Loading

Treta da semana: o que eles querem sei eu.

O Gonçalo Portocarrera de Almada escreveu que se deve promover, «com empenho, o direito à liberdade de todos os cidadãos» e que «um compromisso conjugal definitivo não só não é uma excepção a essa irrenunciável prerrogativa da condição humana, como uma sua excelente e muito meritória realização. Compete ao Estado garantir que a todos sejam dadas todas as condições necessárias para que as suas opções sejam verdadeiramente livres, mas não lhe cabe impedir aquelas escolhas que, mesmo não devendo ser exigidas a todos, podem legitimamente ser queridas por alguns. Um ordenamento jurídico que proíbe qualquer compromisso sério, como é o que pressupõe uma entrega definitiva, com o pretexto de assim salvaguardar a autonomia dos cidadãos, não é apenas uma lei paternalista, mas uma norma que não respeita a liberdade dos indivíduos e que, neste sentido, é potencialmente totalitária.» (1) Estou inteiramente de acordo. O Estado deve respeitar o direito das pessoas de assumir «um compromisso conjugal definitivo» e não deve proibir um compromisso sério a quem o quiser assumir.

É isso que o Estado português faz. Quando duas pessoas se casam, são só essas pessoas que decidem quão definitivo e sério é o seu compromisso. O Estado não as obriga a divorciar-se por estarem casadas há tempo demais nem o notário recusa oficializar um casamento só por os nubentes declararem que é para a vida toda. É como quiserem. É por isso estranho o Gonçalo afirmar que «Quando o Estado e as instituições internacionais […] não permitem a possibilidade jurídica de um matrimónio civil indissolúvel […] incorrem na mais insanável contradição porque, em nome da liberdade, combatem uma das suas mais nobres e altruístas expressões.» Lido à letra, isto não faz sentido porque proibir os contractuantes de dissolverem o contracto não lhes dá mais liberdade. Pelo contrário. Neste caso, tira-lhes a liberdade de serem, aos 40 ou 60, diferentes do que eram aos 18 ou aos 25.

Mas o Gonçalo é padre católico e não deve gostar de usar os termos com o seu significado literal. Neste caso, parece usar o termo “liberdade” no estranho sentido de “o Estado obrigar alguém a ficar casado, mesmo que já não queira, só porque assinou um papel”. Isto para um profissional da reinterpretação bíblica não é façanha nenhuma (2) mas, para leigos como eu, é confuso. Afinal, ser livre não é o mesmo que ser obrigado. Além disso, leis que obriguem a permanecer casado quem já não quer não trazem vantagens aos envolvidos e desperdiçam o dinheiro dos impostos. O único benefício é para pessoas como o Gonçalo.

As religiões, que não são a fé de cada um mas as instituições que a regulam, são organizações peculiares. A maioria das organizações, sejam clubes de futebol, empresas ou partidos políticos, divide os seus esforços entre os seus objectivos e os meios para os conseguir. Mas os objectivos das religiões são, literalmente, do outro mundo. Por isso, neste acabam por dedicar todos os esforços aos meios, que passam a ser os próprios fins. Dinheiro, poder e influência. É daqui que vêm as tentativas constantes de meter o bedelho na vida das pessoas. O Gonçalo lamenta o «laicismo que pretende relegar a fé cristã para a intimidade das consciências, ou os esconsos das sacristias», mas é precisamente aí que a fé pertence. Na intimidade e nas igrejas. Nunca na lei. Fazer da fé pessoal uma norma social viola o direito de ter fé, o direito de não a ter e o direito de mudar de ideias. Além disso, é um perigo. Muita gente julga que a religião é terrível no Irão, Afeganistão ou Arábia Saudita por serem muçulmanos mas que os cristãos são porreiros. Isto é um erro. Qualquer religião é tão terrível quanto puder. O cristianismo dá exemplos que baste, ao longo da história, e mesmo o catolicismo do século XXI o demonstra repetidamente com casos como a lavagem de dinheiro no Vaticano, o encobrimento da violação de crianças e a perseguição do racionalismo.

Na Índia, Sanal Edamaruku mostrou que a água milagrosa que brotava de uma estátua de Jesus não vinha de Deus mas sim de um cano entupido. Como a lei de lá pune quem “magoa sentimentos religiosos”, os bispos católicos querem mandá-lo já para a prisão enquanto aguarda julgamento (3). A diferença entre a situação na Índia e em Portugal não está no catolicismo, que é o mesmo, nem nos padres, que defendem a mesma ideologia. A diferença está na sociedade e na lei. A religião católica é menos tolerante na Índia porque pode e só é mais tolerante cá porque não tem outro remédio.

