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A confissão (excertos)

(…)

A velhota acabou por sair. Pelo tempo que demorou, não devia ter rezado mais que dezassete ave-marias, provavelmente mais dois padre-nossos, presumivelmente ainda uma salve-rainha, mas isto já são conjecturas. A senhora saiu e, já no adro, ainda se voltou para o edifício, fazendo um último sinal da cruz, em jeito de quem se despede de Deus, esquecendo-se de que Ele está em toda a parte e, portanto, não há hipótese de nos vermos livres d’Ele. Seguidamente, depositou uma moeda de vinte e cinco tostões[1]  na suja mão estendida do pedinte, enquanto murmurava seja em desconto dos meus pecados. Mesmo sem cuidar de saber a quantos e quais pecados corresponderia o desconto equivalente a 2$50[2] , a idosa afastou-se e acabou por desaparecer na esquina à esquerda, e o largo ficou quase deserto, e este quase não aparece aqui fortuitamente, o largo só estaria deserto se não houvesse ninguém nele, ora, nós sabemos que havia, pelo menos, uma pessoa, qual seja o vosso desconhecido, e digo vosso com toda a propriedade, porque eu, autor, sei perfeitamente de quem se trata, você, leitor, é que ainda não sabe, mas não se preocupe, que esse seu desconhecimento tem os minutos contados. Bastantes, certamente, mas contados mesmo assim.  Agora, olhando assim a igreja, esta parecia-lhe bem maior do que quando, ainda na “Taberna do 21”, sorvia lentamente a cerveja loira – pálida e loira, muito loira e friae o seu lábio tristíssimo sorria. Sentiu um certo temor. O calor apertava, e o nosso jovem desconhecido, porque de um jovem se tratava, digamos que ainda não tinha atingido a idade para poder ser eleito presidente da república, embora pouco faltasse, transpirava.

Decidiu-se.

Entrou.

Cá ao fundo, de costas para a porta, e para a “Taberna do 21”, o padre Cristiano lia o breviário. Soletrava, para melhor o compreender. Saboreava-o, estão a ver?

O desconhecido e, ainda por cima, forasteiro, foi-se aproximando, lentamente, até chegar junto do sacerdote:

— Padre eu quero confessar-me,

“Meu Deus, como Tu és grande”, pensou o padre – Cristiano, de seu nome – para com os botões da sotaina, erguendo os olhos para um enorme crucifixo que dominava a nave central (e única) da capela. “Eis uma ovelha tresmalhada que quer regressar ao Teu rebanho. E uma ovelha ranhosa”, concluiu depois de observar de relance o jovem, que fungava ferozmente.

— Então meu filho, que tens para me dizer? Podes confessar-te mesmo aqui, que a igreja está vazia, não há necessidade de irmos para o confessionário.

Suspendeu-se por momentos, e prosseguiu:

— Um dos requisitos para uma confissão bem-feita, já tu estás disposto a cumprir, que é a confissão de boca. Mas há outros requisitos que terás de preencher, sem os quais a confissão não terá qualquer valor. São eles o exame de consciência, a dor de coração, o propósito firme de emenda e a satisfação de obra. Queres que te explique em que consistem estes requisitos?

— Não haverá necessidade, padre. Quando andei na catequese o padre Gaudêncio explicou-me isso tudo muito explicadinho.

— Então, muito bem.

O padre Cristiano compenetrou-se por momentos, e deu início ao ritual da confissão:

— Ave Maria Puríssima…

— …Sem pecado concebida. Abençoe-me padre, porque pequei.

— Quando foi a última vez que te confessaste?

— Fiz a minha última confissão quando tinha dez anos, aquando da comunhão solene.

— Muito bem, meu filho. E quais são os teus pecados?

O confessando titubeou, visivelmente perturbado:

— Padre, eu não sei como dizer, tenho vergonha… é só um pecado, mas é um pecado tão grande…! Hesito, tergiverso, não sei se terei perdão… será que vou ter uma grande penitência?

— Meu filho – disse o padre – a penitência será sempre em função do, ou dos pecado ou pecados cometido ou cometidos. Depois, levarei em conta as circunstâncias agravantes, atenuantes e dirimentes. De qualquer modo, a indulgência é sempre possível desde que haja propósito firme de emenda e arrependimento. Deus é grande, e infinita é a Sua misericórdia.

