Loading

Acreditar, saber e afirmar.

O diálogo sobre o fundamento das religiões não sai da cepa torta pela confusão sistemática, e muitas vezes propositada, entre crença e conhecimento. Acreditar é uma atitude pessoal que nada implica para terceiros. Se eu disser que acredito que Deus não existe isto, por si só, não diz nada acerca das crenças dos outros. Apenas falo de mim. Mas se eu afirmar que sei que Deus não existe estou a fazer uma afirmação acerca da verdade desta proposição e, implicitamente, afirmo serem objectivamente falsas todas as crenças contrárias. Saber não é apenas aceitar uma proposição, como acreditar. Pressupõe a verdade da proposição, a falsidade do seu contrário, uma justificação independente de meras opões pessoais e a capacidade para apresentar essa justificação. E como afirmar que se sabe algo é afirmar que quem discorda está enganado, quem afirma saber incorre numa obrigação, ainda que leve, de explicar como sabe. Quem simplesmente acredita não deve explicações a ninguém.

Assim, porque em vez de simplesmente dizer que acredito que Deus não existe eu afirmo saber que Deus não existe, tenho o dever de explicar como concluí isto. Não ponho de parte a possibilidade de erro. É sempre possível julgarmos que sabemos uma coisa e, afinal, estarmos enganados. Mas quando uma hipótese tem muito mais fundamento do que as alternativas justifica-se arriscar dizer que sabemos. Senão nem saberemos se a Terra é redonda. No caso do Deus judeu e suas variantes, há dois conjuntos de factores que justificam esta conclusão. Primeiro, as evidências apresentadas para a existência desse deus não dão qualquer fundamento à conclusão dos crentes. A tradição, os livros sagrados e a fé de milhões não justificam concluir que Allah mandou um anjo falar com Maomé, que Jahve criou o universo em sete dias ou que Deus é três pessoas numa só substância. As alegadas evidências para estes deuses são tão irrelevantes como as que se possa apontar para a ascendência divina do imperador do Japão ou o papel dos Faraós no amanhecer.

Mas isto é apenas falta de evidências para a existência de deuses. Por si só, não é evidência de que não existam deuses, como muitas vezes os crentes apontam. De facto, se eu olhar em volta numa cidade e não vir pombos, será precipitado concluir que não há pombos nessa cidade. Podem estar noutro lado. No entanto, se eu olhar em volta e não vir elefantes a voar é seguro concluir que não há elefantes voadores nessa cidade. A grande diferença é que eu sei que a existência de pombos é plausível por evidências positivas noutras cidades. A existência de elefantes voadores, pelo contrário, não só carece de exemplos positivos como exigiria excepções a generalizações bem fundamentadas, como a de não ser possível um mamífero com aquela estrutura voar. A existência de qualquer uma das versões de Deus sofre deste problema, agravado infinitamente pelos atributos que lhes associam.

É comum que os crentes tentem responder a objecções destas também de forma objectiva. Por exemplo, tentando focar as alegações mais plausíveis da sua crença religiosa ou tentando encontrar diferenças objectivas entre os fundamentos da sua religião e os fundamentos das restantes. Mas, inevitavelmente, chega-se a pontos como a mãe ser virgem, o filho ser deus e o deus ser três onde se torna inescapável o recurso à fé como fundamento último de qualquer dogma. É aqui que o diálogo encrava. Se estivéssemos a falar de crença, de opções de vida, da esperança e desejos de cada um, então a fé seria um fundamento tão legítimo como qualquer outro. Mas isso não tem nada que ver com o conhecimento dos factos e, se estamos a falar de factos e de conhecimento, a fé é irrelevante.

Devia ser óbvio que não se justifica afirmar que algo é só porque alguém gostaria que fosse. Devia ser óbvio que a fé em deuses é uma preferência e não uma forma de sabedoria. Devia ser óbvio que, por muito que muitos creiam, os auto-proclamados peritos em divinologias não sabem o que alegam saber acerca dos seus deuses. Ninguém pode saber essas coisas porque não há evidências que conduzam a tal conhecimento. O que sabemos é que nada indica que existam deuses e que, se existissem, seriam excepções de muitas regras que parecem não as ter. Um deus omnipotente é infinitamente menos plausível do que um elefante voador e não há fé que mude isso. Devia ser óbvio mas, se o admitissem, deixava de fazer sentido haver sacerdotes, bispos, rabinos, teólogos e restantes profissionais da religião. Por isso, fazem tudo para que não seja.

