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O que tem de mal.

A religião é má. Apesar de ser uma afirmação simples, é fácil deturpá-la para refutar espantalhos. Por isso, antes de a justificar tenho de a esclarecer. Por “é má” não quero dizer que tudo na religião seja mau, das tocatas de Bach às freiras que vivem na minha rua. A religião é má como a segunda guerra mundial foi má. Teve alguns aspectos positivos, como o progresso na aeronáutica ou alertar para o perigo do nacionalismo. Mas o saldo foi negativo e o que teve de bom seria ainda melhor sem a guerra. É assim que digo que a religião é má. Tem mais mal do que bem e o mal é dispensável. E por “religião” quero dizer especificamente o sistema de poder pelo qual umas pessoas regulam crenças, disposições e comportamentos das outras. Não tem nada que ver com o usufruto individual do direito de acreditar no que se quiser.

A religião é má por três características intrínsecas que corrompem quaisquer boas intenções. Ou boas pessoas. A primeira é o fundamentalismo dogmático que dá identidade a cada religião. Não pode haver católicos que rejeitem a autoridade do Papa, protestantes que aceitem o Papa como autoridade infalível ou muçulmanos que acreditem que Jesus era Deus. Não é apenas uma definição de termos, como dizer que não há capitalistas comunistas. São normas com consequências reais para pessoas como as freiras nos EUA (1) ou os clérigos Shia na Indonésia (2). Pela sua natureza, uma religião não pode ser uma organização democrática e pluralista onde todos membros tenham voz e liberdade para discordar da hierarquia.

O segundo problema é que, dentro de cada religião, os sacerdotes são o poder executivo, legislativo e judicial. Até de um clube recreativo esperamos que a direcção seja separada do conselho fiscal e que os regulamentos sejam aprovados em assembleia geral. Numa religião, seja a Igreja Maná ou a Igreja Católica, é tudo controlado pelos mesmos. A falta de órgãos independentes que possam refrear tendências menos louváveis favorece os conhecidos abusos de poder, desfalques e ocultação de crimes, além dos casos que não conhecemos. Só quem está no convento é que sabe o que lá vai dentro…

Finalmente, não existe um limite bem definido para o âmbito da religião. Pode regular tudo. Actos públicos, actos privados, valores, disposições, intenções e até o que cada um pensa acerca dos factos. Qualquer coisa pode fazer a diferença entre o paraíso e o inferno. Por isso, as religiões sistematicamente desrespeitam aqueles direitos pessoais que hoje consideramos fundamentais, como a igualdade, a liberdade de consciência e a privacidade.

Alguns dirão, como se fosse evidência em contrário, que há regimes hediondos declaradamente ateus, invocando Mao, Pol Pot, Estaline ou os praticamente divinos Kim. Mas estes são exemplos dos mesmos defeitos: intolerância dogmática; concentração de poder sem controlo independente; e ingerência em todos os aspectos da vida pública ou privada. Estes sistemas atraem os piores facínoras e corrompem as melhores intenções. E se bem que as religiões que agora temos em Portugal sejam muito menos malignas do que eram antigamente ou do que ainda são em países como o Irão e a Arábia Saudita, só melhoraram à força e ainda há problemas a resolver.

Isto não tem nada que ver com a crença. Se alguém acreditar que vai viver depois da morte, que Júpiter influencia o seu namoro ou que o universo foi criado por um hipopótamo de tutu, pois que acredite. Posso criticar ou fazer troça, mas também podem criticar ou fazer troça das minhas crenças. O que eu quero é uma sociedade laica, em que todos possam adoptar, louvar, criticar ou fazer troça das crenças que quiserem sem ninguém privar outros desses mesmos direitos. O problema está nestas organizações, e é um problema que elas não resolvem por si. O que distingue um judeu, um cristão, um muçulmano e um cientólogo são crenças sem fundamento e, tendo o diz que disse como única forma de legitimação, nenhuma religião irá voluntariamente tornar-se democrática, admitir uma pluralidade de opiniões ou abster-se de impor dogmas porque, num ambiente de discussão critica e aberta, não convenceria ninguém.