Padre Cristiano, porém, começava a ficar em suspense. Não era costume haver tantas hesitações, nas confissões. Começou a perder a longanimidade que, diga-se em abono na verdade, nunca tinha sido muita e que ia minguando na razão directa do cumprimento dos aniversários. Que já eram muitos, diga-se de passagem, os que tinham ficado para trás e, o que é mais grave mas terá de ser dito, o padre Cristiano, quando perdia a paciência perdia, também, por efeito directo, a capacidade de cuidar da língua, adoptando expressões pouco católicas e nada cônsonas com a sua condição pastoral:

— Mas, afinal, que raio de pecado é esse?

O desconhecido parecia não saber o que fazer às mãos. O tempo escoava-se lentamente, esvaindo-se em gotas que os ponteiros do relógio da torre da direita (de quem entra, entenda-se) iam sublinhando.

— Padre, eu roubei.

A igreja pareceu ruir. O silêncio, absoluto, tornou-se completamente inaudível. No relógio da torre, o ponteiro dos minutos hesitou alguns segundos antes de se decidir avançar mais um espaço. Da “Taberna do 21” chegava um ténue mas inconfundível cheiro a pataniscas de bacalhau, enquanto o padre empalidecia, a face a tornar-se lívida, em oposição à sotaina.

— TU, meu filho, ROUBASTE?! Mas roubaste o quê?

— Um relógio.

— Um quê????

— Sim, padre, um relógio. Roubei, mas não consigo aguentar mais. Roubei um relógio, mas ele queima-me, ele pesa-me, ele alucina-me, por favor, padre tome-o, fique com ele, eu não o aguento mais na minha posse, fique com ele, peço-lhe, suplico-lhe, imploro-lhe, rogo-lhe, reitero, depreco, solicito-lhe, peço deferimento.

O padre – Cristiano, de seu nome, não sei se já tinha dito – sobressaltou-se, como o Demónio ao ver a cruz. Nunca tinha ouvido, em confissão, um pecado daqueles! Lá na pequena freguesia, ninguém roubava nada a ninguém, pelo que as confissões eram uma pasmaceira de todo o tamanho. Nunca iam além de umas facadas no matrimónio, pronto, já se sabia que a Hermínia do Isildo andava metida com o Rodrigo Farroco, a mulher deste tinha feito uma escandaleira das antigas uma das vezes que a Hermínia foi à fonte buscar água, houve puxões de cabelos e tudo, enfim, de vez em quando lá havia umas sacholadas por causa da rega, de outra vez era o Libório que insultava o Germano porque a vaca da mulher ia pastar no lameiro dele, isto é, do Libório, o Germano bem argumentava que a vaca não lhe pertencia, pertencia à mulher, porque estavam casados com separação de bens, Eu não tenho nada a ver com o que a vaca da minha mulher faz, mas nada adiantava, Tu é que tens de ter mão na vaca da tua mulher, Eu?! Era o que me faltava, eu tenho trabalho que chegue para cuidar do meu boi, a partir dali era tudo insultos, filho desta, filho daquela, o padre Cristiano nunca percebeu lá muito bem o que é que o boi do Germano tinha a ver com aquilo tudo, o boi do Germano era manso, não se metia com ninguém nem incomodava, mesmo com os cornos do tamanho que tinha, já que era de raça barrosã, enfim, tricas sem grande importância, mas que davam sabor à vida e animação ao pequeno burgo, e que eram desfiadas no confessionário como se de contas de um rosário se tratasse, era o que ia valendo para quebrar o quotidiano medíocre da freguesia, pouco maior que uma pequena aldeia, e que ia permitindo ao bom padre Cristiano conhecer o ambiente da freguesia e ir controlando os fregueses. Agora, roubar um relógio?! Nunca se tinha ouvido tal desconchavo.

Padre Celestino olhou mais atentamente para o jovem

— Tu não és daqui, pois não?

— Não, padre. Sou dali, de Ilhós da Veiga.

— E porque vieste confessar-te aqui? Não achas estranho? Ou dar-se-á o caso de o meu colega já não ter mais absolvições para te dar? Sim, porque tudo tem um limite e as absolvições não são excepção, se um paroquiano passa a vida a pecar, é mais que certo que, a partir de certa altura, já não há absolvição possível. Faz-nos falta um cadastro a nível nacional, para ver quem são os reincidentes…

— Não, padre, não se trata de nada disso. Eu é que não tive coragem… Ali em Ilhós da Veiga toda a gente se conhece, e não queria que as pessoas começassem a desprezar-me e a olhar para mim com desconfiança…

— Tu não estás bom da cabeça, pois não? Já ouviste falar no segredo da confissão?

