Loading

Carta aberta de um ateu ao Papa Francisco

Vossa Santidade,

Permita-me a cortesia de um cordial tratamento pelo sublime, mas exigente, axiónimo pelo qual passou a ser intitulado após a recente promoção, designação essa que pressagia a seguinte distinção, a póstuma, que, não duvido, se concretizará por intermédio de uma inexplicável violação das peculiares leis naturais que regem tão somente os processos biológicos dos anhos que se apascentam exclusivamente de fé católica.

Saiba V.S. que, como ateu, tenho assistido com curiosidade ao seu ainda breve papado. Não porque tenha particular interesse no modelo de marketing governativo por que optou pastorear, nem porque esperasse algo de admiravelmente novo, fresco que fosse, dos seus discursos. Estes apenas suscitam inconscientes murmúrios de espanto às persuadidas bocas abertas que o adulam de baixo para cima na praça de S. Pedro. Mas esses passeriformes e insaciáveis filhotes que recusam abandonar o ninho abririam sempre a boca a qualquer ave que os sobrevoasse com sustento, fosse incenso, mirra ou larva do pinheiro.

Dirijo-me a si porque teve a amabilidade de publicamente mandar reservar uma parcela de céu a todos os que, dotados de razão ou inato bom senso, por norma não negoceiam desígnios de férias em locais paradisíacos com agências de viagem duvidosas. Reserva essa, note-se, que um subalterno de V.S. prontamente se encarregou de rescindir, desautorizando-o à revelia, alegando para tal cometimento a falta de idoneidade moral dos interessados. Saiba que não apreciei o gesto, embora outros o tenham enaltecido. E não o prezei pela discriminação e preconceito implícitos para com todos os hereges que, como eu, não se deixam levar pelo consumismo desenfreado que a publicidade enganosa engendrada pela instituição que comanda por norma despoleta. Tive a desconfortável sensação de que o local que me fora outorgado teria demasiadas semelhanças com os lugares de estacionamento reservados a deficientes… Com sinalização a condizer! Entenda por isso o motivo do meu desagrado quando a meliantes, loucos, cegos e surdos lhes vejo atribuídas as bem-aventuranças de um terreno virgem de sinalização mediante o pagamento vitalício de periódica benzedura ou genuflexão, obrigação que a condição de evoluído e entufado bípede me dificulta amiúde.

Sei que manifestou intenção de visitar esta pobre República com o intuito de venerar a sorumbática estatueta dessa senhora que uma irrefletida visita noturna a angelical legionário romano converteu, muito a posteriori, em miraculosa artista do Cirque du Soleil, por obra e graça do espirito espanto. Coroada Rainha de Portugal na cova em que iria obrar vasta multinacional de culto, tal é a magnificência com que atua na copa das árvores que secundariza todas as aspirantes a atrizes a quem o infalível espírito crítico de V.S. continua a impedir o protagonismo na representação das homilias. Por mim atribuiria o Óscar de 2013 a Malala Yousafzai, essa sim uma real, enérgica, credível e corajosa representante de todas as mulheres que sabem não estar mortas. Mas gostos são gostos. Saiba ainda V.S. que da monarquia apenas nos resta sonâmbula hereditariedade, Dom Duplo Pio, tão Pio de linhagem como de devoção, mas cuja dicção se desarticula irremediavelmente perante a sobriedade das pouco castas glândulas mamárias da República, implantadas a 05 de outubro de 1910, que lhe surripiaram a mama e o reinado.

Saiba V.S. que será muito bem recebido, como é apanágio deste catolaico povo. É que somente as reses mais estonteadas carecem de pastor do berço ao féretro e nós, infelizmente, ainda o aguardamos, desnorteados, por entre um nevoeiro que nem vai nem sai de cima.

 

Atenciosamente, disponha sempre deste simples ateu que não o venera.

7 thoughts on “Carta aberta de um ateu ao Papa Francisco”
  • Carlos Esperança

    Bem visto.

  • veradictum

    Acho este texto simplesmente magistral. Parabéns ao ilustre sr. David Ferreira.

  • Tolo_Mor

    ” Bem visto” disse o Esperança. Poucochito ou sinónimo de disfarçada inveja ?

    • Zeus

      Tu bem tentas destabilizar… Ainda não te apercebeste que não são todos como tu, mesquinhos? Muda de nick. Esse já era!

  • JoseMoreira

    Parabéns, David Ferreira. Caneta fina e certeira. Apresento-lhe a minha inveja que, porque sou ateu, não é pecado mortal. Nem pecado, sequer.

  • Jes Cristo

    A humanidade só se emancipa quando se libertar de credos e religiões e de todos os que usam estes mitos para subjugar, escravizar e dela se alimentarem.
    Há que lutar para que as crianças e os jovens sejam educados e instruídos de
    modo a poderem vir a fazer livremente as suas próprias opções políticas e
    religiosas.
    Escravizá-las a religiões e a filosofias políticas é condená-las a não serem livres, a não terem vontade própria e a serem psicologicamente dependentes.
    Aos meus filhos procurei educá-los e instrui-los sem os doutrinar em quaisquer
    religiões e sem as levar a optarem por quaisquer filosofias políticas, antes
    porém ensinei-os o melhor que pude e dei-lhes todos os meios ao meu alcance para conhecerem e saberem sobre religiões e política e procurando sempre impedir quaisquer interferências de catequização religiosa e política.
    Nunca me fartei de lhes dizer que se um dia fizerem opões religiosa e políticas que o façam de livre vontade e com convicção.
    Hoje os meus filhos, já adultos, ainda não tomaram quaisquer opções religiosas e quanto a políticas têm as suas tendências, mas confessam sentirem-se verdadeiramente livres e sem constrangimentos psicológicos.

You must be logged in to post a comment.