Por isso é que a solução só pode vir da sociedade, que deve exigir das religiões o mesmo respeito pela Lei e pelos direitos humanos que exige de qualquer organização. Não é permitido a uma associação excluir as mulheres de qualquer cargo. O mesmo devia aplicar-se às religiões. Angariar associados insinuando que alguém lhes vai partir as pernas com um barrote se não se fizerem sócios é crime (3). Também devia ser quando a coacção é pela ameaça de sofrimento eterno. Eu não quero condenar pessoas pelo que acreditam nem as quero privar das crenças que as confortam, mesmo que não abdique do meu direito de chamar disparate aos disparates que encontro. Nem sequer quero impedir que os crentes se organizem em igrejas, cultos, clubes ou o que quiserem. O que quero é que a crença no sobrenatural não seja desculpa para formar organizações como estas. Deve ser possível organizar procissões, ajudar os pobres, rezar em conjunto e participar em rituais sem violar os princípios fundamentais da democracia, da igualdade e do respeito pelos direitos de cada um. O que quero é que as religiões tenham os mesmos deveres e direitos que tem qualquer outra organização na nossa sociedade.

1- NY Times, Vatican Reprimands a Group of U.S. Nuns and Plans Changes
2- Human Rights Watch, Indonesia: Shia Cleric Convicted of Blasphemy
3- Artigo 154º do Código Penal, «Quem, por meio de violência ou de ameaça com mal importante, constranger outra pessoa a uma acção ou omissão, ou a suportar uma actividade, é punido com pena de prisão até 3 anos ou com pena de multa.»

Em simultâneo no Que Treta!

4 thoughts on “O que tem de mal.”
  • stefano666

    nao acho logico condenar Stalin e a URSS por causa de 1945…

  • GriloFalante

    Pois, Ludwig; mas sabemos perfeitamente que se as religiões tivessem “mesmos deveres e direitos que tem qualquer outra organização na nossa sociedade”… deixariam de ser religiões. Perdiam a razão da sua existência. Porque a essência das religiões – de qualquer religião – é a manutenção do poder valendo-se da ignorância e do espírito carneirístico dos aderentes. A obediência cega e sem hesitações. A manutenção cuidadosa da “chama viva” da ignorância voluntária e compulsiva.
    Um artigo publicado aqui mesmo, tem o título “O papa sabe qual é a vontade de Deus?” Pois bem, a resposta de um crente, a primeira resposta, por sinal, é “Sabe”. Sem mais. Elucidativo e ilustrativo.
    A existência do ateísmo é, precisamente, devida ao facto de haver (pouca) gente que se questiona. Como alguns dos que, por aqui, vão escrevendo.

  • cínico

    A religião é má ? E o ateísmo é bom?

    Em caso de dúvida, é só conferirem aqui:

    ” Eu não quero alienar os muçulmanos, quero eliminá-los”

    Christopher Hitchens

    ” Algumas ideias são tão perigosas que até seria ético matar pessoas
    por acreditar nelas.Isso pode parecer uma afirmação extraordinária, mas meramente
    enuncia

    um facto ordinário sobre o mundo no qual vivemos. Isso é o que os

    Estados Unidos tentaram no Afeganistão e o que nós e outras potências

    ocidentais estamos obrigados a tentar, mesmo a custo maior para nós e

    para inocentes no exterior, em todos os lugares do mundo muçulmano”

    Sam Harris

    Será que, perante esses ímpetos genocidas, a crueldade será apanágio dos
    ateus ? Ou será preciso evocar os milhões de mortos, cometidos pelos ateus
    Estaline e Pol Pot, em nome do ateísmo materialista, de que foram fiéis
    executores ?

  • antoniofernando

    ” Tocatas de Bach” são religião ?

    Esta parte do texto do LK é uma autêntica anedota. Para usar as suas próprias palavras, um enorme disparate. Quando alguém não consegue perceber que as tocatas de Bach são música está tudo dito quanto à forma como se pode descer a um nível intelectual tão baixo. As músicas sufi também são religião ? As danças dervish também ? A Pietá do Miguel Ângelo é religião ou uma genial escultura ? Que pequenez de espírito.O LK não consegue discernir o essencial. Ou seja, que a Arte não tem limites para o campo da representação, sejam motivos de âmbito religioso ou outros quaisquer. Agora referenciar as tocatas de Bach como religião, nem uma criança em processo de aprendizagem conseguiria descer tão baixo.

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