— Já, padre, já ouvi; mas também sei que a Henriqueta, a filha do Ambrósio, fez um desmancho, e ela não o contou a mais ninguém, mas já toda a gente sabe…

— Bom, bom, bom – atalhou o padre. – Isso não é para aqui chamado. Onde é que tens o relógio?

— Tenho-o aqui, padre. Fique com ele, por favor. Olhe que é a maneira de me sentir melhor. Quer vê-lo?

— Nem penses! Nem quero olhar para isso. Esse objecto é fruto do pecado, nem o quero ver.

— Mas… porque é que o padre não fica com ele?

— Nem penses! Nunca! Que diabo… Ia agora ficar com o relógio? E ir de cana[3]  como recepta?[4]  És besta, ou fazes-te?

Subitamente, apercebeu-se de que a linguagem que estava a utilizar não era a mais correcta. Parou por moimentos, respirou fundo para se acalmar e prosseguiu:

— Tens mas é que o devolver à vítima. Isso sim, é prova de arrependimento – prosseguiu, numa linguagem já mais católica. – Conheces a pessoa, ao menos?

— Sim padre. Conheço.

— Óptimo! Então, livra-te desse pecado. Devolve o relógio imediatamente!

— Desculpe, padre, não sei se conseguirei… Pegue no relógio, padre, fique o senhor com ele, que certamente terá meios de o fazer chegar às mãos do legítimo dono. Estou certo de que durante a homilia, se disser que foi encontrado um relógio alguém se há-de acusar…

— Meu filho, tem paciência, mas não posso aceitar. És tu quem terá de o devolver ao dono, pois só assim mostrarás a Nosso Senhor o teu arrependimento, aquilo que, na confissão, se chama dor de coração. Sem essa dor de coração, não há absolvição possível, meu filho.

— É que há um problema, padre, esquecia-me de lhe dizer: eu já tentei, mais do que uma vez, devolver o relógio ao dono.

— Ah! Graças a Deus! E o que foi que o dono disse?

— Pois, o dono disse que não queria o relógio. Não aceitou.

— Não aceitou? Não aceitou? Mas como não aceitou? — Custava-lhe a aceitar a explicação. Hesitou, algo aturdido: como é que era possível?

— Espera aí: tu estás a tentar dizer-me que furtaste o relógio, tentaste devolvê-lo ao dono, e ele não aceitou? E queres que acredite nisso?

— Padre, vai ter de acreditar. Que Deus me fulmine já com um raio, se estou a mentir!

Deus não fulminou o anónimo confessando. Aliás, no céu, que se mantinha límpido e esplendoroso, nem sequer se vislumbrava nuvem, miserável que fosse, donde pudesse vir raio que partisse o pecador, pelo que só se pode concluir que estava a falar verdade. Conclusão a que também o padre Cristiano chegou sem grande esforço:

— Bom, isso é tudo muito estranho, mas…Se não aceitou, não há pecado… Ora vejamos: tu gamaste  o relógio; tentaste devolvê-lo e o gajo não aceitou. Foi? – interpelou o sacerdote numa linguagem mais do que discutível, considerando a sua posição pastoral.

— Foi, padre. Já lhe jurei que sim, e volto a jurar, se for preciso.

— Sendo assim, é mais fácil dar-te a absolvição. Se o lesado não quis o relógio de volta, significa, só, que se trata de uma alma nobre. Perante isso, Deus Nosso Senhor só tem uma coisa a fazer, que é perdoar-te também.

–…E posso ficar com o relógio?!

— Sendo assim, podes. Não vejo qualquer problema. Agora, repete comigo: Senhor Jesus, Cordeiro de Deus que tiras os pecados do mundo, reconcilia-me com o Pai pela graça da Espírito Santo; purifica-me de todos os meus pecados e faz de mim um homem novo. Amém.

O jovem repetiu a ladainha e o padre deu por finda a confissão:

— O Senhor perdoou os teus pecados. Vai em paz – ao mesmo tempo que traçava, no ar, o sinal da cruz.

O desconhecido levantou-se lentamente. Esfregou os joelhos doridos e beijou a mão do sacerdote.

— Deus o abençoe, padre.

Molhou os dedos na pia de água benta e saiu. Sem mais um pio.

O silêncio voltou ao templo, o tempo foi-se passando.

O santo padre – “santo”, era considerado pelos paroquianos – que tinha mergulhado novamente no breviário, breve se alheou do mundo circundante. O caso do jovem desconhecido foi remetido para o arquivo dos casos encerrados, mesmo sem despacho da hierarquia. O silêncio absoluto regressou à Casa de Deus.