Este parece-me ser o papel do ateísmo. Não é eliminar a crença nem convencer os crentes a deixarem de o ser. Se alguém acha que vive melhor acreditando neste deus ou naquele, ou em todos, pois que o faça. A vida é sua e, acerca disso, não deve explicações. O papel destas expressões de ateísmo é confrontar quem afirma que a sua fé é conhecimento, que é perito no inefável, que é doutor do misterioso e que sabe quantos deuses há, como são e o que querem de nós. A fé não justifica tais alegações e é importante apontar que são tretas. Não para as demolir de uma vez por todas nem para acabar em definitivo com a religião, porque a profissão de representante dos deuses é demasiado atraente para que desistam dela. Mas, como raspar os calos, é preciso ir impedindo que cresça demais e se torne incapacitante.

Este post é dedicado ao Alfredo Dinis, um opositor estimado a quem devo muitos textos e alguns momentos agradáveis de convívio em pessoa. Infelizmente, o Alfredo faleceu no passado fim de semana, vítima de leucemia. O que sei da fragilidade humana não me permite a esperança de que o Alfredo ainda persista numa forma capaz de ler o que eu escrevo. No entanto, a minha memória das objecções, contra argumentos e raciocínio do Alfredo continuará a inspirar-me e informar-me nestes assuntos. É isso a alma. O que sobra quando o nosso corpo morre não é uma substância mística ou uma consciência incorpórea. É o conjunto de pensamentos que passámos a outros que, depois, continuam a pensá-los sem nós. Nesse sentido, o Alfredo continua vivo em muita gente. Obrigado, Alfredo.

Em simultâneo no Que Treta!

18 thoughts on “Acreditar, saber e afirmar.”
  • Molochbaal

    “Não ponho de parte a possibilidade de erro. É sempre possível julgarmos que sabemos uma coisa e, afinal, estarmos enganados. ”
    Afinal o Kripphal é kamarada um agnóstico que ainda não saiu do armário.

    Claro que, qualquer afirmação neste campo, tem fortes possibilidades de estar errada, precisamente por nada sabermos.
    A única coisa que podemos dar como certamente provada, é a total falsidade dos atributos, mais ou menos folclóricos, muitas vezes profundamente ridículos, que a maior parte dos crentes atribui à ideia de divindade.
    Um deus com cabeça de falcão, ou um deus bom que cria um mundo mau, são, evidentemente, produtos de folclore, como o galo de Barcelos, ou as canecas das caldas.
    Podemos também ter como certo, que os crentes sabem tanto como nós, acerca da existência, ou não, de deus.
    Tirando isso, se existe ou não, algo que possamos classificar de “deus” é um enigma absoluto e a única atitude lógica é confessar humildemente que não, não fazemos a mínima ideia.

    • João Pedro Moura

      MOLOCHBAAL disse:

      “Tirando isso, se existe ou não, algo que possamos classificar
      de “deus” é um enigma absoluto e a única atitude lógica é confessar
      humildemente que não, não fazemos a mínima ideia.”

      Não, não é um “enigma absoluto”!
      “Classificar” algo de “deus” implica, concomitantemente, estabelecer um conceito.
      E um conceito implica uma definição…
      … Que é a de uma entidade “omnisciente, omnipotente e
      omnipresente, criadora, governadora e justiceira”, assim com todas estas características, por indeclinável imanência concetual do religioso…
      … E foram os religionários que inventaram o conceito…
      … Logo, terão de ser eles a justificarem tal enunciado concetual.

      Mas, como não conseguem justificar a existência de “deus”,
      pois que até remetem o caso para a fé, e não para a evidência, logo, “a única atitude lógica” é afirmar cientificamente:

      – Inadmissibilidade de hipótese.

      • Molochbaal

        Essa PODE ser uma definição de deus.
        Mas pode haver outras. Ocorreu-te essa, simplesmente por, na nossa cultura, ser essa a noção dominante.
        No entanto, um deus pode não ser, sequer, consciente, ou governador, ou justiceiro.
        Quanto aos crentes não poderem provar, isso não implica a sua não existência.
        Implica apenas que não são capazes de o fazer e que nós não somos “obrigados”, de um ponto de vista lógico, a acreditar.

        • João Pedro Moura

          MOLOCHBAAL

          O conceito de “deus” foi inventado pelos religionários.
          Pretender, como tu, que “pode” haver um deus… que “pode” haver outra definição… que, havendo “deus”, “pode não ser consciente, governador ou justiceiro”, é falar do vácuo…
          … Consequentemente, por analogia do teu arrazoado, também pode haver um elefante voador… uma pulga cantora, imitante da voz humana… ou, quiçá, um Moloch e um Baal, carpinteiros de cofragens…

          • Molochbaal

            A pulga cantora é um conceito giro.