Muitos, crentes e não crentes, protestam contra o “ateísmo militante” por criticar religiões e dizer mal das crenças das pessoas. Mas é preciso. A fé é um substrato fértil para estas organizações que visam impor a todos as suas ideologias e ficções, e só uma pressão contrária constante pode manter a fé na esfera privada, onde pertence e onde só faz mal a quem quer. Por isso, e por muito repetitivo que seja, é preciso continuar a desmascarar estas demagogias. Os religiosos profissionais vão sempre lutar por mais poder, seja para obrigar uns a ficar casados, proibir outros de casar, regular a sexualidade ou o que mais conseguirem. Nunca vão reconhecer que todos temos o direito de mudar de opinião, seja no casamento, seja na fé ou religião. Se convencem a sociedade que renunciar ao direito de mudar de opinião acerca do casamento é um exercício de liberdade, é mais fácil fazerem o mesmo com a fé a tornar a apostasia num crime. Ou a blasfémia, ou tudo o que não lhes der jeito. Só param onde os pararmos.

1- Gonçalo Portocarrero de Almada, A opção por um matrimónio civil indissolúvel, via Senza
2- Por exemplo, como Deut. 21, 18-21:«Se alguém tiver um filho rebelde e incorrigível, que não obedece ao pai e à mãe e não os ouve, nem quando o corrigem, o pai e a mãe pegarão nele, levá-lo-ão aos anciãos da cidade para ser julgado. E dirão aos anciãos da cidade: “Este nosso filho é rebelde e incorrigível: não nos obedece, é devasso e beberrão”. E todos os homens da cidade o apedrejarão até que morra. Deste modo, eliminarás o mal do meio de ti, e todo o Israel ouvirá e ficará com medo.»
3- Slate, Jesus Wept e New Humanist, Sanal Edamaruku update: Indian Catholics demand apology over miracle debunking

Em simultâneo no Que Treta!

12 thoughts on “Treta da semana: o que eles querem sei eu.”
  • Carlos Esperança

    Mais um brilhante texto que desmascara o conceito de liberdade de uma ideologia totalitária.

  • antoniofernando

    Ludwig

    Desta vez, você não desceu ao nível baixo de um dos seus mais recentes textos, quando aqui, levianamente, afirmou: ” eu não descarto os crentes como mero agregados de defeitos, mas, por outro lado, também não diria que a descrição está assim tão longe da verdade”. Espero que tenha sido apenas um episódio menos feliz da sua parte. Quanto ao presente texto, no essencial concordo com a sua crítica ao padre Gonçalo Portocarrera de Almada, mas não deixo de censurar o habitual aproveitamento panfletário do inenarrável Carlos Esperança.Nunca li nada da Igreja Católica a sustentar a indissolubilidade do casamento civil e não conheço mais nenhum padre católico que tenha defendido essa autêntica estultícia. É por demais evidente que, quando duas pessoas se casam, em princípio será para manterem a vigência do casamento, enquanto entenderem que se justificam as razões desse contrato. Na verdade, um casamento é um contrato civil, que, tal como os demais contratos, terá um começo e poderá ter um fim. É certo que há componentes de âmbito social associadas ao casamento, que devem ser ponderadas e acauteladas em caso de ruptura conjugal, como a questão das pensões devidas ou a forma como deva ser regulada a guarda dos filhos menores.Porém,em nome de que princípio é que. por exemplo, alguém vítima de maus tratos num casamento, não deveria poder refazer a sua vida com outra pessoa , no âmbito de um contrato civil ? Sim, temos o direito de mudar de opinião, no casamento, na fé, na religião, ou em qualquer outra forma de pensamento firmado.E, sim, a perspectiva do padre Gonçalo Portocarrera de Almada faz-me lembrar Mateus 23-4, na prédica de Jesus Cristo contra os fariseus : “atam fardos pesados e insuportáveis e colocam-nos aos ombros dos outros, mas eles não põem nem um dedo para os deslocar”

    • Carlos Esperança

      A Concordata assinada com Salazar impedia o divórcio a quem fizesse um casamento católico o que era a regra, dados os condicionalismos políticos e constrangimentos pessoais. Compreendo que a honestidade intelectual não seja um imperativo da fé.

      • antoniofernando

        A honestidade intelectual é um imperativo de quem é intelectualmente honesto,independentemente da sua orientação ideológica, mas não é exactamente a sua característica mais vincada, como os seus sistemáticos panfletos mostram. Esta sua intervenção é só mais uma dessas demonstrações. A outra ficou resumida quando se permitiu insolentemente sentenciar que ” a crueldade é apanágio dos crentes”. A si não lhe reconheço a menor capacidade para falar em termos éticos.