Ouviu que os sinos da igreja tocavam às Trindades. O escuro da noite já ameaçava cair, a “Taberna do 21”, religiosamente começava a animar-se, como era costume todos os dias. Que horas seriam, ao certo? Meteu a mão ao bolso da sotaina, buscando o relógio… Não estava lá! Nem no outro bolso! Nem no outro! Nem no outro! Nem no…

— Valha-me Deus! Mas onde é que eu deixei o relógio? – perguntou aos botões da sotaina que, naturalmente, se mantiveram mudos. Aliás, nem outra coisa seria de esperar.

Entrou em ebulição mental. Diria, talvez, em erupção… Temeu começar a comportar-se como uma truta epiléptica e elevou aos céus uma silenciosa oração, pedindo ajuda divina para manter a calma. Sem grandes resultados, diga-se de passagem, mas isso nem é surpreendente. Deus é para rezar, mas quem quiser acalmar-se toma “xanax”, que é calmante e, além disso, ainda é palíndromo, coisa de que nem todos os medicamentos de podem gabar. Deus não é medicamento, aliás nem sequer é palíndromo, nada de blasfémias. Tentou reconstituir os passos dados desde a última vez que viu o relógio, assim a modos de quem vê um filme pela segunda vez. Já tinha experimentado essa técnica por várias vezes, a conselho da Alzira, a velha governanta, e sempre com bons resultados. A idade não perdoa, já naquela altura não perdoava, e o padre Cristiano era useiro e vezeiro em esquecer-se dos objectos o que, aliás, nem fazia de propósito, mas coisas há que o comum dos mortais não consegue controlar inteiramente, e a mente é uma delas. “Vamos a ver: a última vez quem vi o relógio foi antes de almoçar. Ou teria sido já depois, para ver se já eram horas do terço? Mas, a que propósito é que eu iria tirar o relógio do bolso da batina, se ele até estava preso com a corrente de ouro? Ná… devo tê-lo deixado em qualquer sítio… Mas onde, valha-me Deus, onde?

 

In “O Retrato de Judite” – José Carlos Moreira, Casa das Letras, 2005


[1] Moeda existente à época valendo dois escudos e cinquenta centavos. Equivaleria, aproximadamente, aos actuais €001,5.

[2] Era assim que se escrevia, em números; em letras, podia ser “dois escudos e cinquenta” vinte e cinco tostões”, ou “cinco coroas”.

[3] O mesmo que “ir dentro”,” ir de saco”. Ir preso.

 

[4] O mesmo que “intruja”, “invejoso”. Receptador.

24 thoughts on “A confissão (excertos)”
  • João Pedro Moura

    A propósito
    da confissão religiosa, leiam o artigo 135.º, concretamente o ponto 5, do
    Código do Processo Penal:

    “Art. 135.º

    Segredo profissional

    1
    – Os ministros de religião ou confissão religiosa e os advogados, médicos,
    jornalistas, membros de instituições de crédito e as demais pessoas a quem a
    lei permitir ou impuser que guardem segredo podem escusar-se a depor sobre os
    factos por ele abrangidos.

    2
    – Havendo dúvidas fundadas sobre a legitimidade da escusa, a autoridade
    judiciária perante a qual o incidente se tiver suscitado procede às
    averiguações necessárias. Se, após estas, concluir pela ilegitimidade da
    escusa, ordena, ou requer ao tribunal que ordene, a prestação do depoimento.

    3
    – O tribunal superior àquele onde o incidente tiver sido suscitado, ou, no caso
    de o incidente ter sido suscitado perante o Supremo Tribunal de Justiça, o
    pleno das secções criminais, pode decidir da prestação de testemunho com quebra
    do segredo profissional sempre que esta se mostre justificada, segundo o
    princípio da prevalência do interesse preponderante, nomeadamente tendo em
    conta a imprescindibilidade do depoimento para a descoberta da verdade, a
    gravidade do crime e a necessidade de protecção de bens jurídicos. A
    intervenção é suscitada pelo juiz, oficiosamente ou a requerimento.

    4
    – Nos casos previstos nos n.os 2 e 3, a decisão da autoridade judiciária ou do
    tribunal é tomada ouvido o organismo representativo da profissão relacionada
    com o segredo profissional em causa, nos termos e com os efeitos previstos na
    legislação que a esse organismo seja aplicável.

