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Treta da semana: Higgs e os padres.

Leon Lederman chamou-lhe ”the goddamned particle”, por ser tão difícil de detectar, mas o editor mudou a expressão para ”the God particle”(1). Por causa disso, o Prós e Contras sobre a experiência mais importante dos últimos anos descambou em duas horas de Fátima Campos Ferreira a fazer comentários pseudo-orgásmicos sem cabimento nem relação com o assunto. O que foi pena. Gravei o programa mas não consegui ver tudo pelo efeito da moderadora na minha tensão arterial. Por isso, por agora fico-me pelo conflito entre a fé e a ciência. À parte de um comentário muito acertado da Olga Pombo, que quem se arroga de responder a tudo não é a ciência mas sim as religiões, e cada uma à sua maneira, pareceu-me que ninguém tocou no problema fundamental. As religiões alegam muita coisa que a ciência recomenda rejeitar como mito ou ficção – milagres, nascimentos virgens, conversas com anjos ou deuses, vida depois da morte e afins – mas o problema principal é afirmarem saber coisas sem determinarem primeiro se são verdade. Isto é um erro, em ciência e em geral.

O Alfredo Dinis disse que a questão da existência de Deus não é científica porque não é testável; o Carlos Fiolhais parafraseou Galileu, que a ciência diz como vai o céu e a religião diz como se vai para o Céu; o Gaspar Barreira salientou que há cientistas crentes; e o João Varela defendeu que a religião e a ciência são domínios independentes tal como a arte é independente da ciência. Disto tudo, só o João Varela está parcialmente correcto. A arte e a ciência são independentes sempre que a arte não pretenda representar correctamente algum aspecto da realidade. Por exemplo, uma pintura abstracta ou um solo de guitarra. Mas se um documentário, uma história de ficção científica ou um romance histórico apresentam alguma falsidade ou especulação infundada com a pretensão de ser um facto, isso é cientificamente incorrecto. Só é independente da ciência aquilo que não tiver pretensões de representar qualquer aspecto da realidade.

A discussão sobre a incompatibilidade da fé com a ciência padece de três maleitas. A primeira é julgar-se que isto tem alguma coisa que ver com cientistas terem fé. Não tem, porque é trivial um ser humano aceitar umas coisas por fé ao Domingo e exigir evidências para outras durante o resto da semana. A segunda é a compreensível falta de paciência de muitos cientistas para discutir isto a sério. Alegar que são coisas separadas poupa uma data de trabalho, mesmo sendo óbvio que dizer como se vai para o Céu implica, no mínimo, dizer que sobra o suficiente de nós, depois da morte, para ir a algum lado. Isso não se pode justificar pela fé. A terceira, e pior, maleita é assumir-se uma definição arbitrária e demasiado restritiva de ciência. Por exemplo, que por a ciência exigir hipóteses empiricamente testáveis qualquer doutrina se pode safar de uma crítica científica se invocar hipóteses impossíveis de testar. Isto é, obviamente, um disparate.

A ciência é o método, sempre em aperfeiçoamento, para obter modelos que correspondam a aspectos da realidade. Podem ser modelos matemáticos, diagramas ou proposições; o que importa é que se ajustem o mais possível ao que pretendem representar. É neste sentido que “a Terra é redonda” é um modelo melhor do que “a Terra é plana”. Todos os restantes detalhes que caracterizam a ciência derivam de restrições que a nossa natureza impõe à realização deste objectivo. Por exemplo, os artigos científicos são publicados apenas após revisão pelos pares porque os seres humanos têm muito mais objectivos do que a procura de conhecimento. Para podermos confiar minimamente no que os cientistas escrevem é preciso exigir uma análise crítica independente. Mas isto não é uma fronteira que delimite a ciência, e seria um disparate dizer que algo (e.g. astrologia ou espiritismo) está num domínio independente só por não ter peer review. Se todas as pessoas fossem investigadores perfeitos, isentos e objectivos não era preciso mas, sendo como são, temos de nos precaver contra eventuais erros e aldrabices.

Passa-se o mesmo com a necessidade de testar hipóteses. Imaginemos que o nosso cérebro nunca podia conceber falsidades. Se assim fosse, qualquer afirmação em que pensássemos teria de ser verdadeira e não era preciso testar hipóteses para fazer ciência. Bastava concebê-las e pronto. A ciência humana precisa de testar hipóteses não por uma regra arbitrária e opcional, mas porque somos falíveis e facilmente concebemos falsidades. Por isso, não podemos procurar conhecimento sem mecanismos para corrigir erros. Quem afirma “Deus existe mas isto não pode ser testado” não está num domínio independente da ciência. Está a fazer má ciência. A menos que seja infalível, tem de ter mais cautela com o que afirma.

