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Tertúlia em Alvalade, parte 2.

A conversa foi moderada pelo João Passeiro, a quem aproveito para agradecer o convite, e contou também com o Joaquim Carreira das Neves, sacerdote franciscano e professor jubilado da Universidade Católica, e o Paulo Borges, budista e professor de filosofia na Universidade de Lisboa. Mas, depois da apresentação que cada um de nós fez, o motor principal foi a assistência. A sala era pequena, o que propiciou uma conversa mais interactiva do que tenho encontrado nestas coisas. Foi agradável ter podido rematar quase todas as pontas; normalmente os limites de tempo obrigam a seleccionar só algumas questões e passar as outras ao lado ou por alto, mas desta vez foi mais calmo. Apenas duas questões, que se prolongaram um pouco além do final da tertúlia, me pareceu terem ficado a meio.

A Maria Maia, poetisa e escritora, disse que a ciência é muito humilde e, por isso, não afirma nada acerca de Deus. Pode parecer humilde se a compararmos com a arrogância com que as religiões afirmam certezas acerca do que nada sabem, mas parece-me melhor deixar de lado a dúbia virtude da humildade e dizer apenas que a ciência é realista. Como somos falíveis e temos informação incompleta, qualquer ideia acerca da realidade pode não lhe corresponder. Tanto na ciência como nas religiões. Por isso é preciso avaliar hipóteses por critérios que tendam a minimizar os erros e a maximizar as probabilidades de os detectar e corrigir. Por exemplo, consistência com os dados e com outras hipóteses fundamentadas, capacidade de explicar e fazer previsões testáveis e dependência do menor número de premissas por testar. Isto não tem nada que ver com humildade, não depende da natureza das entidades acerca das quais se formula hipóteses – é uma avaliação das hipóteses e não um juízo acerca das entidades – e exige sempre a comparação de hipóteses alternativas. Uma hipótese não é seleccionada por ser “A Verdade”, em absoluto, mas por ser a que melhor preenche aqueles critérios.

A ciência tem mesmo de dizer muito acerca de Deus, e restantes deuses, porque sempre que a ciência propõe uma hipótese como verdadeira está necessariamente a declarar falsas todas as que com esta não sejam compatíveis. Por exemplo, quando descreve a órbita de um satélite está também a afirmar que são falsas as hipóteses de um milagre levar o satélite para Júpiter, Deus roubar o satélite, Deus comer o satélite, Deus transformar o satélite num molho de brócolos e assim por diante. A epidemiologia exclui a hipótese de curas milagrosas. As leis da termodinâmica põem de parte qualquer intervenção divina. A teoria da evolução implica que nenhum deus interveio na origem das espécies. Esta posição não é arrogante porque a ciência escolhe a hipótese com mais fundamento objectivo e está sempre aberta a mudar de ideias se as evidências o justificarem. Não invoca revelação divina nem alega infalibilidade. Mas quando dizemos que uma hipótese é verdadeira também negamos como falsas todas as hipóteses incompatíveis. Não o fazer seria inconsistente.

Isto estende-se mesmo à hipótese de existir Deus ou qualquer outro deus. A ciência diz que algo não existe sempre que as hipóteses que não o incluam sejam mais plausíveis do que aquelas que o incluem, segundo os critérios da ciência. É o que faz acerca do monstro de Loch Ness, dos marcianos e até de seres alegadamente sobrenaturais que alguns insistem estar fora do alcance da ciência, como fadas, duendes e deuses criadores do universo. Com a informação de que dispomos, pelos critérios da ciência, é pouco plausível que o universo tenha sido criado por um deus que é pai, filho e espírito santo, que esperou quase dez mil milhões de anos até criar a Terra e depois mais quatro mil milhões de anos para engravidar Maria e vir cá salvar-nos sabe-se lá de quê. Cientificamente mais plausível é a alternativa de que este relato é apenas uma de muitas ficções semelhantes que a humanidade tem inventado. É claro que qualquer crente pode rejeitar os critérios da ciência e guiar-se pela sua fé. Está no seu direito. Mas é falso afirmar que a ciência “não diz nada acerca de Deus”. O crente é que não a quer ouvir*.