    5
    – O disposto nos n.os 3 e 4 não se aplica ao segredo religioso.”

    Imaginem
    que um energúmeno vai fazer uma “confissão” a um padre, revelando não que
    roubou um relógio, como na história do José Moreira, mas um assassínio cometido
    por tal energúmeno.

    De
    acordo com o clericalista ponto 5, do artigo 135.º, do Código do Processo Penal,
    o padre não tem que revelar quaisquer crimes, mesmo os mais hediondos, o que,
    concomitantemente, o torna, o padre, cúmplice de crime, pois fica a saber do
    mesmo, mas escusa-se, ao abrigo desse protecionista artigo, a revelar a
    identidade do criminoso ou a chamar a polícia.

    Isto
    é: a padralhada acima de todos os privilégios, incluindo do presidente da república,
    deputados e governantes, políticos estes que só podem ser intimados
    judicialmente, após um processo de autorizações especiais.

    É
    um escândalo inadmissível num Estado democrático, haver privilégios,
    nomeadamente este, em que o clero é o único tipo de pessoas que não pode ser
    inquirida judicialmente, para apuramento da verdade relativa a arguidos, com os
    quais tenha tido contacto.

    Privilégio
    esse que decorre doutro privilégio, o maior de todos, a malfadada concordata, o
    principal instrumento do clericalismo, em Portugal, que, no seu artigo 5,
    determina:

    “Artigo 5: Os
    eclesiásticos não podem ser perguntados pelos

    magistrados ou outras autoridades sobre factos e

    coisas de que tenham tido conhecimento por motivo do

    seu ministério.”

    • Citadino

      Essa ” malfadada concordata” é uma aberração à luz da actual Constituição da República Portuguesa (CRP 1976) que impõe a laicidade do Estado e a igualdade entre as várias igrejas , art. 41º, nº4: «As igrejas e outras comunidades religiosas estão separadas do Estado e são livres na sua organização e no exercício das suas funções e do culto».
      Em nenhum momento a CRP privilegia a ICAR relativamente a qualquer outra igreja ou religião, como se encontra patente no artigo mencionado.
      Ao contrário da Constituição do fascismo que estatuía no art. 46º: «A religião católica apostólica romana é considerada como religião tradicional da Nação Portuguesa», e no art.45º: «É livre o culto público ou particular da religião católica como da religião da Nação Portuguesa». Refira-se que mesmo estes artigos da CRP de 1933 foram inseridos em revisões constitucionais posteriores à concordata de 1940.
      Assim a concordata de 2004 entre o Estado Português e o Vaticano viola o princípio da iguladade de tratamento das diferentes igrejas, por parte do Estado Português, ao privilegiar de forma ostensiva a ICAR!
      Impõe-se, portanto, ou a revogação da concordata com o Vaticano ou a abertura à celebração de outras concordatas com outras igrejas que o pretendam.

      • cínico

        A Igreja Anglicana é a religião oficial e tradicional do Reino Unido. O Reino Unido também é um estado fascista pelo facto de privilegiar uma determinada denominação religiosa ? E é ainda um estado democrático e laico quando de a chefe de estado funciona simultâneamente como chefe da Igreja Anglicana e chefe do estado ?

        • Citadino

          Eu falei de Portugal. O problema do Reino Unido terá que ver com as leis constitucionais do RU.
          Eu não disse que um Estado que privilegia uma determinada religião é fascista. Apenas fiz a comparação entre a CRP actual com a do fascismo para demonstrar que aquela, ao contrário desta, não privilegia em absoluto qualquer igreja, daí que a concordata de 2004 celebrada entre Portugal e a Santa Sé seja ilegítima à luz do texto constitucional actual português.
          Já agora, quanto á “chefe do estado” do RU, deve dizer-se que não chefia coisíssima nenhuma por que de facto apenas tem poderes meramente formais para efeitos turísticos. Até os discursos são escritos pelo primeiro-ministro.

          • cínico

            Falaste de Portugal mas a analogia é pertinente. Isso porque há aqueles que consideram o RU um país democrático. Eu não. Um país onde a chefia do estado não é eleita por sufrágio universal e directo não é democrático. A chefia do estado é o cargo mais representativo da hierarquia de um estado. Por isso, é inadmissível, para mim, que o RU seja visto como um país democrático.Mas, para além deste aspecto, é completamente irrelevante que a monarca inglesa seja ou não uma mera corta-fitas. Seja assim ou não seja, ainda que a monarca inglesa tenha um carácter meramente simbólico,a objecção feita à não democraticidade do RU mantém-se. Se a rainha Isabel não chefia coisa nenhuma, então o que é que ela está a fazer na chefia do estado ? Nada. A gastar rios de dinheiro ao erário público. Substitua-se a monarquia inglesa por um regime republicano que, neste, os presidentes já possuem poderes constitucionalmente consagrados.

