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  • 7 de Agosto, 2014
  • Por Carlos Esperança
  • Literatura

A Beira Alta e a fé, nos verões de outrora (crónica)

Não me matem a burra, por amor de Deus!

Na mitologia grega havia um deus que necessitava de mergulhar as mãos na terra para recuperar as forças. Eu, que não sou deus, nem crente, sinto a necessidade dos mitos e vou procurar nos sítios que agonizam o resto de vida que ali jaz e encontrar no húmus das minhas origens as forças de que careço.

Abalámos muitos dessas terras que eram viveiros de gente e são hoje a antecâmara da morte dos que regressam para ficar.

Já não se discute a água da presa com a sachola nem se guardam alfaias religiosas com a escopeta carregada e a navalha, de ponta em mola, à mão. A fé esvaiu-se, não se mede em decibéis, oferendas ou novenas, nem em quantidade de dias de exposição do Senhor.

Em tempos, quando o estandarte da igreja dormia nas fragas que separavam o Freixinho do Lamegal, a anexa que disputava à sede de freguesia a glória de exibir o seu pendão para proteger as searas, com moços possantes a defenderem a crença e o estandarte, que os costumes mandavam revezar, e que o impulso da fé desrespeitava, eram as procissões que tinham primazia sobre as outras manifestações litúrgicas. Hoje falo do concelho de Pinhel e podia falar do Sabugal, Almeida ou Figueira de Castelo Rodrigo, terras donde trouxe a força o menino que se fez velho.

O meu tio Manuelzinho contava-me coisas de estarrecer quando a fé ainda vicejava nas aldeias e os padres abundavam para a liturgia. Não mais esquecerei a graça com que me contava a procissão do Carvalhal da Atalaia, que acabou mal. Os andores, os devotos e a fé não cabiam nos limites do casario. Era preciso percorrer caminhos de terra batida, na peregrinação cuja distância estivesse à altura da piedade dos paroquianos.

Foi num mês de agosto, ainda não havia francos franceses, suíços e marcos a ostentar a competição dos emigrantes. A procissão saiu do povoado para a ronda tradicional do Senhor dos Passos, com o padre sob o pálio, a resguardar a tonsura e a custódia, com os mordomos aprumados e a população em filas, separada por género e alinhada por escala etária. Rezava-se e cantava-se, alternado com algum latim para fazer sobressair o pároco enquanto os anjinhos eram admoestados, para não falarem, pela catequista que os guardava.

Num desses verões, já a procissão tinha invertido a marcha a caminho da aldeia quando, inopinadamente, se armou uma trovoada que parecia o dilúvio, sem a arca de Noé, para se recolherem nela os bons, enquanto a terra se inundava.

Os mancebos pousaram o Senhor dos Passos, enquanto os andores pequenos seguiram o exemplo, e os guiões foram encostados à árvore mais próxima. O padre, com a custódia, fugiu e manteve a proteção do pálio com os que empunhavam as varas a esticar o pano, transformado em guarda-chuva coletivo. Os anjinhos, na pressa, perdiam as asas e cada paroquiano procurava uma árvore de copa ampla com a população dispersa pelo campo e a parafernália pia abandonada no caminho.

Já se clamava «milagre!» quando o sol, de repente, substituiu de novo a chuva que se afastou a desgraçar videiras e a tornar inútil a vindima. Os paroquianos lá voltaram ao sítio donde fugiram e, ao chegarem, o horror deixou-os apopléticos.
Com a chuva esboroou-se o Senhor dos Passos que alguns fiéis haviam de julgar sólido, quiçá com músculos e ossos, desfeita a farpela puída pelo tempo, onde o manto refulgia. Do interior saiu a palha que lhe dava forma e uma burra, atraído pelo cheiro, mastigava, com os cascos sobre o manto e a pachorra de quem nasceu sem entendimento para a fé.

Descoroçoados, atiraram pedras ao animal, que insistia em mastigar a palha tantas vezes benzida, com tal sanha, que, da multidão, uma mulher implorou, por amor de Deus, que não lhe matassem a burra, enquanto esta se afastava a trote a mastigar o último naco do Senhor dos Passos.

Agosto_2014

9 thoughts on “A Beira Alta e a fé, nos verões de outrora (crónica)”
  • Zeca Portuga

    Ainda faz redacções, este Mestre Escola… o desenvolvimento cognitivo parou-lhe nos 60!

    • Zeus

      Vai-te, labrego.

      • Zeca Portuga

        Sim, sou “labrego” – como se diz na Galiza – o que quer dizer: rural, camponês, agricultor… sou mesmo, e tenho um certo gosto nisso!

        Já “vomessê” é lôbrego, bolorento e rançoso.

        Enfim… diferenças substanciais entre nós, além de eu ser um crente – logo um ser humano -, e “vomessê” ser ateísta – logo muito mais animai do que humano.

  • Molochbaal

    Para comer deus, devia ser uma burra muito poderosa.

    • Deusão

      A burra come e caga deus. Qual a diferença entre ela e os asnos crentóides ? eles comem um deus farinháceo e depois o cagam. Eu não como a rodela de farinha, mas estou cagando para deus.

  • Deusão sim, e daí ?

    Perto de Belo Horizonte ocorreu algo semelhante há alguns anos. Em uma vidraça qualquer, de uma casa qualquer, um idiota crentóide qualquer vconseguiu “ver” na sujeira da vidraça a imagem de xeçuis, esse mesmo, o fodão, e como os crentóides são telepatacoadas ( telepata otário) rapidamente reuniram-se em torno da casa da vidraça. Aconteceu de alguns moleques acidentalmente chutarem uma bola e a dita cuja – fabricada por lúcifer equipamentos esportivos – calhou de atingir justamente a vidraça santa. Qual a reação dos asnos ccrentóides ? sim, essa mesmo, queriam por que queriam linchar os guris. Para dar exemplo do amor cristão, a boa fé do cristiacinismo. Não fosse a mãe do autor da façanha se intrometer – e levar uma pancadas-, haveria mais um anjinho no céuzinho cor de rosinha dos asnos.

    • Molochbaal

      Curioso. Eu também tenho essa experiência mística.

      No chão da minha casa de banho, ao pé da cagadeira, um azulejo manchado parece mesmo jesus. O azulejo ao lado parece um golfinho, mas de certeza que o que parece jesus terá um significado místico qualquer. Deus estará a tentar comunicar comigo ? Porquê na cagadeira ? Tenho de perguntar ao fifi, ele é especialista em milagres.

      • Zeca Portuga

        Já experimentaste lavar a casa banho?

        • Deusão

          Se ele desfizer a imagem de xeçuis os crentóides da vizinhança- você inclusive – providenciará uma viagem para o céu, sem escala, para o infeliz proprietário do azulejo cagado.

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