A outra questão que ficou pouco resolvida foi-me posta pelo Miguel Guimarães, que se tinha apresentado como médico e católico. Pelos critérios que descrevi, apontou o Miguel, eu em 1633 teria também condenado Galileu por não ter dado provas conclusivas do seu modelo heliocêntrico. Se Galileu não tinha mesmo provas adequadas para o heliocentrismo, então, admito, competia à ciência encarar o seu modelo como especulativo e aceitá-lo para publicação apenas como um position paper ou algo do género. Mas nunca seria admissível condenar Galileu a prisão domiciliária para o resto da vida ou ameaçá-lo com tortura para o obrigar a abjurar a sua tese. Esta diferença entre rejeitar hipóteses e condenar pessoas a prisão ou tortura parece-me bastante clara mas, a julgar pelas vezes que já a discuti com o Bernardo Mota, temo que também não tive muito sucesso a explicar isto ao Miguel Guimarães.

A conversa com os outros dois oradores foi menos problemática porque o Joaquim Carreira das Neves propôs que o que importava de facto era a pessoa, um valor fundamental transversal às várias religiões e até ao ateísmo, e não os detalhes em que divergem, proposta essa logo apoiada pelo Paulo Borges e por mim. Estabelecido esse consenso restou pouca motivação para discordarmos. Mas isto permitiu-me rematar a conversa apontando que essa ideia implica que podemos livrar-nos dos dogmas e das crenças religiosas mantendo o mais importante, que é ser pessoa, e que isso, no fundo, é ateísmo.

* É verdade que muitos cientistas preferem afirmar que a ciência não diz nada acerca de Deus, que são coisas separadas, como se fosse possível à ciência ignorar um ser omnipotente se ele existisse.

PS: está aqui a minha apresentação. O tema que o João me propôs foi “Líderes espirituais”, mas acabou por me sair isto:

Em simultâneo no Que Treta!

21 thoughts on “Tertúlia em Alvalade, parte 2.”
  • Job

    Se Deus não existe, para quê tanto paleio a tentar demonstrar que Deus não existe ?

    • Bruno Aleixo

      Se todos compreendessem a não existência de entidade(s) divina(s) não haveria necessidade de demonstrar nada, embora fosse sempre um
      exercício interessante. Mas a principal razão é a influência e o poder
      que estas crenças têm na nossa sociedade, a maioria negativos.

      Quanto à quantidade de informação, por um problema poder ser exposto de forma sucinta, ex: “deus não existe”, isso não significa que não seja complexo e longo de provar/demonstrar. Até porque a religião teísta exsite há vários milhares de anos, e muitos tentaram criar argumentos a favor da
      existência de deus. Actualmente temos de ter todos estes em conta, pelo
      menos os que não são totalmente óbvios (ainda).

      • Job

        A inexistência de Deus não é possível provar, isso é por demais óbvio em termos lógicos.É a chamada prova impossível do facto negativo. Ninguém pode provar que algo não existe. Ludwig Krippahl é apenas mais um dos que não quer obstinadamente ouvir.Acontece também àqueles que se julgam presunçosamente os melhores e uma espécie de tutores intelectuais da Humanidade.

        • David Ferreira

          Se não há nada para ver ou comprovar, o que há então para ouvir?

        • Bruno Aleixo

          Pode-se provar nos termos em que se pode desprovar todos os augumentos a favor da sua existência. Não, não há provas positivas da não-existência, isso não faz sentido quando a não-existência não é algo positivo. É algo inexistente.
          Mas desprovar deus negativamente, ou seja, desprovando tudo o que é usado como prova da sua existênca é possível e já que deus, como aliens e como unicórnios, não tem qualquer prova, é muito mais válido assumir que não existe nenhum, em vez e existem todos mas são invisíveis e inalcansáveis em termos dedutivos.

          • AST

            «Não, não há provas positivas da não-existência, isso não faz usentido quando a não-existência não é algo positivo.» – Bruno Aleixo

            Cientificamente esta afirmação está completamente errada. A existência fisica exclui a necessidade de prova.

            A não-existencia prova-se através da demonstração de que são falsos todos os atributos, propriedades e efeitos relacionados com algo tido como hipoteticamente existente.

            .O que não se pode é apresentar provas da existencia de algo que se assume não existir.

        • kavkaz

          Job, consegues perceber que o livro “Gênesis”, onde aparece o teu “Deus” a construir o universo em 6 dias é aldrabice?

          Se responderes afirmativamente à questão acima, então perceberás que o teu “Deus” é falso e não existe!

          • AST

            «Se responderes afirmativamente à questão acima, então perceberás que o teu “Deus” é falso e não existe!» – Kavkaz.

