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O como, o porquê e a pila da lesma.

Têm-me dito muitas vezes que a ciência apenas nos explica o “como” das coisas e só as religiões nos dizem o “porquê”. Isto tem vários problemas. Nunca dizem, em concreto, qual é o porquê. Não conseguem chegar a consenso acerca do porquê. Assumem gratuitamente que o porquê envolve sempre um quem. Mas o pior de tudo é insistirem que a ciência não explica o porquê, o que é obviamente falso. Vejamos, como exemplo, a lesma banana, Ariolimax dolichophallus, mais o seu pénis e estranhos hábitos sexuais.

Como é de rigor entre lesmas e caracóis, a lesma banana é hermafrodita. E, sendo descendente de um antepassado caracol, tem o ânus e os órgãos sexuais na cabeça, apesar de já não ter a casca que originou essa configuração desconfortável. Há quem lhe chame “design inteligente”. Como resultado, a cópula das lesmas consiste numa troca de esperma em que cada uma literalmente f*** a cabeça à outra. Durante horas, que as lesmas não são bicho para pressas. E com um pénis quase tão comprido como a própria lesma, que pode chegar aos 25cm. Mas mais estranho ainda é o seu comportamento sexual. Há cerca de um século, Harold Heath notou que uma em cada vinte lesmas banana não tinha pénis, ou tinha apenas uma pequena parte do pénis. Achou estranho. Sendo hermafroditas, todas deviam ter pénis. Heath procurou então perceber como é que estas lesmas ficavam sem pénis, o que rapidamente descobriu. No calor do momento, por vezes uma lesma come o pénis da outra, que normalmente retribui o favor.



Fonte: Last word on nothing e Boing Boing.

Estava então respondido o “como”, mas o “porquê” foi mais difícil. Demorou um século até se encontrar a resposta. Que, como devem imaginar, não tem nada que ver com planos divinos ou o espírito santo. A explicação é mais prosaica. Quando uma lesma fornece o seu esperma à/ao companheira/o* tem vantagem que a outra se fique por aí. Porque quanto mais vezes a outra lesma copular, e quanto mais esperma obtiver de terceiras, menos ovos serão fertilizados pelo esperma da primeira. A hipótese avançada para explicar porque é que uma lesma banana come o pénis da outra é que esta mutilação reduz a probabilidade de novos encontros sexuais, aumentando assim o número de descendentes da canibal. O único senão é que a outra aproveita para lhe fazer o mesmo. O trabalho fascinante da Brooke Miller (1) tem sido testar esta hipótese, recorrendo a marcadores genéticos que lhe permitem seguir e contabilizar a descendência de cada lesma, medindo directamente a aptidão de cada lesma para deixar descendentes. Até agora os dados confirmam a hipótese de que a razão fundamental – o porquê das lesmas comerem o pénis uma à outra – é a competição ao nível do esperma (2). É daqui que vem a pressão selectiva para este comportamento.

Esta explicação vai ao fundo da questão. Se nesta linhagem de lesmas, durante muitas gerações este comportamento levou, em média, a um número maior de descendentes, não é preciso invocar outros factores – nem inteligência divina, nem propósito nem omnipotência – para perceber o como e o porquê do comportamento. As lesmas que não se comportavam assim simplesmente não deixaram descendentes suficientes para serem antepassados de alguma lesma de hoje. Eis o porquê, que a ciência revela. Acrescentar a isto um porquê religioso é completamente desnecessário, se bem que até seria engraçado ver uma religião a tentar explicar, em detalhe, o porquê do seu deus criar lesmas que comem o pénis umas ás outras.

* Sendo hermafroditas, não têm os nossos problemas com o sexo ser homo ou hetero. Ninguém as avisou que a homossexualidade é contra a Lei Natural.

1- Página pessoal da Brooke Miller.
2- Resumo da dissertação Sexual conflict and partner manipulation in the banana slug, Ariolimax dolichophallus.

Em simultâneo no Que Treta!

6 thoughts on “O como, o porquê e a pila da lesma.”
  • antoniofernando

    “Esta explicação vai ao fundo da questão. Se nesta linhagem
    de lesmas, durante muitas gerações este comportamento levou, em média, a um
    número maior de descendentes, não é preciso invocar outros factores – nem
    inteligência divina, nem propósito nem omnipotência – para perceber o como e o
    porquê do comportamento”

    LK

    Essa explicação mostra :

    1- Que esse comportamento é inteligente, como, aliás, se infere desta passagem do Ludwig:. “as lesmas que não se comportavam assim simplesmente não deixaram
    descendentes suficientes para serem antepassados de alguma lesma de
    hoje”

    2- Se as lesmas se comportam de uma forma coerente com o sentido dessa ” pressão colectiva”, há racionalidade nesse comportamento;

    3-Se existe inteligência e racionalidade no comportamento das lesmas, ou seja, se o mesmo não é determinado por força do mero acaso, então os seres vivos possuem inteligência;

    4- Se essa inteligência animal existe, podemos perguntar como surgiu;

    5- Se a inteligência ou a consciência existe no reino animal, podemos então tentar indagar donde proveio.

