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  • 9 de Novembro, 2010
  • Por Carlos Esperança
  • Literatura

O S. Roque_1 (Crónica)

Ficou-me de criança a impressão de que a ermida do S. Roque, na margem esquerda do Côa, estava alcandorada num monte enorme e que ao sacrifício da subida se deveria a recompensa dos milagres.

Hoje, ao passar na auto-estrada, sobre a ponte rodoviária, surpreende-me lá em baixo uma capela exígua abandonada num pequeno cabeço, com a vegetação a apropriar-se da área da devoção e dos negócios. Onde está um chaparro negociava burros um cigano, onde a Lurdes começava às dez a aviar copos de meio quartilho, para terminar às 3 da tarde com o pipo e a paciência devastados, medram giestas e tojos e o abandono tomou conta do espaço onde estava sediada a feira e se realizava a festa.

Onde os solípedes e as pessoas alcançavam não sobem ainda os automóveis.

Eu gostei, ainda gosto, de romarias. Mesmo com milagres cada vez mais raros, a acontecerem na razão inversa dos louvores, encontramos sempre caras que atraem afectos e nos devolvem memórias. Às vezes não são quem pensámos, os anos passam, são filhos, mas vale a pena, falam-nos do que nós sabíamos, são da terra que julgámos.

Há mais de cinquenta anos o Rasga foi ao S. Roque com a mulher, ela cheia de fé, ele com muita sede, como sempre, até a cirrose o consumir. A feira e a romaria partilhavam a data e o espaço. Não sei das promessas dela, as mulheres lá tinham contratos com os santos, não era costume explicitá-los, ele tinha as mãos cheias de cravos, coisa de rapaz, julgava que era feitio. A mulher dissera-lhe que havia de ir ao S. Roque, o Maravilhas curou-se, o Ti Velho também, pelas outras aldeias ia a mesma devoção, os resultados eram de monta.

O Rasga até tinha pensado no ferrador, não para ferrar o macho, ele queimava os cravos, mas eram grandes as dores, ficavam as mãos com marcas piores que a cara do Medo com as bexigas, e a febre, às vezes, levava a gente. Já se acostumara, não valia a pena ralar-se, o pior era a mulher a azucrinar-lhe os ouvidos, tens de ir ao S. Roque, se trabalhasses em vez de beberes havias de ver o incómodo, eu faço-te companhia, és um herege, uma oração, uma pequena esmola, dois cruzados, um quartinho no máximo, o S. Roque não é interesseiro, vens de lá bom, levas a burra que já mal pega em erva, enjeita os nabos, não temos feno, há-de morrer-nos em casa, além do prejuízo vais ser tu a enterrá-la, podias vendê-la.

E lá foram os três, que a burra também contava, partiram quando a Lurdes e a Purificação já levavam uma légua de avanço, tinham bestas lestas e levantavam-se cedo, era mister que se antecipassem aos homens que quando chegavam logo queriam matar o bicho e os negócios não podiam fazer-se sem haver onde pagar o alboroque. O Rasga, mal chegou, pediu três notas pela burra a um da Parada que lhe ofereceu duas, a mulher do da Parada ainda o puxou, homem para que queres a burra, o rachador do Monte meteu-se logo, isto não é assunto de mulheres, tinham que fazer negócio, tem que tirar alguma coisa, não tiro, dou-lhe mais uma nota de vinte, tiro-lhe essa nota, nem mais um tostão, e o do Monte a dizer racha-se, vários a apoiar, fica por duas notas e meia, o rachador a agarrar-lhes as mãos, estranha união, e a fazer com a sua um corte simbólico, deram as mãos estava feito o negócio, um tirou cinquenta o outro deu mais cinquenta, consumada a liturgia logo assomou meia nota de sinal, faltavam duas que apareceriam quando lhe entregasse o rabeiro, vai uma rodada, paga o vendedor que recebeu o dinheiro, primeiro um copo para o comprador, o rachador a seguir, depois para todas as testemunhas, outra rodada paga o comprador, outra ainda, esta pago eu, diz um da Cerdeira, não quero mais diz o de Pailobo, morra quem se negue, praguejou um da Mesquitela, olha vem ali o Proença da Malta, grande negociante, como está, disseram todos, uma rodada, pago eu, diz o Proença, mas a minha primeiro, exigiu o da Cerdeira com agrado geral,  e ali ficaram a seguir os negócios, os foguetes e a festa, e a tirar o chapéu e a agradecer ao Proença quando este foi dar a volta pelo sítio do gado onde já se encontrava o Serafim dos Gagos a disputar-lhe o vivo e a pôr a fasquia aos preços.

Findas a feira e a festa, esta terminou primeiro, um dos padres ainda tinha de levar o viático a um moribundo de Pínzio, o Rasga e a mulher vinham consolados, ela com a missa e a procissão, ele com duas notas e meia no bolso e o buxo cheio de vinho, ela a pensar na vida e ele a cambalear.