            Gostaria eu de perceber a lógica desta afirmação. Em termos racionais, uma afirmaçãon deste tipo demontra muito pouco honestidade de quem a profere.

            O “Génesis”, como toda a narrativa Biblica, não contêm uma s’o frase com explicação cientifica, nem sequer com intenção de explicar a natureza do Mundo real. A função destes livros é a mesma dos livros para as crianças de tenra idade – transmitir uma mensagem da forma que seja simples e mais facilmente assimilada.

            Dizer que o mundo foi feito em 6 dias, em seis horas, num ano, que primeiro foi criada a Terra e depois o dia, ou que primeiro foi criada o Homem e só depois a Terra, é indiferente para o propósito do Livro e para a realidade fisica, mas importante para a mensagem.

            Eu não consigo acreditar que ainda exista, em pleno século XXI, gente que ainda faz afirmações e análises como as que aqui leio. A insistencia em reproduzir afirmações que se sabe não serem análises honestas da realiadade, são, por si só, o pior desclassificativo para o autor.

    • kavkaz

      Job, tens alguma coisa contra o facto dos ateus dizerem e conversarem sobre o que pensam? A mim tanto me faz que gostes ou não do que eu escrevo e penso. E nem é da tua conta o que os ateus pensam!

  • kavkaz

    Se os deuses existissem a Ciência já teria dado por isso!

    • João Pedro Moura

      KAVKAZ disse:

      “Se os deuses existissem a Ciência já teria dado por isso!”

      Mirabile dictu!

  • Ludwig

    Job,

    Não se pode provar que Deus não existe. Não se pode provar que o Homem Aranha não existe. Não se pode provar que os mafaguinhos não existem. Na verdade, nem sequer se pode provar que a Lua existe ou que electrões existem. Isto pode ser tudo um sonho e daqui a pouco acordo e vejo que o universo não é nada disto.

    No entanto, a noção de prova, neste sentido forte e dedutivo, é apenas útil dentro de sistemas formais. Estipulamos axiomas e regras de derivação e daí provamos certas conclusões. Quando lidamos com a realidade há sempre possibilidade de erros, de as coisas não serem como parecem e esta noção de prova deixa de ser a fundamental.

    A mais importante na ciência é a prova enquanto teste. E isso pode-se fazer. Com o Homem Aranha, a Lua, os mafaguinhos e qualquer deus. Pode-se pôr à prova hipóteses acerca dessas coisas e ver quais são as que se safam melhor nas provas. Para a Lua é a hipótese de que existe. Para o deus que é três pessoas numa só, veio morrer pelos pecados de um Adão metafórico e transubstancia hóstias a hipótese mais plausível é que isso é ficção. Se calhar também trepa paredes, veste-se de vermelho e azul e lança teias…

    • Job

      Ludwig

      Indique-me um blogue contra a existência do Homem Aranha. Outro contra os magafinhos e depois conversamos.

      • Bruno Aleixo

        Tal como já lhe disse Job, a existência do Homem-Aranha não molda a sociedade de nenhuma forma. Não queima/tortura/mata quem não pensa como eles, não defende que não deve haver igualdade entre todos (homosexuais, escravatura e mulheres), não apredreja inocentes até à morte, não é um pensamento retardado que faz com que as pessoas fiquem confortáveis na mentira ignorando avanços científicos (mau para a humanidade em geral), não move massas a cometerem genocídios (Há inúmeros exemplos, o maior deve ser o Holocausto), etc.
        Compreende agora?

        • Job

          O argumento do Homem Aranha ou dos megafinhos foi invocado pelo Ludwig em termos similares ao da existência de Deus. Ora, a questão filosófica ou teológica sobre a existência ou não de Deus perdura há milénios, num debate constantentemente controvertido, que não se circunscreve às malfeitorias daqueles que praticam genocídios, em nome de qualquer ideologia, nem às cogitações sobre a existência de gambuzinos ou do Adamastor. Querer discutir a problemática de Deus ao nível das Fadas dos Dentes menoriza o debate filosófico de uma forma absolutamente ridícula e fragiliza de modo caricato os argumentos daqueles que procedem a esse tipo de comparações completamente descabidas. A mim, parece-me muito fácil de entender a distância abissal entre Deus e qualquer das outras invocadas figuras, espero que também consiga compreender esta questão bem elementar, não é assim tão difícil de perceber.

