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A pescada, o rabo e a boca.

Ontem decorreram as II Jornadas Fé e Ciência, sobre “Deus, Acaso e Determinismo” e o problema de «reconciliar o papel central que o acaso tem no relato científico do mundo com o relato teológico da relação de Deus com o mundo» (1). A propósito, o Alfredo Dinis escreveu que «Torna-se necessária uma nova compreensão de como o acaso não só não é um obstáculo à fé num Deus omnipotente e criador, como é indispensável a um Deus omnipotente que cria o universo e a vida tal como os conhecemos.»(2)

Uma ideia central do cristianismo é que um ser omnipotente e inteligente planeou isto tudo. Esta premissa atravessa toda a concepção cristã do mundo e de como o podemos perceber. Na epistemologia, presumem que qualquer evidência de organização e funcionalidade é indicativa desse propósito e, portanto, dessa inteligência divina, dando-nos a conhecer esse Deus. O existencialismo cristão rejeita que a nossa existência possa fazer sentido se não fizer parte de um plano, traçado algures no início dos tempos, que nos cumpre agora seguir. E a ontologia cristã defende que o universo só pode existir graças a Deus porque tudo o que surge tem necessariamente de ter uma causa, de onde depois extrapolam várias conclusões ainda menos substanciadas.


Ontológico

Via Facebook, obrigado à Palmira Silva

A constatação de que há acontecimentos sem causa e de que o futuro não pode ser completamente determinado pelo passado obriga a rejeitar este fundamento determinista, o que é um problema para a hipótese de que tudo isto faz parte do plano inteligente de um ser omnipotente. Em vez de considerar rever essa hipótese, o Alfredo, e os teólogos em geral, propõem mantê-la a todo o custo, criando hipóteses auxiliares quanto baste para defender que «o acaso não só não é um obstáculo à fé num Deus omnipotente e criador, como é indispensável a um Deus omnipotente que cria o universo e a vida». A isto, um filósofo na linha de Lakatos chamaria um programa de investigação degenerativo, e um não-filósofo chamaria tapar o Sol com a peneira.

O Nuno Gaspar, entre outros, vai certamente apontar que isto não tem qualquer importância para a fé das pessoas. Muitos que orientam os seus valores por uma ideia do divino estão-se nas tintas para o que a mecânica quântica diz. Concordo, e partilho dessa atitude. Por exemplo, a ideia de justiça é importante para mim e, mesmo que as descobertas da ciência possam alterar ligeiramente esse conceito, nunca vou sentir que o tenha de rejeitar só por força dos factos. Mas isto é assim porque a justiça é um ideal e não um elemento da realidade. Quem considera que o seu deus é um ideal, sem assumir que é uma entidade real, também não precisa de se preocupar em testar ou rejeitar essa ideia só por causa dos factos. No entanto, a posição da teologia é diferente. Não considera o divino como uma expressão conceptual de valores (como caridade, virtude ou justiça, por exemplo), mas sim como uma hipótese acerca dos factos. O Alfredo defende que existe mesmo uma pessoa eterna e omnipotente que criou o universo com um propósito e de acordo com o um plano. Isto não é um ideal acerca de como as coisas deviam ser, mas uma alegação acerca de como realmente são.

Alegadamente, a teologia procura respostas para as perguntas últimas acerca do propósito e significado do universo. Uma parte importante desta demanda seria descobrir que o universo está cheio de acontecimentos sem causa e que é fundamentalmente indeterminista. No entanto, este aspecto tão fundamental escapou por completo a vinte e tal séculos de argumentação teológica. A sua descoberta deveu-se ao método da ciência moderna, em dois ou três séculos, juntamente com uma imensidão de outros detalhes e revelações profundas acerca da natureza da matéria, do espaço-tempo e até da consciência humana. Claramente, há uma grande diferença entre procurar a verdade e correr atrás a inventar desculpas.

