Loading

Confusões.

O Vítor Cunha faz umas alegações de onde conclui que os ateus que se associam são “maluquinhos”. O texto é desconexo e não se percebe o raciocínio, se algum teve por trás, mas é um apanhado conveniente de disparates e aproveito para agradecer o trabalho que o Vítor teve a compilá-los. Vou seguir a ordem do texto, se bem que seja praticamente indiferente.

O Vítor alega que é paradoxal e irónico que os ateus formem associações «pela colectivização de noções individuais», transformando «os movimentos ateístas em movimentos religiosos»(1). A tese de que é contraditório que movimentos ateístas se constituam em associações dá a impressão de que o Vítor nem leu o que escreveu, mas o problema fundamental é outro e recorrente. Quando se fala em ateísmo é natural pensar em religião. O que faz sentido, porque foram os religiosos que inventaram o termo “ateu” na premissa de que não adorar um deus é uma coisa extraordinária em vez de algo tão banal como não adorar o Pai Natal ou o Homem Aranha. Mas isso leva muita gente a precipitar-se e assumir que uma associação ateísta é análoga a uma organização religiosa, que regula e condiciona as crenças dos seus afiliados. Se, em vez disso, o Vítor pensar em associações como a Associação Portuguesa de Astrónomos Amadores ou a Associação para a Conservação do Lince Ibérico facilmente perceberá que a Associação Ateísta Portuguesa (AAP) não exige uma «colectivização de noções individuais». É apenas uma organização de pessoas que se afiliam por já partilharem um tema que lhes interessa e sem sacrificar qualquer individualidade.

Depois, o Vítor conclui que os ateus associados têm de adoptar um «deísmo de [E]stado» porque só assim podem rejeitar as religiões teístas sem aceitar «todas as outras religiões não teístas». A ideia parece ser a de que, se o ateu rejeita os deuses, então tem de aceitar tudo o que não inclua deuses. Além da inferência ser estranha, revela novamente o erro de assumir que o ateísmo é análogo ao teísmo. A crença num deus ou deuses é o fundamento da religião correspondente e, normalmente, é peça central na vida desses crentes. É algo que, para o crente, antecede os seus valores, condiciona os seus hábitos, justifica rituais e orienta decisões. O ateísmo não é nada disso. Na maioria dos casos, o ateísmo é um mero efeito secundário do espírito crítico com que uma pessoa avalia o que lhe dizem. Qualquer pessoa que pense nas crenças religiosas de forma imparcial e crítica facilmente conclui que nenhuma delas é plausível. Tal como acontece com a astrologia, falar com os mortos ou OVNIS a raptar vacas. O ateísmo destaca-se do cepticismo genérico apenas por rejeitar certos mitos que muita gente leva a sério, mas não há contradição nenhuma em rejeitar alegações sem fundamento independentemente de terem ou não terem deuses. Antes pelo contrário. Contradição é fazer de uma delas excepção só porque calha ser aquela que se aprendeu a aceitar desde pequeno.

O Vítor critica também a Associação Ateísta Portuguesa (AAP) por exigir que a Igreja Católica permita aos baptizados renunciar a sua afiliação. Segundo alega a diocese do Porto, uma alteração do direito canónico em 2009 deixou de permitir o “abandono da Igreja por acto formal”, pelo que já não aceitaram o pedido de apostasia do Carlos Esperança (2). O Vítor, novamente baralhado, acha que «A ideia do desbaptismo é, em si mesmo, uma ideia religiosa: reconhecem a existência de algo em si, neste caso o baptismo, que tem que ser removido», mas não é nada disso. Citando a Comissão Nacional de Protecção de Dados, é apenas «o direito de exigir que os dados a seu respeito sejam exatos e atuais, podendo solicitar a sua retificação»(3). Se incluírem o meu nome em listas de cardiologistas, ou de astrólogos, videntes ou jogadores profissionais de hóquei no gelo, eu tenho o direito de pedir aos responsáveis que corrijam o erro. O problema de eu constar como católico na lista de uma paróquia é análogo, e o meu direito à correcção desse erro implica apenas reconhecer que se trata de um erro. Sou ateu e, como fui baptizado à traição antes de poder falar por mim, sou apóstata. É isso que deve constar no registo.