            Se um dia formares uma igreja, manda-me o nib, para pagar a côngrua. que para essa igreja eu contribuo.

            Mas eu referia-me mais ao teísmo de um Einstein ou da causa primeira de um Aristóteles.

            Também eles são crentes.

            Embora não folclóricos, como os adoradores do deus do fifi.

          • Joao C.

            Não, não, Einstein claramente não era crente. Aquilo a que ele chama Deus não tem qualquer tipo de conhecimento de si próprio ou intencionalidade, algo que será imprescindivel a qualquer deus. A não ser que uma pedra possa ser deus.

    • GriloFalante

      Por favor, deixemo-nos de retóricas. Vamos a factos.
      1-Alguém, um dia, algures na História, afirmou: “Deus existe”.
      2-Esse alguém nunca demonstrou a existência desse deus. Nem esse alguém, nem nenhum dos que se lhe seguiram.
      3-Partir dessa afirmação absolutamente inconsequente para uma probabilidade, é completamente absurdo.
      Dixit.

      • Molochbaal

        O facto de alguém afirmar algo sem provas, se não implica que tenhamos de acreditar nele, também não implica que, por princípio, se exclua uma hipótese de estar certo. Mesmo que remota.
        Claro que me refiro à hipótese de um ser a um nível que nos ultrapassa, do qual não sabemos nada, e não das figuras ridículas dos deuses de pacotilha que os crentes pretendem que andam a vigiar a nossa vida sexual, a exigir que lhes demos graxa, etc.

  • orenascido

    Nunca conheci Alfredo Dinis pessoalmente, mas sempre nutri por ele uma grande admiração e estima. Quando aqui comentou, neste site, fê-lo sempre de uma forma elegante e revelando uma grande cultura filosófica. Habituei-me a respeitá-lo, ainda que dele distante em muitos aspectos do seu convicto catolicismo. No entanto, tal como Alfredo Dinis, sou apenas mais um dos que acredita em Deus e na eterna subsistência da alma. Por mim, não posso conceber um Deus que não seja a expressão da mais absoluta Bondade,ainda que o mundo seja composto por alguns seres que são profundamente maléficos. Um Deus infinitamente bom não é incompatível com a existência do livre-arbítrio, como um bom pai ou uma boa mãe não são incompatíveis com a existência de filhos perversos. Para aqueles que acreditam nessa concepção de Deus, a alternativa à existência do livre-arbítrio seria um mundo sem devir, onde cada ser não tivesse um caminho evolutivo para percorrer. Um mundo perfeito á nascença, onde não houvesse possibilidade de distinguir Deus das suas próprias criaturas. Contra a morte, o sofrimento e a maldade dos homens, talvez haja, contudo, um lugar para a redenção. Talvez Deus apareça no último momento, quando tudo parece vazio e desesperançoso. Talvez a morte física não signifique, de facto, o fim da vida. Esta era, presumo, a esperança de Alfredo Dinis. Um homem, que sei ter sido filho de um pai ateu, mas que preferiu seguir o caminho da sua própria consciência. Que descanse em Paz e que Deus não tenha sido para ele uma esperança vã.

    • Anti tolo

      Estou espantado! Conseguiste não só de uma vez por todas confirmar a tua posição deísta, embora cheia de argumentos sentimentalistas que não explicam nada, como ainda conseguiste postar um comentário sem insultares ninguém ou arremessares os teus chavões decrépitos.
      PS: quando conseguires justificar essa coisa do bem ou da bondade no universo, talvez comeces a tornar-te interessante.

      • orenascido

        Não me tenho na conta de uma pessoa sentimentalista, mas não tenho nenhum problema em falar de sentimentos.Eu acredito, sim, que a forma mais genuína de se acreditar em Deus é por via do sentimento. Mas não é assim que todos nós fazemos fé nas pessoas que estimamos ? Acreditando que os nossos sentimentos são genuínos e que elas igualmente nos estimam ou amam ? Ou alguém conhece um método empírico de testar um semtimento num tubo de ensaio ?

        O Bem e o Mal existem, nas pessoas genuinamente bondosas ou maldosas que todos conhecemos. Depois há aqueles que acreditam num deus infernal e outros que acreditam na bondade de Deus. O Bem e o Mal são questões filosóficas relevantes e sumammente discutíveis, mas a perspectiva de Epicuro não é o único e absoluto criério sobre a natureza de Deus. Ou seja, a existência do Mal no mundo não implica que Deus, a existir, não seja bondoso. Significará, quanto muito, que Deus optou por não criar um mundo aprioristicamente perfeito, mas em conferir ao Homem a liberdade de optar pelo Bem ou pelo Mal. Há aqueles que contestam esta concepção e que se afirmam ateus, mas que, curiosamente, só admitem a hipótese de Deus, aferida, à maneira de Epicruo, por um Ser que tivesse criado um mundo totalmente perfeito. Ou seja, sem nenhuma espécie de evolução. Depois há pretensos ateus, como o Ludwig, que,até este momento, não conseguiu revelar se acredita ou não que há pessoas que o amam, dada a natureza imaterial e inexpugnável dos pensamentos alheios, ou se apenas se revê no seu próprio solipsismo material.

