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  • 15 de Fevereiro, 2014
  • Por Carlos Esperança
  • Literatura

Viagem de Autocarro (Crónica)

Há tempos entrei num autocarro, tendo-me sentado num banco ao lado do de um padre católico, do outro lado da coxia.

Olhei aquele rosto triste de um homem de setenta e poucos anos, com o colar romano a apertar-lhe o pescoço como o cincho onde se espremia o queijo para extrair o soro. Há muito que não via tal adereço na via pública. O uso deve ter-se mantido com a resignada dedicação ao múnus.

Não pude deixar de apreciar aquele homem só, a caminho de alguma casa da Igreja ou de um ritual qualquer, já sem sentido, ou que nunca o teve, e de que a sociedade se desinteressou.

Que sofrimento ajudou a desenhar aquelas rugas? Quantos desejos reprimidos e anos perdidos com o pescoço apertado por um colar e a lapela ornada com uma cruz?

Terá amado? Teve sonhos? Realizou-os? Próximo de mim estava um cidadão solitário, com olhos vagos e o ar de quem cumpriu a vida sem a viver.

Seria preciso ser cínico ou mau para não sentir compaixão por quem dedicou o tempo e a juventude a uma quimera, perdeu a vida perseguindo o sonho do Paraíso e se aproxima do fim da estrada sem saber porque a percorreu.

Somos ambos da mesma massa. Com poucos anos de distância ensinaram-nos a ajoelhar e a rezar. Eu levantei-me, ele ficou de joelhos. Eu vivi a vida, amei e passei incógnito na estúrdia, sem um colar que pressupõe a trela e sem a cruz a que não terão faltado espinhos. Ele imolou a vida por um mito e esqueceu-se de si próprio, por coisa nenhuma.

Um homem nunca anda só, é certo, traz consigo as memórias que guarda e os sonhos que acalenta mas, com o passar dos anos, sobram memórias e mingua o tempo para sonhar.

É injusto que aquele homem que sofreu o que eu não sofri e trocou a vida que recordará por outra que lhe criaram, tenha os mesmos sete palmos de terra à espera, sem um filho que o recorde, sem alguém que o chore. Por um deus que inventaram para lhe tramar a vida.

Suportou jejuns, abstinências e mortificações, e passou os dias guardando horas para a leitura do breviário. Quanto terá sofrido na esperança de poder atenuar o martírio do seu Deus?

1 thoughts on “Viagem de Autocarro (Crónica)”
  • Molochbaal

    Ora, caro Esperança, esqueces-te que, na outra vida, o tipo vai ter SETENTA VIRGENS para o satisfazer.

    Ah… Não… Espera… Esse, é o OUTRO paraíso.

    Bolas, é que são tantos paraísos que eu fico confuso.

    Ainda bem que a igreja começou a consolidar, renegociando o after life, como as dívidas dos bancos, abolindo o limbo, para simplificar.

    PS

    Vocês poderão pensar que o paraíso muçulmano leva um grande avanço, em matéria de satisfação do cliente.

    Mas a verdade é que a revelação não especifica a QUALIDADE das virgens. Imaginem que as virgens são como a madre teresa de Calcutá.

    Nesse caso talvez fosse mais satisfatório prometer aos crentes uma assinatura eterna da revista Gina.

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