Por fim, o Vítor chama-me “maluquinho” porque eu e outros associados da AAP somos «pessoas que não acreditam em Deus e, em simultâneo, assumindo que a Sua não existência pode ser provada». No sentido lógico do termo, não se pode provar nada acerca da realidade porque a prova é um processo formal de inferência que só é válido dentro de um sistema lógico formal. Nesse sentido, não posso provar que Deus não existe, nem que Odin não existe, nem que o Pato Donald não existe. No entanto, isto não quer dizer que não possa concluir com confiança que estas coisas não existem. Afinal, também não posso provar que a água da torneira não está envenenada ou que o puxador da porta não está ligado a um cabo de alta tensão mas isso não me impede de viver o quotidiano com a confiança de que, tanto quanto sei, não vou morrer electrocutado por ir à casa de banho nem envenenado por beber um copo de água. O meu ateísmo é uma consequência trivial deste princípio. Tanto quanto sei, o tal Deus que o Vítor escreve em maiúscula é apenas mais um de muitos deuses que as pessoas têm inventado para contar histórias, para se consolarem, para tentarem perceber o que lhes acontecia, para se armarem em importantes ou para enganarem os outros. Esta conclusão parece-me bem menos “maluquinha” do que assumir que não posso saber nada da inexistência do Pato Donald, do veneno na água da torneira ou de qualquer um desses deuses.

1- Vítor Cunha, Associações Socialistateístas
2- Diário de uns Ateus, Ateus querem “despabtizar-se”
3- CNPD, Direitos dos Cidadãos.

Em simultâneo no Que Treta!

10 thoughts on “Confusões.”
  • Molochbaal

    “não posso provar” “que Odin não existe,”

    Acho bem que não, porque eu vejo-o todos os dias.

    É certo que responde quando falo com ele.

    Mas que canta muito bem, canta.

    https://www.youtube.com/watch?v=3sB_-rxMtAM

    • Molochbaal

      Errata.

      Queria dizer o Wotan não fala comigo, claro.

      PS

      Caro Ludwig, não se fie muito na água.

      ” “Aldeias de câncer” têm aparecido em Henan, Anhui, Sichuan, Guangdong, Heilongjiang e Shandong.

      De acordo com reportagem da Voz da América, as águas subterrâneas na região de Huabei conteriam metais pesados muito acima dos limites permitidos, incluindo mercúrio, cromo, cádmio e chumbo.”

      http://www.epochtimes.com.br/agua-da-china-esta-envenenada-governo-ignora-as-causas/#.UvKN9RyPVeU

      PS II

      E se eu fosse a si, também não confiava em maçanetas.

      “O acidente ocorreu em outubro de 2005, no Município de São Benedito, a 324 Km de Fortaleza. Conforme os autos, um fio de alta tensão se desprendeu do transformador e energizou a instalação elétrica da residência da vítima. O agricultor acabou sendo eletrocutado ao colocar a mão na maçaneta da porta.”

      http://blog.opovo.com.br/blogdoeliomar/coelce-e-condenada-a-indenizar-familia-com-r-150-mil/

      • Molochbaal

        “Afinal, também não posso provar que a água da torneira não está envenenada ou que o puxador da porta não está ligado a um cabo de alta tensão mas isso não me impede de viver o quotidiano com a confiança de que, tanto quanto sei, não vou morrer electrocutado por ir à casa de banho nem envenenado por beber um copo de água. ”

        Ludwig dixit

        Caro Ludwig, eu nem em mim confio, quanto mais numa maçaneta ou num copo de água.

        Mas enfim, deve ser bom viver com certezas absolutas acerca de tudo.

        • GriloFalante

          Molochbaal, isso não se faz, é usurpação! Nem deste tempo ao idiota de serviço. É muito bem feito se ele amuar e não comentar. Nem que seja “só para vos pôr os nervos em fanicos, ”

          (António Fernando, aka multiniks, num momento de fraqueza.)

          • Molochbaal

            Será que estou a ficar como ele ?

            Será que aquilo se pega ?

            A fifisise será contagiosa ?

            Meu deus, (não provado) se isso acontecer, prometam que acabam comigo antes !

          • GriloFalante

            Olha, afinal não amuou. Deste-lhe a chupeta, foi?

  • David Ferreira

    Que grande confusão vai na cabeça deste Vítor Cunha. Quase ao nível, diria, de um Ray Comfort ou de um Ken Ham.

    • Molochbaal

      Eu encontro muitas falhas no pensamento do krippahl – nomeadamente aquela de confiar cegamente em certas suposições, apenas porque sim.

      Que a água nunca pode estar envenenada, que nunca vai apanhar um choque eléctrico e muitas outras infantilidades, que qualquer adulto tem como possíveis.

      Mas confesso que esse Cunha não tem um único argumento de jeito.

  • Tolo_Mor

    Deus como Enigma Absoluto é algo que o Ludwig nunca deve ter lido. Anda muito desatento às novas teses teológicas do DduA.

You must be logged in to post a comment.