Algum tempo depois perguntei ao Rasga o que era feito dos cravos. Ficaram no S. Roque, menino, ficaram no S. Roque.

4 thoughts on “O S. Roque_1 (Crónica)”
  • antoniofernando

    Ainda me recordo das ” Pupilas do Senhor Reitor”, de Júlio Dinis, de que muito gostei, sobretudo dessa figura extraordinária do médico João Semana. Que bom era poder voltar aos tempos da mais primitiva ruralidade. Lembro-me dos meus tempos de menino em Arcos de Valdevez, caminhando por calçadas de pedra e veredas aparentemente intransitáveis, ajudando às vindimas ,entre o pessoal mais crescido, para o efeito contratado. Recordo-me também de uma bela Páscoa passada aí,nos Arcos, e como eram puros e aconchegantes esses tempos. Foi na contemplação das noites estrelas dessa linda terra, hoje já mais urbanizada e desfeiada ,que senti a convicção da existência de Deus, numa perspectiva eminentemente deísta, desimpregnada de qualquer antropomorfização das chamadas ” religiões reveladas”. Depois nas temporadas setembrinas das Termas de Monfortinho e mais tarde na lonjura da planície alentejana reforcei essa minha íntima convicção teísta, que ainda hoje perdura e que para sempre me acompanhará. Claro que depois da ” perda da inocência”, já me virei mais para as leituras ” proibidas” da ” Cidade e as Serras” e do polémico ” Crime do Padre Amaro”, do grande Eça, cujo livro a Igreja Católica em 1875 fustigou.O texto do Carlos Esperança está primoroso e eu fico muito feliz com isso. Parabéns e obrigado por me ter feito retornar ao meu passado juvenil. Os meus memes egoístas bem me queriam conduzir a outros matraqueares, mas eu coloquei-os em sentido, não fosse o Richard Dawkins ficar zangado comigo… 🙂

  • Anónimo

    EM PEQUENO TAMBÉM TIVE DOIS CRAVOS NUMA MÃO.
    SEMPRE OUVI BARBARIDADES PARA OS FAZER DESAPARECER.
    UM BELO DIA DEI CONTA QUE TINHAM DESAPARECIDO…
    GOSTAVA DE TER CONHECIDO O RACHA…MAS, NÃO FUI AO S. ROQUE.

  • Elmano1948

    Aprecio imenso estas histórias do CE. Pela qualidade literária, mas também porque me obrigam a consultar o dicionário e porque me lembram coisas vividas. Nasci em 1948. Lá pelos anos de 1956 grassava pela zona a Poliomielite, desculpem-me se esta não é a grafia correcta. Eu tive sorte com é hábito dizer-se. Porque só apanhei ostiomielite (desculpem-me…etc). Depois de muitas consultas e com operação já agendada para o hospital dos Olivais em Coimbra. a tia Conceição, minha mãe lembrou-se de fazer promessa ao S. Filipe Neutel que tinha uma capela lá no alto serra. Duas operações, muitas injecções e muitas dores depois, lá fiquei curado mas com algumas cicatrizes na zona do fémur esquerdo, que ainda hoje perduram. Claro que a cura só podia ficar a dever-se aos cuidados do boneco que repousava lá pelo altar da capela do cimo da serra. Quando chegou o dia do dito santo, lá marchámos pela matina que a distância era muita. Quando já íamos no meio da serra, a tia Conceição, eu e várias beatas da aldeia, eis que somos ultrapassados pelo tio Flávio, também conhecido pela alcunha de Juíz pelas sentenças que costumava dar na discussão de assuntos da aldeia. Ao ultrapassar o grupo, limitou-se a um simples bom dia, e lá continuou apressado a subir a serra. Quando já ia a uma distância considerável, acharam por bem as beatas lamentar que o senhor fosse com tanta pressa que nem tivesse largado uma das suas costumeiras sentenças. Como único macho do grupo, senti uma expontânea solidariedade pelo homemzito que não se poderia defender das acusações das betas. E vai daí interroguei-as nos seguintes termos: Sabem lá vocês se o homemzito fez promessa de subir a serra a correr? Depois de uma risada geral, lá veio a descompostura: Viram! Já o fedelho tem catarro! No regresso, depois de ter rapado frio toda a noite lá na capela do alto da serra, depois de ter entregue uma vela em forma de perna ao sacristão, já vinha pensando no porquê de todo aquele frete, se tinham sido os médicos a curar-me. Penso que era já a dúvida como princípio para o meu ateísmo a vir ao de cima.

  • carpinteiro

    Na catequese aprendi o porquê dos cravos nas mãos: – Masturbação!
    Aos rapazes fazia crescer cravos, às raparigas, pêlos. Garantiam-nos as pias catequistas.

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