        • antoniofernando

          Em complemento do meu comentário anterior, desejo esclarecer o sentido da minha frase: “. Nunca li nada da Igreja Católica a sustentar a indissolubilidade do
          casamento civil e não conheço
          mais nenhum padre católico que tenha
          defendido essa autêntica estultícia”. Com essa frase, estava-me a referir obviamente, e de forma exclusiva, aos tempos presentes, relacionadamente com a intervenção do padre Portocarrera. E nesse exacto sentido, reafirmo que, na actualidade, não conheço qualquer posição oficial da ICAR que defenda agora a indissolubilidade do casamento civil, ou de qualquer outro clérigo, exceptuando a posição específica desse padre.

          • Carlos Esperança

            O Matrimónio é a união conjugal de um homem e uma mulher, entre pessoas legítimas para formarem uma comunidade indivisa de vida (Cf. Catecismo Romano, P.II, cap. 8, n.3). Segundo o Compêndio do Catecismo da Igreja Católica, Deus, que é amor e criou o homem por amor, chamou-o a amar. Criando o homem e a mulher, chamou-os no Matrimónio a uma íntima comunhão de vida e de amor entre si, “assim, eles não são mais dois, mas uma só carne” (Mt 19,60). Ao abençoá-los, Deus disse-lhes: “Sede fecundos e prolíficos” (Gn 1,28).
            O matrimónio é definido pelo Código de Direito Canónico como sendo “o pacto pelo qual o homem e a mulher constituem entre si o consórcio íntimo de toda a vida, ordenado por sua índole natural ao bem dos cônjuges e à procriação e educação da prole, entre baptizados foi elevado por Cristo nosso Senhor à dignidade de sacramento. Pelo que, entre baptizados não pode haver contrato matrimonial válido que não seja, pelo mesmo facto, sacramento.” (cânon 1055).
            É, portanto, um dos sete sacramentos da Igreja, que estabelece uma santa e indissolúvel união entre um homem e uma mulher, e lhes dá a graça de se amarem, multiplicarem e educarem os seus filhos:
            …cada homem tenha sua mulher e cada mulher seu marido. Que o marido cumpra seu dever em relação à mulher e igualmente a mulher em relação ao marido. A mulher não dispõe de seu corpo, mas sim o marido. Igualmente o marido não dispõe de seu corpo, mas sim a mulher. Não se recusem um ao outro… (1ª Coríntios 7, 2-5)
            O vínculo conjugal nasce do pacto conjugal, isto é, tem origem no consentimento. Segundo São Tomás de Aquino a causa do matrimônio é o pacto conjugal; a sua essência é o vínculo e os seus fins são a procriação e educação da prole, a regulação do instinto sexual e a mútua ajuda.
            A doutrina da Igreja Católica estipula que o casamento é simultaneamente uma instituição natural e um sacramento. (Wikipédia) http://pt.wikipedia.org/wiki/Casamento_religioso

        • kavkaz

          Termos éticos são do Novo Testamento quando Deus engravida a mulher do carpinteiro e depois manda-o trabalhar na carpintaria para sustentar o filho dele! O homem ficou com um par de cornos divinal e os padres como tu aplaudem! Eheheh… Que saloios!

          Termos éticos é não responderes às perguntas simples que te colocam, como por exemplo, se achas bem que “Deus” (o inventado pelos crentes) engravide a tua mãe e a tua mulher ao mesmo tempo para tu teres a honra de teres um irmão e um filho do teu deus e seres avisado à posteriori. Lindo!

      • JoaoC

        “A Concordata assinada com Salazar impedia o divórcio a quem fizesse um casamento católico”

        Bons tempos!

  • kavkaz

    “Dinheiro, poder e influência. É daqui que vêm as tentativas constantes de meter o bedelho na vida das pessoas.”

    – Muito bem anotado! Tentam dominar os outros e perseguem a tempo inteiro! Parecem a PIDE dos tempos do fascismo português!

  • Cristão Verdadeiro

    Apoiado, antoniofernando/José/cínico/cáustico/etc. A honestidade intelectual é um imperativo de quem usa vários nicks para sabotar um portal.

    Não os poupes! Afinfaçlhes com essa cena da honestidade intelectual. Viva o falecido Jesus Cristo, nosso senhor!
    Vivaaaaaaaaaaaaaa!

    • ateu_ convicto

      Boa Cristão Verdadeiro/ Carpinteiro/ Zemano/ Laico/Azedo/ Isabelinha e / o raio que te parta/

      Tu és mesmo bom a mostrar a tua extraordinária coerência intelectual

      Vivaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaa !

      • Deus

        Meus ajoelhados e rastejantes, tenham calma! O meu filho Jesus está na casa de banho e voltará à terra como vos prometeu e vocês tanto esperam… Ele demora-se tanto porque teve uma diarreia divinal e não se livrou ainda dela.

        Esperem ajoelhados que o mau cheire passe… Está quase o regresso de Jesus à terra, onde o mandarei crucificar outra vez para o castigar da cagada que aqui fez.

You must be logged in to post a comment.