        • Molochbaal

          “Mas não é assim que todos nós fazemos fé nas pessoas que estimamos ?”
          Podemos estar enganados, mesmo em relação às pessoas em quem confiamos.
          Por outro lado, uma coisa é acreditar em que, determinada pessoa que conheço, gosta ou não gosta de mim.
          Outra completamente diferente é acreditar que alguém que nunca vi, da qual não sei nada nem sequer tenho provas de que exista, não só exista, como gosta imenso de mim, de pudim de cereja e de gatos. Mas que já não gosta nada de arroz doce,nem de andar a cavalo. Tudo isto sem, na verdade, saber NADA acerca dessa pessoa.
          Vocês simplesmente tomam os vossos sonhos por realidades. E abusam da lógica, para a submeter aos vossos desejos.

      • Molochbaal

        Tem calma.
        Dá-lhe uma oportunidade.
        Ele ainda está a tempo de me chamar franquista.
        Não percamos a esperança.

    • Molochbaal

      E tu a dar-lhe com a maldade dos “homens”.
      É a vossa fuga habitual à questão de estar provado que um deus infinitamente bom é uma impossibilidade.
      Porque é uma probabilidade inadmissível num mundo mau.
      Foram os homens que inventaram os furacões, tremores de terra e a peste ?
      O mundo está cheio da violência mais absurda, mesmo sem o homem.
      O único a culpar, seria, obviamente, o seu criador.
      Não fujam às consequências das vossas próprias afirmações.
      PS
      Mesmo a questão do livre arbítrio é uma treta pegada.
      Ao deixar os “maus” tomar conta do mundo, obviamente que deus estaria a DESRESPEITAR o livre arbítrio das vitímas desses “maus”.

  • João Pedro Moura

    LUDWIG KRIPPAHL disse:

    1- “Quem simplesmente acredita não deve explicações a ninguém.”

    Dever, não deve, em termos de obrigações. Mas, um crédulo tem o dever intelectual, chamemos-lhe assim, de explicar o porquê da sua credulidade. Mormente, quando se suscita uma polémica em que o crédulo participa ou acha que deve intervir.
    É do mais elementar bom senso de que não devemos emitir raciocínios ou quaisquer outras afirmações à toa.
    Consequentemente, afirmar que “deus existe” é passível de reflexão e justificação…
    … E se não conseguem justificá-lo, também não poderão afirmá-lo…

    2- “Este parece-me ser o papel do ateísmo. Não é eliminar a crença nem convencer os crentes a deixarem de o ser.”

    O ateísmo, enquanto tal, não tem “papel”, porque é um ideário. Quem tem “papel” são os militantes ateus, que assim entendem contribuir para “eliminar a crença” e “convencer os crentes a deixarem de o ser”…

    3- “Assim, porque em vez de simplesmente dizer que acredito que Deus não existe eu afirmo saber que Deus não existe, tenho o dever de explicar como concluí isto. Não ponho de parte a possibilidade de erro. É sempre possível julgarmos que sabemos uma coisa e, afinal, estarmos enganados.”

    Ai se o Molochbaal lê isto, ainda te vai dizer que és um agnóstico que ainda não saiu do armário…
    Se não pões de parte “a possibilidade de erro”, estás a admitir que “deus pode existir”, o que contradita a a tua afirmação de que “afirmo saber que Deus não existe”…
    Em que ficamos?!

    • Molochbaal

      Vês ?

      Tu também já topaste.

      O Ludwig precisa é de um bom psicólogo, para vencer as suas inibições e finalmente assumir-se como kamarada agnóstico.

      Se se organisasse um dia do orgulho agnóstico, ajudava nestes casos de agnósticos envergonhados.

      Coragem Ludwig.

      Não estás sozinho.

      O principal é não mostrar medo aos bullys ateus !

      Talvez se comprares um cão ?

      • João Pedro Moura

        MOLOCHBAAL disse:

        “Se se organisasse um dia do orgulho agnóstico…”

        Quê?! Com plumas, movimentos dengosos, nudez pinturesca e outros meneios?!
        Já começo a desconfiar de ti…

You must be logged in to post a comment.