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Treta da semana (passada): quem conta um conto…

O Gonçalo Figueira, no Expresso, escreve que Dawkins levou «um “puxão de orelhas” de outro grande cientista […] o físico Peter Higgs» por ter afirmado «numa entrevista ao canal árabe Al Jazeera ,[…] que para uma criança, ser educada na fé católica era pior do que ser abusada sexualmente por um padre […] Em resposta a isto, Higgs reagiu em entrevista comentando que “o que Dawkins faz com demasiada frequência é concentrar o seu ataque nos fundamentalistas. […] Quer dizer, ele próprio é quase um fundamentalista, de certa forma”.»(1). No entanto, a notícia que o Gonçalo refere e na qual aparentemente se baseou descreve o caso de forma diferente. Nem o The Guardian nem a entrevista de Higgs ao El Mundo sugerem que a crítica de Higgs esteja relacionada com a entrevista de Dawkins à Al Jazeera. O que vem no The Guardian é que críticas como as de Higgs «não levaram o biólogo [Dawkins] a suavizar a sua posição acerca da religião. Numa recente entrevista na al-Jazeera, ele insinuou que ser criado Católico seria um pior abuso para uma criança do que o abuso físico por parte de um padre.»(2)

Além disso, o que Dawkins aponta nessa entrevista é o problema da sociedade permitir aos padres abusos psicológicos muito mais graves do que certos abusos sexuais que se condena. Se um padre andar a apalpar as raparigas da catequese é consensual que seja demitido e talvez até preso. No entanto, o tormento da criança é muito menor do que se a convencerem de que uma amiga falecida está no inferno porque era protestante, um exemplo relatado ao Dawkins na primeira pessoa. O entrevistador, não percebendo que o ponto principal é a inconsistência de critérios – o padre que traumatiza a criança com estórias do inferno no máximo será criticado por alguma imprecisão teológica mas nunca preso pela moléstia – diz que Dawkins não pode generalizar a partir de um caso e pede à audiência para se pronunciar. Curiosamente, um terço dos presentes acha que o abuso sexual é pior, um terço acha que são ambos igualmente maus e um terço concorda com Dawkins. No contexto da entrevista não parece que a posição de Dawkins seja tão absurda como o Gonçalo Figueira faz parecer (3).

A critica de Higgs, ao chamar a Dawkins fundamentalista por «concentrar o seu ataque nos fundamentalistas», também não chega a ser um “puxão de orelhas”. Já há uns anos que Dawkins respondeu a esse tipo de críticas, apontando a diferença entre o fundamentalismo e a paixão com que se defende uma posição (4). Mas, mesmo considerando “fundamentalismo” num sentido mais metafórico, de qualquer posição intransigente, não é claro sequer que seja uma crítica. Porque quando estamos a considerar o fundamentalismo religioso, que pode chegar a extremos como o de apedrejar raparigas até à morte pelo crime de quererem ir à escola, o difícil é ter uma posição conciliadora ou tolerante. Não vejo como justificar uma oposição ao fundamentalismo religioso que não seja também, neste sentido mais lato, uma oposição fundamentalista. Crítica merecem os milhões de crentes que, dizendo-se moderados, também só se opõem moderadamente às barbaridades dos outros milhões de crentes assumidamente fundamentalistas.

O Alfredo Dinis também menciona as críticas de Higgs na «recente entrevista ao jornal El Mundo, de que dá conta o jornal britânico The Guardian […] Uma das bandeiras de [Dawkins] é a afirmação repetida até à exaustão, de que há uma incompatibilidade entre ciência e religião. Higgs coloca a questão de um modo radicalmente diferente e mais próximo da realidade»(5). Na verdade, Higgs não está longe da realidade, mas se o Alfredo tivesse procurado a entrevista ao El Mundo em vez de se ficar pelo relato no The Guardian notaria uma ressalva importante na posição de Higgs: «considera que a ciência e a religião “podem ser compatíveis, desde que não se seja dogmático”»(6). Exactamente.

Se não se for dogmático, a fé é apenas uma questão pessoal à qual a ciência se mantém alheia. A pessoa pode gostar de bacalhau, coleccionar cromos e rezar aos santinhos sem que daí resulte qualquer incompatibilidade com a ciência. Mas o dogma religioso afirma como verdade proposições desprovidas de qualquer outro fundamento que não a crença em si, e isso é inadmissível em ciência. Ou seja, na posição de Higgs, com a qual eu concordo, o Alfredo Dinis pode tornar a sua religião compatível com a ciência se rejeitar todo o dogma da Igreja Católica, mas enquanto lhe restar algo de dogmático a religião do Alfredo não será compatível com a ciência. Admito que é duvidoso que possa haver religião sem dogmas, mas isso é um problema para o Higgs. Eu, precisamente por isso, em vez de dizer que a religião é compatível com a ciência desde que não inclua dogmas prefiro dizer simplesmente que são incompatíveis. Mas se o Alfredo preferir a formulação de Higgs, por mim também está bem. No fundo vai dar ao mesmo.

1- Expresso, Richard Dawkins: ser abusado em criança é menos mau do que ter uma educação católica.
2- The Guardian, Peter Higgs criticises Richard Dawkins over anti-religious ‘fundamentalism’.
3- Entrevista do Dawkins na al-Jazeera, Special Programme – Dawkins on religion, a partir dos 19min e 30s.
4- Dawkins, How dare you call me a fundamentalist
5- Alfredo Dinis, Higgs põe os pontos nos iis a Dawkins… e a Krauss
6- El Mundo, Peter Higgs: ‘No soy creyente, pero la ciencia y la religión pueden ser compatibles’

Em simultâneo no Que Treta!

