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A fé.

O Nuno Gaspar perguntou-me, com o seu jeito cristão gentil e educado, o que eu queria dizer quando afirmei que a fé «É uma meta-convicção, uma convicção no dever de estar convicto de algo» (1). Ora aqui vai.

O termo “fé” inclui várias coisas como crença, confiança, fidelidade, esperança e perseverança, que não são exclusivas daquilo que as religiões chamam fé. Não é preciso ter fé, nesse sentido religioso, para acreditar que o Sol é uma estrela, para confiar num amigo ou lhe ser fiel, para ter esperança que o PSD saia do governo ou para perseverar naquilo que se considera importante. O que caracteriza a fé, como os religiosos a entendem, é a crença de que certas crenças acerca dos factos têm valor por si. É uma meta-crença peculiar.

Não é peculiar só por ser meta-crença. No que toca aos valores, a crença no valor da crença é comum, e até esperada. Por exemplo, se eu acredito que ajudar os outros é uma virtude, é de esperar que também acredite que essa crença é uma virtude. Julgarei ter um defeito de personalidade alguém que acreditar que nunca se deve ajudar os outros, independentemente de os ajudar ou não. Em matéria de valores, as próprias crenças têm valor, bem como as crenças no valor das crenças e assim por diante.

No entanto, apesar de isto fazer sentido com valores é absurdo com os factos. Acreditar que o Sol é uma estrela não é uma virtude, só por si. É uma boa crença, assumindo que é verdade, mas se fosse falsa seria de rejeitar. A diferença é evidente quando consideramos uma situação que ponha em causa uma crença. Em questões de valor podemos ter um dilema constrangedor. Por exemplo, se só com uma tortura terrível é que podemos obrigar o terrorista a dizer onde escondeu a bomba antes que expluda, temos de escolher entre a crença de que é sempre mau torturar e a crença de que é sempre bom salvar vidas. Mas isto é constrangedor precisamente porque é uma escolha. Em matérias de facto as coisas são como são, e resta-nos apenas ajustar as nossas crenças ao que as evidências indicam. Descobrirmos que o Sol, afinal, não é uma estrela, seria surpreendente, seria uma revolução na ciência, mas não haveria razão para dilemas ou constrangimentos. Se as evidências mostrassem claramente que o Sol não era uma estrela o sensato seria mudar de crença e pronto.

O aspecto mais característico da fé é o valor que dá a certas crenças acerca de factos, como se fossem acerca de valores. Para a maioria das pessoas, encontrar evidências de que a Terra é mais antiga do que julgavam leva simplesmente a mudarem de crença. Para um fundamentalista evangélico não é assim, e evidências de que a Terra surgiu há muitos milhões de anos em vez de poucos milhares é fonte de um grande constrangimento porque a sua fé religiosa inclui a convicção de que deve acreditar numa Terra recente. Se acreditar que a Terra tem milhares de milhões de anos de idade está a ser infiel à sua religião.

É por isto que a fé é intrinsecamente contrária à razão e à ciência. Racionalmente, uma crença acerca da realidade só tem valor na medida em que corresponder aos aspectos da realidade que refere. E, epistemicamente, o valor de uma crença depende também da justificação objectiva para concluir que há tal correspondência. Por isso, a atitude correcta é estar disposto a mudar de crenças acerca dos factos sempre que as evidências o justificarem, sem problemas de consciência ou dilemas morais. A fé rejeita essa atitude de imparcialidade atribuindo a certas crenças acerca de factos um valor – até mesmo um dever moral – maior ainda do que o valor dado às evidências. Quem acredita por fé não precisa de evidências que suportem a sua crença nem liga a evidências que a refutem. Porque está convicto do dever de acreditar assim.

«Ora a fé é garantia das coisas que se esperam e certeza daquelas que não se vêem.» Carta aos Hebreus, 11-1.

1- Comentários em Treta da semana: o que eles querem sei eu.