          • Bruno Aleixo

            Não há outro plano para discutir deus que não no nível da fada dos dentes. Isso não diminui o problema de nenhuma forma.

            Diz rídícula sem fundamentar, e explique. Diz que é fácil de perceber mas não explica.

            As provas que existem para a fada dos dentes são iguais às das fadas, ou às dos unicórnios. A única diferença dos dois é o perigo que a crença em deus é para a sociedade. A questão só é elementar se você quiser, deus e a sua discussão não é o nível máximo de discussão filosófica, bem pelo contrário. Só quando se ignora esta questão é que se faz alguma evolução.

            “menoriza debate filosófico”, “fragiliza os argumentos”, “comprarações descabidas”, “distância abismal”, questão elementar”, “não é difícil de perceber” – só falácias. Que tal exprimir o seu ponto de forma sucinta e clara?

            Explique-me como é que a questão de deus é diferente da questão do pai-natal, além do que já afirmei acerca do perigo da crença do primeiro.

  • João Pedro Moura

    “Tertúlia em Alvalade”?

    Quando é que se resolvem os problemas do Sporting?
    Talvez que o novo treinador, devoto dum “Senhor”, impetre ajuda…

  • José Gonçalves Cravinho

    Eu,um simples operário emigrante na Holanda desde 1964 e já velhote(88anos), digo que admito em meu pensamento que haja quem creia na existência de Deus, mas não posso conceber que haja quem se atreva a definir Deus e a dizer que êle quer que façamos assim ou assado,nem posso conceber a ideia de que Moisés falou com Deus e dêle recebeu as Tábuas da Lei que são os Dez Mandamentos dos biblico-judaico-cristãos.Que o Povo ignorante,supersticioso creia em Deus,não causa espanto,mas os intelectuais que admitem tal patranha,tal vigarice,só posso classificá-los de intrujões,de hipócritas,porque sabem que a Religiõe é o ópio do Povo,usada pelos Poderosos para manter o Povo submisso e de joelhos temendo o castigo de Deus.Foi pois o Homem que criou Deus à sua imagem e semelhança e a respectiva Religião segundo os seus interêsses..

    • Bruno Aleixo

      Concordo, e se não o sabem não são verdadeiros intelectuais. Intrujões como você lhes chama é a palavra justa.

  • AST

    «As leis da termodinâmica põem de parte qualquer intervenção divina.» – Ludwing Krippahl

    Muito grato ficaria se me indicasse uma só prova cientifica de que “as leis da termodinâmica põem de parte a intervenção divina”. Ajudava muito num trabalho, infrutífero, que já levo à mais de 40 anos, em conjunto com uma equipa que, estou a imaginar, perdeu o tempo e a corrida para si.

    Como sabe, os fenómenos termodinâmicos, mesmo uma escala macro, permitem aferir a regularidade natural. Nada, absolutamente nada, nunca e em situação alguma, foi encontrado pela ciência, nem um só indício de que tais regras, tais fenómenos, contrariem a axistencia de um propósito divino e que a regularidade dos fenómenos, seu conhecimento e estudo exclua a hipotese de terem sido criados e establecidos, na sua genese natural, por um Criador.

    Se tem uma só prova em contrário, muito grato ficaria que a disponibilizasse.

    A não ser a este assunto, outro comentário não ferei, pois tão flarante é a falta fundamento cientifico que me leva a classificar este tipo de texto como um esforço pouco asseado para ser insolente e ofensivo de forma civilizada. Pena que a forma como faz afirmações sem suporte cientifico e racional não permitam esconder a falta de civismo, educação e espirito de tolerância que, por muito que se esforce para esconder, na realaidade demonstra não ter.

    A dosonestidade intelectual é um defeito que inviabiliza, definitivamente, a ligação de uma pessoa ao mundo cientifico.
    Se não me apresentar uma das provas que eu lhe peço, permita-me a indelicadeza de o qualificar como “um curioso”, nunca como uma pessoa ligada ao mundo da ciência.

  • Milba

    A quarta figura, da esquerda pra direita na capa do vídeo, na linha de cima, não é a middletown? Ou será o rothschild da escola de realengo no R? Se compararmos o retrato da moçoila e do moçoilo, a gente fica na dúvida. É tanta carinha de Cristo que os crentes uma hora desmaiam apavorados. Mas essa moçoila não é a Nossa Senhora do Crack que apareceu lá em São Paulo?

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