            Resumindo e concluindo:

            a) No RU, não existe separação entre Igreja Anglicana e o Estado;
            b) O RU não é um país institucionalmente laico;
            c) Se a Concordata de 2004 fosse inconstitucional, certamente que o assunto já teria sido debatido pelo Tribunal Constitucional. Ora, o nosso TC deve saber um bocadinho mais de leis do que tu, a menos que consideres ser sociologicamente idêntica, na sociedade portuguesa, por exemplo, a representatividade da IURD, da igreja dos mórmons e da ICAR.

          • Citadino

            Em minha opinião há graus de democraticidade nos Estados. Não podemos simplesmente afirmar que este é democrático e o outro não. Neste sentido acho que o RU tem importantes elementos de democraticidade que o tornam um dos países mais democráticos do mundo.
            Claro que a instituição real é anacrónica num país desenvolvido como o RU, mas os ingleses não são parvos e já fizeram muito bem as contas relativamente às despesas com os fantoches reais e aos ganhos com o turismo. No dia em que o balanço for negativo acaba-se a mama. Mas como disse e é sabido, a raínha é uma mera peça decorativa sem o mais mínimo poder de facto. Muita gente não sabe que até os discursos que ela lê são todos escritos ou aprovados pelo primeiro-ministro que é quem detém o poder real. Daí que o RU seja mais repúblicano que muitas repúblicas que assim se intitulam.
            Não apelidei de inconstitucional a concordata. A Constituição não impede a celebração de concordatas, embora seja estranha e desnecessária por parte de um Estado laico. Falei de “ilegitimidade” para significar um juízo de reprovação política, e não jurídica, porque me parece evidente o favorecimento à Igreja Católica. É óbvio que este favorecimento deve-se ao clássico aproveitamento político de colagem do poder ao que lhe é útil, seja a religião ou o futebol, por exemplo. O facto de a ICAR ser ainda dominante em Portugal não lhe deveria trazer qualquer vantagem do poder político de um Estado laico.
            Deves estar de acordo com isto, já que nem sequer és católico.

          • Citadino

            “Substitua-se a monarquia inglesa por um regime republicano que, neste, os presidentes já possuem poderes constitucionalmente consagrados.”
            Isto não é verdade. Há muitos presidentes meramente “corta-fitas” sem quaisquer poderes relevantes, como por ex., na Alemanha e Itália. Por isso é que não são eleitos directamente pelo povo. Ou seja, quando têm poderes de facto, faz todo o sentido o sufrágio directo, quando não têm, tipo raínha de Inglaterra, são eleitos pelo parlamento.
            No caso português o Presidente tem alguns poderes importantes, embora muito aquém do Presidente francês, daí que se justifique a eleição directa. Mas há quem defenda que seria melhor ou deixar só os poderes simbólicos elegendo-o indiretamente e assim dar mais força ao primeiro-ministro e ao parlamento, ou reforçar-lhe os poderes aproximando-o do francês. Eu prefiro deixar como está para haver um maior controlo do poder político.
            Portanto, quanto ao “Chefe de Estado” o RU não fica muito atrás da Alemanha e da Itália mas por mim também a rainha despareceria de cena, até como exemplo para a cidadania de mérito e não de berço.

          • stefano666

            nisso eu concordo… o RU… “god save the queen” nao é laico nem na Conchinchina!

      • João Pedro Moura

        Muito
        bem, Citadino!

        Os códigos de leis portuguesas são tributários da
        Constituição. Como é normal em qualquer país normal.

        Ora, acontece, como eu referi, que o ponto 5, do artigo
        135, do Código do Processo Penal, é tributário da… concordata, que, por sua
        vez, colide com a laicidade patente na Constituição, como o Citadino apontou.

        Então, temos que a concordata está acima da Constituição
        da República Portuguesa, coisa que deveria ser impossível!…

        …Mas é possível! Porque, ao contrário do que a generalidade
        dos bacocos da política e da jurisprudência dizem, o que carateriza a conceção
        política geral dos Estados não é o Estado de direito, mas sim o Estado de…
        vontade!