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2 thoughts on “A fé.”
  • antoniofernando

    O Ludwig já aqui se fartou de enunciar a suposta validade de teses supostas científicas que estão longe de constituírem consenso na comunidade científica. Por exemplo, o Ludwig tem uma crença sólida naquela dimensão que eu considero um dos maiores disparates da actualidade: a defesa da Inteligência Artificial Forte. Admitir que um robô, industrialmente sofisticado, possa pensar e possuir consciência, é algo de tão inverosímil e absurdo que ninguém de bom senso pode sequer admitir essa teoria tão inconsistente. Mas o Ludwig tem a crença de que um robô possa vir a ter pensamentos e consciência, desde que, como já o vi defender, essa máquina fosse arquitectonicamente organizada em termos de possuir um cérebro com sístemas físicos neuronais ” equivalentes” aos de um cérebro humano. Mas eu pergunto: em que base de consistência cientfica pode o Ludwig admitir algo tão caricato ? Quais os avanços do actual estado da ciência que lhe permitem defender essa crença tão contrária ao domínio da razão e da lógica ? John Searle há muito que desmontou esse absurdo, mas o Ludwig permanece a acreditar nele. Também já li o Ludwig sustentar que o aparecimento do Universo é compatível com um ” Nada instável”, o que é algo que contraria a mais básica lógica de um mero modus ponens. Se o Nada for algo de fisicamente instável, donde surjam partículas elementares, então já não é Nada, é qualquer coisa.Mas o Ludwig também gosta muito de jogar com palavras enesse jogo aventureiro, não se tem saído nada bem. Com efeito, a este propósito, já o vi defender que a Física Quântica está determinada por processos acausais e igualmente já lhe contrapus, em comentários anteriores, que essa é apenas uma tese muito residual de escassos cientistas. A maioria defende que os processos quânticos estão causalmente determinados, como, aliás, logo se infere do princípio da não-localidade ou entrelaçamento quântico, confirmado pelo físico Alain Aspect, na sequência da tese específica do Teorema de Bell. Como se não bastasse, o Ludwig gosta muito de citar a visão mais clássica e ultrapassada da Teoria da Evolução Darwinista, esquecendo-se de que essa Teoria conheceu progressos significativos que, em muitos pontos, contestam a estrita visão de Darwin. Estou a falar por exemplo, dos avanços da ” nova síntese” e de todos os evolucionistas que põem em causa a estrita perspectiva de Charles Darwin.Se o Ludwig estiver interessado em conhecer a retumbante argumentação de Karl Popper, pondo em causa, com sólida fundamentação racional, a Teoria Clássica da Evolução e a Abiogénese, tem muito por onde confrontar as suas ultrapassadas crenças.No que respeita à Teoria da Evolução Darwinista, que Popper não aceita, conseguiu demonstrar, através de uma série de exemplos concretos, a plausibilidade do entendimento de que o factor predominante na evolução é o comportamento animal. Ora, isso faz pressupor que toda a dinâmica evolutiva é determinada por um processo intrinsecamente inteligente, contrariamente às teses de muitos darwinistas estritamente materialistas, nos quais o Ludwig firma a sua específica mas discutível posição ideológica.
    Ou seja, quer no domínio da IA forte,ou da Física Quântica, ou da Teoria da Evolução, o Ludwig farta-se de dar por cientificamente adquirido, ou teses completamente absurdas, como a da IA Forte, ou teorias pretensamente científicas, mas que hoje não são aceites pela globalidade da comunidade científica, como nos casos da Física Quântica, da Teoria da Evolução ou da Abiogénese. O Ludwig que tanto arenga contra crenças alheias, mantém-se cegamente a asseverar teses que estão bem longe de solidez racional .No caso da IA forte, então é mesmo um autêntico descalabro.

  • kavkaz

    Excelente artigo! A fé faz acreditar em coisas que não são comprovadas e são simplesmente inventadas. A fé até nega o que a Ciência já refutou há muito tempo!

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