    6- Filosoficamente, há quem sustente a prevalência da consciência em relação aos seres vivos, por exemplo David Chalmers e Sam Harris;

    7- Se, como o ateu Sam Harris sustenta, a consciência precede o cérebro dos seres vivos, ou seja, se é uma substância imaterial, podemos então perguntar como e em que circunstâncias ela surge na realidade dos animais:

    8- Os ateus têm como única resposta para estas questões, da existência da inteligência, da racionalidade e da consciência, em todos os seres vivos, uma perspectiva meramente materialista, mas ninguém até hoje conseguiu demonstrar a cientificidade da abiogénese.

    9- Ou seja, o LK, sobre estas pertinentes questões, traz-nos , como habitualmente, uma mão cheia de nada.

    • Ludwig

      António,

      Dizer que há inteligência porque há selecção natural é como dizer que a areia fina é ineligente por passar pelos buracos da peneira. É uma confusão. O processo que deu origem a estas lesmas não tem nada de inteligente. Não entende o que se passa, não prevê o que vai acontecer, não conceptualiza, não racioncina, não tem vontade nem objectivos.

      • Cristão Verdadeiro


        não tem nada de inteligente. Não entende o que se passa, não prevê o que vai acontecer, não conceptualiza, não racioncina, não tem vontade nem objectivos.”
        Espera aá: estás a falar do cínico antónio fernando?

      • antoniofernando

        Ludwig

        Dizer que ” o processo que deu origem a estas lesmas não tem nada de inteligente” é contraditório com esta sua outra afirmação: “as lesmas que não se comportavam assim simplesmente não deixaram descendentes suficientes para serem antepassados de alguma lesma de hoje”. Isso revela propósito e inteligência, a evolução não acontece por acaso. Quando as árvores lançam raízes na direcção da água, há inteligência e racionalidade nesse facto. Quando os castores edificam represas, alguns símios constroem instrumentos, ou as aves organizam ninhos, qualquer pessoa medianamente atenta perecebe que há direccionamento inteligente nessas condutas. Repare que não estou a afirmar que é Deus que dirige esses eventos, estou a sustentar que os processos inteligentes estão patentes em toda a Natureza e que isso é por demais evidente para ser negado. As palavras ” selecção natural” e ” pressão selectiva” tornaram-se, para muitos darwinistas acríticos, uma espécie de slogans panfletários. Na verdade, o que importa é demonstrar como operam essa ” selecção natural” e essa ” pressão selectiva”. E é aí que vários cientistas e intelectuais de renome contestam a visão simplista de Darwin e dos seus fiéis seguidores. A este propósito, cito, por exemplo, as visões específicas de Karl Popper e de Jerry Foder, só para lhe citar dois exemplos eloquentes de grandes filósofos contemporâneos, que fazem contundentes críticas à perspectiva estritamente darwinista da evolução. Você apela para uma petição de princípio, quando nega a inteligência e o propósito na evolução natural. Mas é um discurso circular que não consegue pôr em causa a evidência dos factos, tais como estes: os animais têm estratégias altamente inteligentes de caça às respectivas presas, como acontece com os leões, cooperam para capturar a presa, usam de uma estratégia inteligente para alcançarem os seus objectivos de alimentação. As sociedades das formigas e das abelhas revelam níveis elevados de processos complexos e inteligentes. O que há de mais patente no meio natural são comportamentos inteligentes, que você sistematicamente nega, sem nenhuma justificação plausível. A evolução natural não tem nada de acaso nem de processo irracional. A inteligência animal é uma realidade demasiado óbvia para poder ser negada, mas é isso que você se recusa exactamente a ver, moldado que está numa mundividência ateísta completamente redutora e inconsequente.Quanto à questão da abiogénese, você também não tem resposta convincente para fornecer: como é que de uma estrutura material surgiu a primeira célula protobiótica ? Como é que surgiram a consciência e a inteligência ? Mero produto de estruturas químicas e moleculares ? A biologia é o simples resultado da química ?
        Aqui, deixo-lhe algumas considerações tecidas pelo neurocientista e ateu Sam Harris:
        “A maioria dos cientistas consideram-se fisicalistas, o que significa,entre outras coisas, que acreditam que as nossas vidas mentais e espirituais estão totalmente dependentes do funcionamento do nosso cérebro. Nesta perspectiva, quando o cérebro morre, o fluxo do nosso ser tem necessariamente de ter um fim. Mas a verdade é que simplesmente não sabemos o que é que acontece depois da morte. Embora se possa dizer muita coisa para contrariar a concepção ingénua de uma alma que seja independente do cérebro, o lugar da consciência no mundo natural permanece ainda uma questão em aberto. A ideia de que é o cérebro que produz a consciência é pouco mais do que um artigo de fé entre os cientistas de hoje, e temos muitas razões para acreditar que os métodos da ciência serão insuficientes, quer para a provar, quer para a refutar” (Sam Harris, O Fim da Fé, página 231). Como vê, Ludwig, você continua a trazer-nos, quanto às questões essenciais da vida, uma mão cheia de nada. Petições de princípio não conseguem tapar o Sol com uma peneira…

  • kavkaz

    Achei divertido chamarem de “design inteligente” ao facto da lesma banana ter o ânus e os órgãos sexuais na cabeça. Tal coisa, pressupostamente, só poderia ser resultado da imaginação de um deus! Inteligência divinal… :-))

  • Lu´s Almeida

    Excelente, LK! Estou sempre a aprender algo convosco…

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