        Acima do direito está a vontade dos indivíduos. A
        vontade em querer cumprir normas e em fazê-las cumprir. Falhando a vontade ou
        distorcendo-a em relação ao direito estatuído, o direito fica por cumprir,
        mesmo que apareçam indivíduos a reclamar do incumprimento…

        … Se estes colidirem com a vontade dos que, sendo
        responsáveis, não querem fazer cumprir o direito, este não se cumpre. É esta a
        realidade…

        Acontece que a ICAR é uma instituição privilegiada, em
        Portugal (e não só…), desde sempre. Porquê?! Porque é uma instituição muito
        antiga, a mais antiga mesmo da sociedade, porque já leva 1700 anos de
        mancomunação com o Estado, porque tem uma enorme capacidade de sobrevivência,
        desenvolvida em todos esses anos de apuramento da raça clerical, porque na
        Física social há a lei da inércia, porque nas sociedades há a tradição e porque
        a Igreja sempre se manteve, habilidosamente, não só aliada ao prócere
        político-económico, que governa as sociedades, como também, cá em baixo, sempre
        desenvolveu, pela festa, pela caridade e pela “assistência espiritual”, os
        laços de entrosamento e controlo social impregnados no povo, tão do agrado dos
        poderosos governantes e do povo ignaro…

        Então, não se mexe na Igreja…

        Tal como a Constituição também determina o direito ao
        trabalho, à saúde e educação gratuitas, em qualquer nível e… não se cumpre,
        porque o Estado da vontade prevalece sobre o Estado de direito…

        … E não há nenhum Tribunal Constitucional que repare
        nisso… ou que o façam reparar… porque… não há vontade para mudar…

        Esta é que é a verdadeira realidade!

        • Citadino

          O poder político em Portugal só terá coragem de revogar a concordata na altura em que achar que isso lhe trará mais votos. Até lá que se lixem a Constituição e os princípios!

  • José

    Se alguém se dirige a um advogado ou a um sacerdote, sabendo que estes estão sujeitos a segredo, não é eticamente admissível que depois de lhes ser revelado um crime, o advogado ou o sacerdote possam ser obrigados a revelar em tribunal o que lhes foi confidenciado, no pressuposto de que as suas revelações ficariam no âmbito estrito dos advogados ou dos sacerdotes. O João Pedro Moura também devia saber que nenhum criminoso está obrigado a revelar os seus crimes em tribunal e que possui o direito ao silêncio sobre os mesmos para não se auto incriminar. E antes de qualquer julgamento começar, o juiz adverte o acusado que este não está obrigado a auto incriminar-se.Ora, se assim é, por maioria de razão não devem os advogados ou os sacerdotes, em princípio, revelar os seus segredos. A admitir, porém, qualquer quebra de segredo, então o legislador devia aprovar outras normas, determinando que os advogados ou os sacerdotes, antes de escutarem as revelações dos seus clientes ou fiéis, deviam sempre avisá-los de que as suas confissões poderiam vir a ser divulgadas em tribunal. Assim, embora me parece irrazoável a excepção que o Moura refere,quanto aos padres,qualquer estado de direito, digno desse nome, não se comporta nos termos que o Moura preconiza: que os advogados ou os sacerdotes sejam bufos do regime vigente. Com isto quero dizer que, havendo possibilidade de quebra de segredo, qualquer pessoa que for revelar factos criminosos a um advogado ou a sacerdote, deveria ser sempre advertido de que essas revelações poderiam ser usadas contra eles. Isso, sim, seria próprio de um estado de direito, não de um estado eticamente desleal como aquele que o Moura defende.

    • João Pedro Moura

      José, as suas observações gerais são plausíveis, compreensíveis e de curso corrente.
      Mas, o que está em causa é a fase de averiguações ou mesmo de julgamento, e a suspeita de que o depoimento dum indivíduo, pertencente a um grupo profissional dos que “guardam segredo”, referidos no CPP, possa ser excecionalmente importante, “segundo o princípio da prevalência do interesse preponderante, nomeadamente tendo em conta a imprescindibilidade do depoimento para a descoberta da verdade, a gravidade do crime e a necessidade de protecção de bens jurídicos.”

      Ora, nestas circunstâncias, todos os grupos profissionais do “segredo” podem ser obrigados ao depoimento, exceto os padres.
      Privilégio inadmissível!