O objectivo da ciência é gerar conhecimento acerca da realidade. Tanto faz o assunto. Dos hábitos sexuais dos Cro-Magnon à natureza da consciência e ao destino do universo, se é real é pela ciência que o podemos modelar e descrever. Qualquer domínio da experiência humana será independente da ciência se não tiver pretensão de fazer o mesmo. Ficção, poesia, humor, música, o que for. Mas se alega saber verdades acerca da realidade então está no domínio da ciência e, tal como a ciência, tem de ter em conta as limitações de ser humano. Apesar de explicar imensa coisa sobre os atributos fundamentais da matéria, o bosão de Higgs foi considerado hipotético durante quase cinquenta anos e mesmo depois do trabalho de milhares de cientistas com a máquina maior e mais complexa jamais construída ainda exigem um desvio de cinco sigma antes de arriscar a dizer que ele existe. Deus não explica coisa nenhuma, não temos qualquer indício de que exista e, ao fim de uns milhares de anos de especulação infrutífera, até muitos dos seus proponentes já desistiram de o procurar (“não é testável”, dizem). No entanto, acham que qualquer padre pode dizer que Deus existe, como se soubesse do que fala, e que tal atitude não tem qualquer conflito com a forma como a ciência obtém conhecimento.

1- The Economist, Fantasy turned reality

Em simultâneo no Que Treta!

8 thoughts on “Treta da semana: Higgs e os padres.”
  • antoniofernando

    O Ludwig Krippahl continua a insistir na tecla de que a ciência é que valida ou não a existência de Deus quando refere, na parte final do seu texto: “…qualquer padre pode dizer que Deus existe, como se soubesse do que fala, e que tal atitude não tem qualquer conflito como a ciência obtém conhecimento”. Mas por que existiria tal conflito, em conceber que o Universo e a vida em geral pressupõem, muito mais lógica e plausivelmente, a existência de um Criador do que a absurda Teoria do Cego Acaso, segundo a qual o padrão generalizado de leis da natureza ocorreu porque sim ? A Natureza está moldada numa tal precisão de leis físicas, que o menor desvio na sua conformação implicaria a impossibilidade da existência do Universo e de toda a Vida. Aqueles que, sobre esta relação cosmológica de enorme simetria e rigor, pensam que foi fruto do acaso, estão a incorrer, do meu ponto de vista, numa conclusão totalmente absurda, mas, no entanto, acham que podem mergulhar nessa implausibilidade com o maior dos à vontades. Como se a sua posição de princípio contra a existência de Deus pudesse retirar-lhes a insensatez que demonstram quando asseveram que essas leis científicas rigorosas emergiram por elas próprias, sem nenhuma intervenção de carácter divino. Ora é precisamente aqui que homens como Newton, Galileu, Einstein e Charles Darwin não puderam deixar de considerar que essas leis físicas e biológicas não faziam sentido sem a pressuposição da existência de Deus, como o próprio Darwin enfatizou na parte final da sua Origem das Espécies e nas cartas posteriormente editadas pelo seu filho. A verdade é que a concepção de Deus é a mais plausível das hipóteses, para explicar o Universo e a Vida, contrariamente ao que o Ludwig postula.O conflito entre a verificação das leis cientificas e a existência de Deus em nada é contrário. No CERN, certamente que a maioria dos cientistas que lá trabalham será composta por crentes, como se extrai de um juízo presuntivo de mera probabilidade, retirado da habitual correlação estatística entre crentes e ateus. E certamente que, quanto ao bosão de Higgins, a maioria dos cientistas ficará encantada por, na sua qualidade de crentes, se maravilharem com a complexidade organizacional proveniente de um universo divinamente causado. Os cientistas ateus do CERN provavelmente acompanharão o Ludwig na sua mal costurada tese.Mas são poucos, muito poucos.A enorme maioria desses cientistas festeja e reforça a sua crença em Deus.

    • Ateu sim, e daí ?

      Existem tantos cientistas crentes quanto macieiras capazes de produzirem melancias.
      Você não se envergonha de fazer papel de bobo ?

      • antoniofernando

        O papel de bobo já te está bem entregue.E és tão destituído que nem sequer te envergonhas dessa menorização intelectual a que te vens constantemente exercitando.A um nível, aliás, tão baixo e mesquinho que será mais fácil existirem macieiras capazes de produzirem melancias do que seres capaz de usar o teu cérebro a um nível superior ao de um imbecil.

        • Cristão Verdadeiro

          Esqueceste-se de mudar de nick.

          • kavkaz

            O Gênesis fala de um tal “Deus”… O troca niks cínico antoniofernando rasgou o Gênesis e criou no seu lugar o “pressuposto”. É um nome um bocado estúpido. Mas foi criado à imagem dele!

        • Ateu sim, e daí ?

          acha que não consigo usar o meu cérebro a um nível superior ao seu ?
          Puxa vida. Aí, sim. Você ofendeu-me verdadeiramente.

