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A cruz da minha avó – crónica pascal

A minha avó mora numa vivenda moderna, tipo maison. Quem entra na casa da minha avó depara-se, logo à entrada e do lado direito, com um nicho recheado de tudo quando é parafernália religiosa, desde medalhas a “santinhos”, passando por terços, relicários, estatuetas, e outros atavios de igual  jaez. Sobrepondo-se a toda essa tralha, destaca-se a imponência de um enorme crucifixo em madeira, devidamente equipado com um Cristo pendurado. A minha avó garante que a cruz não é, e ela faz questão em enfatizar, não é, dizia eu e diz ela, daquelas cruzes foleiras que dizem ser de restos da cruz original. Nada disso até porque, argumenta ela e eu assino por baixo, se fossem a juntar todos os bocados que se garante serem da cruz original, isso daria direito a um instrumento de tortura com o peso de tantas toneladas, que nem Cristo, por mais deus que fosse, seria capaz de arrastar até ao Calvário. Não senhores, aquela cruz, a cruz da minha avó era, apenas, feita do que restou da madeira com que se construiu a cruz original, o que já permite crer um pouco mais na sua veracidade, até porque não consta haver cruzes feitas dos restos da madeira, facto demonstrativo da perspicácia criativa do vigarista que vendeu o crucifixo à minha ancestral. Aliás, se calhar foi por isso que aquela cruz custou uma pipa de massa, com manifesto prejuízo para a minha herança, já que sou o neto preferido, não obstante ser único. Já quanto ao Cristo dependurado, a minha avó assume ser uma imitação, já que “o original subiu ao Céu em todo o seu esplendor, como tu sabes”, embora a minha avó nunca tenha explicado se o esplendor era do Céu ou do original referente à carunchenta cópia.

Pois bem, nesta última Páscoa fui de abalada até à santa terrinha onde mora a minha avó. Era Domingo, e a provecta senhora afadigava-se em volta da mesa sobre a qual iam jazendo as mais apetitosas guloseimas pascais, devidamente acolitadas por uma pinga de estalo, colheita própria. Bom, se o vinho é sangue de Cristo, bem-haja quem o matou, que sempre se aproveita alguma coisa de jeito.  “É para o senhor padre e os acólitos, quando trouxerem Nosso Senhor a visitar e a abençoar esta casa”, explicava ela, perante a minha curiosidade. “Mas… ó avó, então o Nosso Senhor não sabe o caminho, é preciso vir tanta gente…” mas a minha avó nem me deixou terminar o aliás preclaro raciocínio: “Nada de heresias! Com Deus não se brinca, que podes ser castigado. Claro que Nosso Senhor está no Céu, sentado à direita de Deus-Pai, mas o senhor padre traz o crucifixo, que é a mesma coisa.” Mesmo correndo o risco de ver a minha herança, ou o que resta dela, ir direitinha para as mãos do padre, não me contive: “Ó avó, o que vale mais? É o crucifixo de metal que o padre traz, ou o crucifixo que a avó tem, e que até é feito dos restos da madeira da cruz original? Para que é que a avó quer a visita do “nosso senhor”, se ele já está cá em casa em regime de permanência?”

Ao longe, ouvia-se a cada vez mais próxima sineta que anunciava o “compasso”. Prudentemente, e sem aguardar a resposta, que se adivinhava pouco simpática, da minha avó, esgueirei-me para a tasca do senhor Alfredo, que corria o risco de se tornar mais bem frequentada do que a casa da minha avó.

O senhor Alfredo é ateu.

8 thoughts on “A cruz da minha avó – crónica pascal”
  • O Culto Professor

    JA TIETYSTI – MYÖS JOULUPUKKI ASUU LAPISSA

  • oh então não é ?

    Cum per Iesum Christum Dominum nostrum, iudicem uiuorum atque mortuorum,
    ad debitos fines ambae peruenerint ciuitates, quarum est una Dei,
    altera diaboli, cuius modi supplicium sit futurum diaboli et omnium ad
    eum pertinentium, in hoc libro nobis, quantum ope diuina ualebimus,
    diligentius disputandum est. Ideo autem hunc tenere ordinem malui, et
    postea disseram de felicitate sanctorum, quoniam utrumque cum corporibus
    erit et incredibilius uidetur esse in aeternis corpora durare
    cruciatibus quam sine dolore ullo in aeterna beatitudine permanere; ac
    per hoc cum illam poenam non debere esse incredibilem demonstrauero,
    adiuuabit me plurimum, ut multo facilius omni carens molestia
    inmortalitas corporis in sanctis futura credatur.

    • É pois!

      Cum caralhum qued asininum est.

      • oh então não é ?

        Quis dedit innumeros uno de marmore vultus?
        Surgit in aurigam currus, paribusque lupatis
        unanimi frenantur equi: quos forma diremit,
        materies cognata tenet discrimine nullo.
        Vir redit in currum; ducuntur ab axe iugales;
        ex alio se quisque facit. Quae tanta potestas?
        Una silex tot membra ligat ductusque per artem
        mons patiens ferri varios mutatur in artus.

    • Ah Pois

      “in hoc libro nobis”

      Qual?

  • Deusão

    jesus erat a magnus irrumator. et cauda

  • L. Pereira

    O texto está bem conseguido e para mim retrata com muita exatidão o que se passava (e por certo passará) em muitas casas pequeno-burguesas da região onde nasci e passei parte da minha juventude: Região da Guarda. Sei que tais hábitos, como o de adquirir o direito à caixa que transportava a “Sagrada Família” eram vulgares, mas apenas para quem tinha “posses”. Os menos abonados, que se dessem bem com os da “caixa” ou os dos “nichos”, iam lá a casa declamar as suas orações, por vezes em coro. Era bonito e estas tradições jamais haviam de desaparecer. Consta que as “caixas” e os “nichos” já andam nas mãos de colecionadores! Ao que isto chegou…

  • Ah Pois

    Os latinos usavam uma expressão que serve a alguns dos “latinistas” deste blogue:

    “Asinus asinum fricat!”

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