      • José

        Eu concordo consigo nesse ponto específico. Mas mantenho tudo o mais que disse. Um estado civilizado respeita o princípio da não autoincriminação. Logo, não se pode admitir que qualquer pessoa obrigada a segredo possa ser conduzida a uma quebra do mesmo. Se alguém se dirigir, por exemplo, a um advogado, deve poder revelar que cometeu um crime, sem que depois o advogado seja obrigado a denunciá-lo. A situação com um padre é similar.Com um jornalista também. O artigo 135º que você cita é de uma deslealdade tremenda, a menos que existisse outra norma legal que advertisse os interlocutores dos advogados, padres ou jornalistas, que poderiam ser denunciados, caso lhes revelassem situações criminosas.Isso colocaria qualquer sociedade num pandemónio, pois ninguém confiaria em ninguém. Além do mais, a situação é ainda mais grave quando a lei prevê que o acusado tenha o direito de não se auto denunciar. Então como é, ele tem o direito de se não se auto incriminar em tribunal, mas já pode ser apanhado à má-fila numa situação em que confia na protecção legal do segredo? Isso é de uma imensa hipocrisia, traiçoeiro e claramente anti ético. Das duas uma: ou ninguém pode ser incriminado em situação que esteja assegurada por segredo, ou então acabe-se com todos os segredos legais.O artigo 135º que você citou é uma autêntica fantochada e não e só no nº5.

  • cínico

    Consegui ler este texto até ao fim e não é que gostei ? Sim, gostei. Está bem escrito,prende a atenção,tem um bom ritmo narrativo e não é chato como os textos do Saramago ou do Onofre Varela. Aliás, como não é chato, insultuoso e boçal, não mereceu o acolhimento no actual Diário Ateísta do Ricardo Pinho. Contas antigas por ajustar.

    • Citadino

      Por acaso à medida que o fui lendo, e sem saber o nome do autor, julguei que era do Saramago. Acho que tem o estilo dele em muitos pontos.

      • cínico

        Tu é que és um ponto e estás a ser tão injusto com o Moreira. Se o texto dele fosse chatérrimo como os do Saramago, eu já tinha adormecido depois dos primeiros parágrafos.

        • JoseMoreira

          Obrigado.
          Vou considerar essas palavras um elogio.

          • Citadino

            Não foi um elogio, apenas quis desvalorizar o Saramago por este se ter manifestado sempre contra a religião. A dor de corno tem a ver com o prémio nobel.
            Um nobel ateu é uma porra para os vendedores de banha da cobra…
            Já se percebeu bem a estratégia do menino. Sempre a tentar dividir.

        • Citadino

          Não consegues dizer nada sem entrar na provocação e na agressividade. Será da tenra idade?
          Apenas exprimi uma opinião, que por acaso era elogiosa para com o Moreira. Não é todos os dias que se é comparado com um prémio nobel.

          • Provedor

            O antoniofernando dia mal porque sim. É a missão dele. aqui no portal, é para isso que é pago. É mercenário da fé.. Segue a ética de Jesus de Nazaré. Por isso é que há quem lhe chame velhaco hipócrita.

          • Citadino

            Sim só está aqui para provocar e nada mais. Diz mal da escrita do Saramago apenas porque era ateu e porque falou e escreveu abertamente contra a religião. Em todo o caso acredito que não o consiga ler. A “Caras” é mais acessível para ele…

    • filipe

      Sim, contas antigas por ajustar. Estas por exemplo:

      ” O ódio ateísta só existe na imaginação doentia do Ricardo Pinho” ( José Moreira).

      E agora o articulista fez o possível por esmerar-se. Se calhar passou a cultivar-se nas leituras do Alain de Botton e o resultado está à vista: um texto bem esgalhado e com indiscutível sentido de humor.

      O Ricardo Pinho é que tem memória de elefante e nem com um bom texto o José Moreira consegue honras de primeira página no ” Diário Ateísta”. Esta já está toda reservada para os discursos confessionais, caceteiros, e auto elogiosos do Onofre Varela.

      • Filósofo

        Ó antoniofernando: tu, que até sabes tudo e leste Alain de Botton, diz-me cá: essa coisa da “dor de coração” não estará mal inserida? Não terá mais a ver com o enfarte de miocárdio?

  • GriloFalante

    Bom, o que é facto é que ainda ninguém conseguiu explicar para que serve, concretamente, a confissão. Isto, claro, no ponto de vista do confessando, já que na óptica do confessor, a conversa é outra – como dá claramente a entender o autor do delicioso texto. Julgo, até, que a ICAR é a única instituição religiosa onde a confissão é feita a uma personagem de carne e osso. Nas outras ou, pelo menos, em muitas outras, a confissão é feita directamente ao deus de serviço.

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