas foi no álcool que se fixou, em doses cada vez mais vastas. Se os amigos o saudavam, sorria com gratidão. E não deixou que lhe virassem as costas, foi-se afastando entre carros que arrumava e garrafas de cerveja que consumia.

Ainda teve tempo para fazer um filho. Foi amado. A mulher quis levá-lo para o cuidar, mas não quis ser fardo. Andou por aí, sem querer ser pesado, sem se queixar, a desfazer o fígado e a vida, a acelerar para o fim, com um sorriso que guardou para os amigos.

Na morte teve a mulher que o amou, vestida de preto, e muita gente: um arrumador de carros no intervalo da ressaca, o diretor de um estabelecimento de ensino superior, o dono do café, jovens que após os cursos foram pela vida mas voltaram à Praceta para dizer adeus ao Miguel e levar-lhe as primeiras flores que recebeu. E todos nos sentimos tristes, com vergonha de sermos felizes.

Chamava-se Luís Miguel Neves Caldeira, de seu nome. Era tudo o que tinha com a roupa que trazia e um velho rádio de que fez testamento oral. Dele só resta o rádio e o raio da nossa incapacidade para criar um mundo mais justo.

Vi o edital que anunciava a missa do 7.º dia para as 18H30, seis dias após a morte, pois o 7.º dia é quando um padre puder. Talvez a missa fosse pela remissão dos pecados de Deus. Para que outra coisa poderia servir?

7 thoughts on “A Morte do Miguel ou as injustiças de Deus”
  • orenascido

    Eis como, com refinado cinismo, o Carlos Esperança consegue explorar a morte de um ser humano para culpabilizar um Deus em que diz não acreditar.

    Simplesmente lamentável este abjecto aproveitamento ideológico.

    • Zeus

      Não é para culpabilizar um Deus, ó alimária. Não percebes a ironia e o sarcasmo? Pois é, só quando te interessa. A inteligência não é para todos.

      • orenascido

        Concordo plenamente contigo. A inteligência não é para todos, tu és um exemplo disso mesmo. Não consegues mesmo elaborar uma linha de refutação minimanente consistente.

        • Zeus

          O que é que há para refutar, diz lá meu menino? Tu só gostas é de sumo intelectual. Não comes nada simples e direto à garganta?

  • kavkaz

    Um texto muito bem escrito e a mostrar-nos que os deuses servem só para enfeitar as cabeças ocas dos crentes!

  • Pietor

    Dizes que o tipo era um bêbado e foi um drogado. Ora, só se mete nestas coisas quem quer.
    Não venhas com a história, como muitas bestas por aí, que afirmam de forma catedrática que as pessoas são viciadas e isso é uma doença, pois são porque querem, apenas e só porque querem. Só entraram nisso porque quiseram. Portanto, têm que sofrer as consequências.
    Se um tipo se mete nessas coisas e sofre as consequências, que tem Deus a ver com isso.
    Já sei, como Ele é infinitamente bom, dava-lhe uma vida de sonho. Pois é, mas nesse caso tinha que te dar inteligência e juízo a ti, ou então destruir todos os ateus.
    Mas, como Deus não segue esse princípio, cada um tem aquilo que quer.

    Foi suficiente palerma para desperdiçar a vida com estupidez, problema dele.

    Isso faz-me lembrar aqueles tipos que se esfarrapam contra uma parede, por se armarem em pilotos. Não entendo quem sentem preocupa com eles. Então não foi isso que eles escolheram? Elas não sabiam os riscos a que submetiam?

    Não vejo aqui sarcasmo, mas vejo aqui estupidez. A mesma que destrói este país e a “Europa”.A mesma que leva o MP a acusar uma vitima de assalto que deu uns murros num bandido que merecia que o partissem todo.

    Que saudade eu tenho da URSS dos anos 70, onde vivi como num paraíso.

    • Zeus

      Olha mais uma alimária a ruminar por este blog. Ou então é a alimária do costume. Ó animalzinho, não sabes que o alcoolismo e a toxicodependência são consideradas doenças pela OMS há mais de 40 anos? Se é que sabes o que é isso…
      E não tens sequer a inteligência para compreender e interpretar um texto literário. O que destrói o país e a europa são bestas que pensam como tu. E as comparações que fazes são mesmo de quem é muito inteligente mas é no café no rodeado de minis. Ou de vodkas, pois deves ter queimado esse cerebrozinho com eles lá na Rússia.

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