3 thoughts on “Treta da semana (passada): quem conta um conto…”
  • João Pedro Moura

    Ludwig Krippahl

    Não vale a pena defenderes Dawkins dessa maneira… porque não consegues…

    1- “Abusos sexuais” é conceito muito (demasiado…) abrangente na cultura anglófona, nomeadamente nos EUA. No conceito americano, tais “abusos” começam logo com carícias consentidas entre adultos e adolescentes, com intuitos ou mesmo práticas sexuais relevantes. Mas não é esse o conceito de todo o mundo, variando muito a idade do consentimento de relações sexuais. Tal variação só demonstra a falta de consenso em tal matéria, isto é, no conceito de “abusos sexuais”…

    2- Partindo do princípio que estamos a falar de abusos a sério, isto é, atos em que não há consentimento duma das partes e/ou a mesma não tem idade sexualmente madura, pois que isto é que é realmente “abuso sexuais”, temos que estes abusos são mais graves do que a “educação católica”…

    3- Porque os abusos provocam dor física e psicológica e significam eventos em que se participou, logo mais marcantes da personalidade e suscetíveis de traumatizarem mais…

    4- A questão da “educação católica” também depende da quantidade e da qualidade, tal como os “abusos”, portanto, não só é difícil equacioná-la com esses “abusos”, como é coisa descabida, porque desnecessária, fazê-lo…
    Porém, chamando à colação aquilo que mais poderá significar como “abusos sexuais”, isto é, atos de violação ou de obrigação forçada a outros atos sexuais de relevo, comparativamente com a “educação católica”, digamos normal, ressalta teoricamente à evidência que tal “educação” é muito menos lesiva que os “abusos sexuais”…

    5- Uma coisa é um indivíduo ser obrigado, forçado, violado, torturado, fisicamente, outra coisa é ler relatos de “torturados no inferno” ou noutro sítio qualquer, assim como o resto da panóplia da fantasia educativa católica…
    Aquilo que se sente, fisica e diretamente, é muito mais premente e sensível do que aquilo que nós apenas vemos, ouvimos e lemos…

    6- Pelo que, a conclusão emerge imperativamente:
    – Para uma criança, ser abusada sexualmente por um padre é pior do que ser educada na fé católica.

    7- O que Dawkins, pelos vistos, não disse e devia ter dito, já que estava a ser entrevistado para um canal televisivo árabe, é que, para uma criança, ser educada na fé muçulmana, não digo que seja pior do que ser abusada
    sexualmente, porque é uma comparação descabida, mas é pior do que ser educada na “fé católica”, porque os muçulmanos representam uma cultura pouco ou nada democrática, discriminatória em relação à mulher, autoritária, intolerante, totalitária, enquanto a “fé católica”, embora imbuída, intrinsecamente, de valores semelhantes à religião islâmica, já há muito tempo que está enquadrada em sociedades democráticas e liberais, dissonantes de tais valores impraticáveis…

    8- Assim, com a comparação disparatada e descabida de Dawkins, os espetadores árabes e muçulmanos da Al-Jazeera, sobretudo os mais amalucados, que não são poucos, vão pensar, indiretamente, na superioridade do islamismo, pois que até um cientista do ocidente retrata assim a “malevolência” da “fé católica” e nada diz sobre a muçulmana, dando a impressão que esta até nem seria má ou, pelo menos, pior que a “fé católica”…

    9- Já é, pelo menos, a segunda vez, que Dawkins comete um tremendo
    despautério:
    A outra vez, foi quando comparou o presidente Bush (filho), em “fanatismo”,
    aos fundamentalistas islâmicos…
    Enfim, nada que me espante no snobismo inglês…

  • Ludwig

    João Pedro Moura,

    Acho que Dawkins não precisa de mim para o defender, e não me arrogo de tanto.

    O meu ponto talvez fique claro com um exemplo que podemos presumir hipotético, se bem que talvez não seja tanto assim.

    Se um padre andar a apalpar as raparigas da catequese é consensual que deve ser corrido da paróquia, ou até preso. Mas se um padre aterrorizar as crianças com histórias de castigo eterno, torturas no inferno e afins, apesar do trauma ser potencialmente muito maior do que o de um apalpão, a reacção será muito menor.

    É esta inconsistência de critérios que é preocupante porque, no que toca ao dogma religioso, o interesse da criança fica atrás do poder do padre impingir as tretas que quiser.

    • João Pedro Moura

      LUDWIG KRIPPAHL disse:

      “Se um padre andar a apalpar as raparigas da catequese é consensual que deve ser corrido da paróquia, ou até preso. Mas se um padre aterrorizar as crianças com histórias de castigo eterno, torturas no inferno e afins, apesar do trauma ser potencialmente muito maior do que o de um apalpão, a reacção será muito menor.”

      1- Na teoria, “se um padre aterrorizar as crianças com histórias de castigo
      eterno, torturas no inferno e afins”, seria coisa de maior impacto que umas carícias lúbricas, exercidas pelo padre sobre “raparigas da catequese” (costuma ser mais sobre rapazes…).
      Todavia, o que é consensual, na sociedade, é a questão do “abuso sexual”, seja cometido por quem for, e pior ainda se for por um padre, dado o moralismo pudico que reveste a instituição religiosa a que pertence.

      2- Sobre a ameaça doutrinária da pena infernal e religiosa para os “maus”, que suscita uma “reacção muito menor” da opinião pública, enfim, é matéria decorrente da liberdade de expressão e de religião, portanto, de credulidade…
      … Logo, é insuscetível de intervenção do poder judicial…

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