Eu proponho ao Alfredo e restantes teólogos que a procura por respostas exige a disposição para rejeitar qualquer hipótese em favor de alternativas mais promissoras. Enquanto os teólogos se agarrarem às mesmas hipóteses acerca do seu hipotético deus não poderão fazer mais do que argumentar em círculos, tentando em vão resolver “problemas” que são unicamente fruto de partir das premissas erradas. Em vez de tentar “compreender” como é que o hipotético criador causa acontecimentos sem causa, seria mais produtivo considerar a hipótese de não haver tal criador sequer. Afinal, se admitimos que algo pode acontecer sem ser causado ou determinado por algo que o preceda, deixa de ser necessário postular um deus para explicar como o universo surgiu. E a história dos últimos séculos revela claramente que o avanço no conhecimento é muito mais rápido e fiável quando se abandona esse postulado.

1- Alfredo Dinis, II Jornadas Fé e Ciência: Deus, Acaso e Determinismo
2- Alfredo Dinis, Deus, acaso e determinismo
Também no Que Treta!

4 thoughts on “A pescada, o rabo e a boca.”
  • Athan3

    Seu  “instinto”, sua “percepção” da vida, sua observação lógica, indicam o seu “pautar-se na Justiça”; isso porque a Natureza, ou, o próprio ESPAÇO é composto e suas estruturas constituídas por conceitos, leis, diretrizes, que apresentam o que vc e qualquer ser consciente concebe como Justiça. O postulado da Equanimidade demonstrado pela Lógica Espacial é clara determinação desse fato/fenômeno; por isso até hoje (desde 1985), ao invés de se instruir a Lógica Espacial nas escolas e universidades, preferiram tentar desgraçar toda a vida do Pensador Haddammann Veron Sinn-Klyss. 
    Fizeram assim com Mendel (formataram inclusive ‘estória’ sobre sua vida), e fizeram assim com Galileu, e com muitos cientistas que prospectaram descobertas de fronteiras-adiante; e até agora, neste momento, os pulhas tentam e tentam prejudicar o Pensador, mas ele ainda detém sereno o fio do Desenlace. 
    Discussões imbecis que forçam atenção à completa idiotice de declarações vão minando o campo psicológico da Sociedade Humana; os pulhas não vão retroceder, e os que se “acham importantes” desperdiçando seus tempos com a pantomima fútil e miserável dos sofistas e dissimuladores vão continuar o seu dia-a-dia com a impressão que estão fazendo alguma coisa útil.
    A surpresa, meus caros, será como a cara que borra a maquiagem da mentira.  A Humanidade não será continuamente desgraçada por esses bandos de equivocados, pelas corjas de canalhas; cada chefeta-de-crenças e seus lacaios vão ter a conta do desgraceiro que nos fizeram.

  • Nem Religioso Nem Ateu

    A constatação de que há acontecimentos sem causa
    Não há acontecimentos sem causa. Há acontecimentos cuja compreensão humana ainda não abarcou a causa. 
    Nada acontece sem um concurso factos que determinam a sua causa. 

    Em vez de tentar “compreender” como é que o hipotético criador causa acontecimentos sem causa,
    Se um criador provocou um “acontecimento sem causa”, esse acontecimento tem uma causa: a vontade do criador. 

    Acreditar em “acontecimentos sem causa” é muito menos inteligente do que acreditar na imortalidade da alma.  

  • Nem Religioso Nem Ateu

    Relendo atentamente o post, e mesmo sem gostar de teologia, acho que esta frase, no estado actual do conhecimento, é correcta e indiscutível. 
    «o acaso não só não é um obstáculo à fé num Deus omnipotente e criador, como é indispensável a um Deus omnipotente que cria o universo e a vida».

    O acaso não pode existir como hipótese de trabalho.

    Porque me sairá o euromilhões? Porque jogo e preencho todas as condições para que as bolas sorteadas tenham os números que eu marquei. 

  • Anónimo

    Caro Ludwig

    A temática que suscita é uma espécie de ” pescadinha de rabo” na boca. No fundo, você repete o mesmo tipo de argumentação e eu poderia voltar a repetir todos os argumentos de refutação, que, por várias vezes, expendi neste ” D.A.” e que você também conhece.

    Mas desta vez não vou fazê-lo, seria também reafirmar a minha visão preponderantemente deísta, que considera mais plausível admitir a existência de um Criador na origem da Vida e do Universo do que o mero acaso cego das leis da Física.

    Se algum dia você quiser elaborar um texto sobre a problemática da Consciência e da Mente, terei todo o prazer em vir aqui comentar.

    Por agora, limito-me a enaltecer mais uma vez este seu texto e a forma inteligente como sabe expor.Parabéns.

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