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Por nossa grande culpa!

Os artigos semanais de João César das Neves são tão prazenteiros e coerentes como a leitura de qualquer página do Malleus Maleficarum. Fantasiosos na interpretação da realidade, ambíguos na significância, devotos até à medula doutrinária e repugnantes até ao vómito existencial. Não há como tentar sequer ser condescendente com a sua ulcerosa linha de pensamento. Ignorar JCN seria, porventura, um ato terapêutico, mas nunca analgésico.

O artigo desta semana dedica-se ao achincalho dos que reclamam em nome dos pobres e da própria pobreza para seu benefício, sobretudo os que representam essa impúdica classe média que se auto agraciou com lascivas e imorais regalias ao longo dos últimos e férteis anos de fartar vilanagem; esses gananciosos que tiveram o desplante de ousar o direito à conquista de uma dívida vitalícia para compra de habitação própria, meio de transporte particular, educação para os filhos e saúde para todos, essa classe que atrai “naturalmente a graça dos eleitos”!…

Andamos todos equivocados. Porque, a fazer fé em JCN, a finalidade imediata da retórica desses hipócritas não é aliviar os pobres mas atacar o neoliberalismo, rejeitar a troika, essa filantrópica senhora, derrubar o governo, combater a reforma do Estado, o orçamento com letra maiúscula ou outro qualquer decreto particular que particularize a complexidade burocrática da questão. Porque não são os pobres que inundam as ruas com manifestações. São os que usurpam a sua condição! Os pobres, esses miseráveis, não têm voz ou influência e como captar auditório é um ativo que falta aos indigentes… (aos indigentes, note-se!), a miséria só pode servir como pano de fundo para manifestos doutrinais. Não, os irritantes oportunistas panfletários que se manifestam pelos seus direitos não conhecem a indigência, não lhe sabem o sabor, não lhe conhecem a cor. Apenas se servem dela como desavergonhado veículo de transporte para os seus egoístas objetivos, dos quais só eles parecem beneficiar… Resta-nos então a caridade, a sucursal canonizada da solidariedade, para amenizar o estrago e alimentar a plebe a restolho. Palavras leva-as o vento e barrigas cheias de ar não falam, roncam.

Mas chega de masoquismos que nem a ironia aqui serve como antidepressivo. Lá para o fim da homilia, JCN consegue sossegar-nos o espírito e mortificar-nos a vontade, a mim pelo menos que vislumbrei a carapuça a pairar-me o cocuruto… Diz que há muito que é a Igreja, não o governo, a tratar dos necessitados. E eu compreendo. Dos pobres de espírito há muito se encarrega a Santa Madre Igreja e indigência é substância que abunda nos seus comedidos templos de bajulação metafísica. Mas é precisamente neste ponto que o discurso de JCN nos deveria fazer soar todos os sinais de alarme. Sobretudo se o anexarmos às palavras proferidas ultimamente pelos cardeais na nossa praça. Tal como o conceito do pecado original, estes ideólogos, elaborados nas entranhas das sacristias e na disciplina conservadora dos colégios católicos, querem à viva força que toda uma determinada classe que sustenta uma vacilante balança social se culpabilize (por minha culpa! por minha grande culpa!…), por todos os males que nos afligem, a uns mais que a outros. Esquecem estes estultos filósofos opinantes que o Estado, ao alienar-se das suas funções sociais basilares, das quais a mais primária é sem dúvida o apoio aos mais carenciados, perde todo o seu sentido ao abrir mão da essência que lhe deu origem. Por isso organizam de forma subliminar uma nova caça às bruxas. As bruxas têm sempre muitos nomes, por norma os nomes dos que não se conformam e não aceitam a servidão.

Não, JCN, mantendo o desnível a que já nos habituou, não é de facto deste mundo. Nem do outro. Habita num limbo elitista que se constitui um insulto a todos os que diariamente labutam por um país mais justo e desenvolvido, sejam crentes ou descrentes, de direita ou de esquerda, destros ou canhotos e que sofrem diariamente na pele o resultado das patifarias que aqueles que agora os querem ver silenciosos, encarneirados, provocaram, esses sim para seu único e cego proveito. Ao que parece, o mundo ideal de todos os JCN reflectir-se-ia numa disforme e desequilibrada tríade social (indigentes, pobres e ricos) comandada por uma liderança bicéfala repartida entre uma banca especuladora que privatizaria até a respiração e a liberdade e uma Igreja manipuladora que alimentaria a espiritualidade o que da culpa das sobras sobrasse. Até lá vai JCN continuando a dizer que “entretanto, os verdadeiros desgraçados, mudos como sempre, ainda têm de ouvir os muitos aproveitamentos do seu nome”.

E tudo por nossa culpa. Por nossa grande culpa!

4 thoughts on “Por nossa grande culpa!”
  • Tolo_Mor

    Os ateus são todos de esquerda, republicanos, contra o capitalismo selvagem e o neoliberalismo.

  • Molochbaal

    César das neves está a ser coerente com a política tradicional da igreja conservadora. Esta igreja esteve sempre do lado do poder económico. No passado defenderam raivosamente a ordem feudal, agora defendem a ordem da grande banca internacional.
    Estão sempre do lado dos poderosos, contra os pobres que dizem defender.
    A igreja identifica-se plenamente com as políticas conservadoras e neoliberais que estão a destruir o estado social. As universidades católicas são um verdadeiro viveiro de economistas neoliberais, de que o Neves é o perfeito exemplo, tal como os “Chicago boys” da universidade católica de Santiago o foram, no tempo de Pinochet. Tal como os “governos opus dei” do franquismo o foram.
    As forças políticas ligadas à igreja, democratas cristãos europeus, CDS em Portugal e ala “direita” do PSD e PS, sempre foram os defensores dos interesses de classe dos ricos contra os pobres.
    E eles gostam MESMO de pobres, por eles havia muito mais pobres e fazem tudo para isso.
    César das neves já várias vezes mostrou alegria com a crise, o que não admira. O empobrecimento geral, para o enriquecimento de uma pequena minoria é o seu maior objetivo. A sua sociedade ideal é uma sociedade de miseráveis, dependente de uma esmolinha da igreja. Daí que se mostre indignado, por a classe média tentar resistir a quem a reduz à pobreza.

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