  • kavkaz

    O comentário do multinicks cínico antoniofernando tenta
    negar o conteúdo da Bíblia, onde se escreve que foi “Deus” quem criou a matéria
    a partir do nada. Ora isto foi negado mais uma vez por Higgs ao dizer-nos da existência
    de uma partícula que explica a origem da massa das outras partículas
    elementares, o bosão. Portanto, a Bíblia está aldrabada. É o mínimo que as
    pessoas honestas poderão dizer desse livreco caído em desgraça até nas mãos do
    cínico antoniofernando que já rasgou o Gênesis, mas tem vergonha de repetir-nos
    essa maldade que fez.

    A natureza tem leis, ao contrário do “Deus” que os crentes
    criaram à sua imagem e que não respeita as mulheres dos outros e pode engravidá-las
    porque sim, pois lhe apeteceu.

    O que não for ao encontro das leis gerais da natureza pode perder
    o confronto. A natureza, por “pressuposição da existência de Deus” pelos
    crentes, não perdoará os desvios se conseguir!

    A Ciência diz-nos que não é preciso nenhum “Deus” para
    chegar aonde chegámos. Tudo funciona sem ingerências extraterrestres. Mas os
    crentes precisam de um gajo, pronto. E a
    religião faz-lhes essa vontade. Ela “pressupõe” e imagina a existência de “Deus”.
    E com o andar dos tempos o “pressuposto” fantasiado passa a ser levado a sério
    e a ser considerado como “real” mesmo, de tantas vezes repetirem tal
    pressuposto. Claro que o cínico antoniofernando não tem nada para confirmar a
    veracidade da sua teoria da existência do pressuposto. É só palavreado
    imaginado e fantasiado.

    Os cientistas que o multiniks cínico antóniofernado apresenta
    faleceram tantos deles sem já serem crentes em deuses. Mas esta verdade ele
    silencia, propositadamente. Custa-lhe falar Verdade. Esta dói e ele vive da fantasia
    e da festança à custa do engano.

    E a desfaçatez está também em dizer-nos que a maioria dos
    cientistas que trabalham no CERN serão crentes. Isso ele concluiu por “juízo
    presuntivo de mera probabilidade” ou seja, por chuchar no dedo e imaginação de
    que os cientistas estarão ao nível da religiosidade da sociedade geral, o que não
    é verdade. Poderia dizer-nos as coisas de forma simples em vez de usar palavreado
    de sete e quinhentos: “inventei”.

    A falta de rigor nas afirmações é apanágio dos crentes e tem
    a finalidade de viciarem as conclusões científicas. Ele partem de um “pressuposto”
    para depois adaptarem o conhecimento obtido ao seu interesse inicial
    fantasiado. É fazem a festa da irracionalidade!

  • GriloFalante

    Por muito que nos custe a aceitar, não resta a menor dúvida de que esta “guerra” ciência vs religião – designadamente a religião católica, até porque os gajos são teimosos que nem burros – já está ganha. E o vencedor é… A ICAR.
    Desde logo, porque tem toda uma parafernália de carneiros – perdão! de clientes – que, à menor notícia acerca dos avanços da Ciência não tem o menor pejo em vir berrar, como cabras desmamadas, que a ciência avançou… porque Deus o permitiu.
    Claro que NUNCA nenhum desses prosélitos conseguirá explicar por que razão o Deus, tão omni-não-sei-quê demorou tantos anos a “permitir” coisas que, para um Deus, é tão simples como arrancar um pelo do cu. Ou serão que não é assim tão simples?
    Deus demorou anos a ensinar – porque a ciência só acontece graças a Deus, não esqueçamos – que a Terra gira à volta do Sol, e não o contrário; e mesmo assim, houve quem se tivesse dado mal com o facto. Depois, Deus que, alegadamente, “criou” um “ser perfeito” – o ser humano (a padralhada “dixit”) não o criou suficientemente perfeito para, já naquela época, o próprio Homem ter inventado, por exemplo, um computador. Tá bem, talvez eu esteja a exagerar, mas nem ao menos, um ábaco?
    Ora bem, e é aqui que eu quero chegar: a ICAR, no seu estilo de “espera-aí-que-eu-já-te-agarro”, tem-se colocado, matreiramente, atrás da ciência. Depois, quando a Ciência dá mais um passo em frente, basta-lhe saltar da toca e berrar “foi Deus!”.
    Toda a gente sabe, porque a Bíblia o diz e Guerra Junqueiro confirmou, que a Terra foi criada a partir de uma catota do nariz de Jeová. Mas como a Ciência diz que não foi bem assim, eis que os saprófitas da ICAR ululam: “foi Deus”.
    Assim, o diálogo entre a Ciência e a Religião está cada vez mais comprometido. Porque em última ratio, quando as religiões não tiverem mais argumentos, resta-lhe sempre um: “Está tudo muito certo. Mas olhe que foi Deus”.

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