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Treta da semana (passada): a bem das criancinhas.

William Lane Craig é um famoso apologista cristão. Um dos argumentos a que mais recorre para provar que o deus dele existe – e que engravidou Maria, morreu na cruz e essas coisas todas, por arrasto – é que existem deveres e valores morais objectivos, e que essa tal coisa dos deveres objectivos só pode existir porque o deus dele existe. A apologética justifica esta alegação pela premissa de não poderem existir deveres morais objectivos na natureza, premissa com a qual até concordo para certas definições de “deveres morais objectivos”. Mas deixa por explicar como é que esse tal deus cria deveres morais que sejam realmente objectivos. Este é um problema bicudo, como ilustra um artigo de Craig no Reasonable Faith.

Alguns leitores pediram-lhe para justificar a moralidade do genocídio que Deus mandou cometer contra os povos da terra prometida, ordenando aos Judeus que matassem todos os homens, mulheres e crianças (Deut. 7:1-2; 20:16-18). Craig é evangélico, por isso leva a Bíblia mais à letra do que os católicos. Mas mesmo interpretando esta chacina como uma metáfora, ela não abona nada em favor do deus que a ordenou. A mensagem é clara, e nada compatível com o que consideramos ser benevolente. Uma justificação de Craig para este comando divino é que

«De acordo com a versão do mandamento divino ético que eu defendo, nossas obrigações morais são constituídas pelos mandamentos de um santo e amoroso Deus. Uma vez que Deus não emite ordens a si mesmo, Ele não tem obrigações morais para cumprir. Ele certamente não esta sujeito às mesmas obrigações e proibições a que nós estamos. Por exemplo, eu não tenho nenhum direito de tirar a vida de um inocente. Para mim, fazer isto me tornaria um assassino. Mas Deus não tem tal proibição. Ele pode dar e tirar a vida como Ele decidir.»(1)

Isto demonstra bem a inconsistência dos tais “deveres objectivos” que estes religiosos defendem, um problema já conhecido desde Platão, pelo menos. Se houvesse mesmo um fundamento objectivo para a moral, então até Deus seria julgado à luz desses preceitos, sendo bom ou mau conforme agisse de acordo ou contra o que fosse o seu dever objectivo. Mas, nesse caso, não seria preciso Deus para haver moral. Mesmo sem deuses já haveria um fundamento para os valores e deveres morais. Para que o seu deus não seja supérfluo, apologistas como Craig defendem que a moral tem de vir dos mandamentos divinos. Mas, nesse caso, a moral é um capricho arbitrário desse deus, e deixa de fazer sentido classificar Deus de bom se o bem for tudo o que lhe der na divina gana. Isto é o contrário de um fundamento objectivo para a moral.

A outra justificação é, na prática, ainda mais perigosa:

«Além do mais, se nós acreditarmos, como eu acredito, que a graça de Deus é estendida para aqueles que morreram na infância ou como pequenas crianças, a morte destas crianças era verdadeiramente sua salvação. Nós somos tão apegados à perspectiva naturalista terrena, que nós esquecemos que aqueles que morrem estão felizes por deixar esta terra pela alegria incomparável do paraíso. Então, Deus não faz nada errado ao tomar suas vidas.»

Além de reduzir a ética ao capricho de um ser imaginário, estas religiões alegam o que lhes der jeito acerca dos factos para justificarem os seus preconceitos. Se alguém matar uma criança é um assassino porque é pecado matar crianças. Tal como pode ser pecado sair à rua sem autorização do marido, cortar as patilhas ou usar preservativo. Como não há forma de testar a alegação de que algo é pecado, cada religião pode escolher a lista de pecados que mais lhe convir. Por outro lado, se é por mandamento divino que alguém mata crianças, sejam cananitas ou outras vítimas de terrorismo religioso, então pode-se inventar que essas crianças vão para o paraíso e que o homicida, afinal, é um herói que lhes salvou a alma. Almas, paraísos e mandamentos divinos são outra área de especulação fácil dada a impossibilidade de testar o que se alega.

É por estes aspectos que a moral religiosa é uma fantochada perigosa. Não quer dizer que a moral de todos os religiosos seja má. Felizmente, muitos religiosos são pessoas decentes e com discernimento suficiente filtrar o que lhes tentam impingir as religião que lhes calham. Mas estes princípios de que vale tudo o que Deus mandar e que é legítimo alegar factos impossíveis de conhecer são o contrário da ética. Em vez de ter um fundamento sólido para as regras morais, a moral passa a reflectir apenas os caprichos e conveniências daqueles que se dizem representantes dos deuses. Precisamente o que se vê nos meandros da religião profissional.

1- Tradução no blog Fé Racional do artigo de Craig no Reasonable Faith. Obrigado a quem me enviou, em privado, a ligação para a crítica no AlterNet.

Em simultâneo no Que Treta!

11 thoughts on “Treta da semana (passada): a bem das criancinhas.”
  • Anónimo

    “É por estes aspectos que a moral religiosa é uma fantochada perigosa ”

    LK

    Você até começou bem o seu artigo, Ludwig, mas acabou muito mal.

    Concordo consigo na crítica justa que fez à afirmação de Craig, sintetizada na enorme estupidez que se retira desta bocado:


    Ele pode dar e tirar a vida como Ele decidir.
    Então, Deus não faz nada errado ao tomar suas vidas.»
    Quem é Craig para se pôr a adivinhar os supostos propósitos de Deus ?

    Mas depois,e mais uma vez, fugiu-lhe a tentação para a análise superficial que se retira destes dois medíocres panfletos:


    É por estes aspectos que a moral religiosa é uma fantochada perigosa.
    Não quer dizer que a moral de todos os religiosos seja má”

    Há preceitos morais, religiosamente evocados, nos quais eu me revejo, noutros não”

    Imagine que eu lanço aqui aquela bojarda panfletária do seu menor companheiro LGR, citando o velhaco Diderot, ilustrada com uma foto de uma forca:

    “O homem só será livre quando o último déspota for estrangulado com as entranhas do último padre”

    Esse vómito pretende traduzir o quê ? Um mero escarro ? Ou um odioso incentivo ao enforcamento de todos os déspotas e de todos os padres ?

    Como, para o dito LGR, ” Bento XVI é um facínora”, segundo essa mesquinha ” lógica”, seria o primeiro a abater.

    Tudo isso feito em nome de quê, perguntará você ? Ora, Ludwig, não seja ingénuo, não se arvore em puritano. Feito, ” claro”, em nome da “superior ética ateísta”, não é ?

    Felizmente que muitos ateus são pessoas decentes, Nem todos se comportam como Diderot e Luís Grave Rodrigues.

    Você não parece ser mau tipo. Mas também é verdade que foram muitos ” bonzinhos” que contribuíram para a subtil instigação ao ódio.

    Sobretudo aqueles que se calam quando as ofensas vêm ideologicamente direccionadas a partir das respectivas confrarias.

    Mas não desespere Ludwig, continue a tentar que, para a próxima, pode ser que consiga elevar a superioridade do seu pensamento…

    • Ludwig

      António

      «Há preceitos morais, religiosamente evocados, nos quais eu me
      revejo, noutros não.»

      É precisamente esse o meu ponto. Se o
      António selecciona quais os preceitos morais religiosamente evocados
      que são correctos, e rejeita outros que considera errados, é porque
      o António usa como norma para os avaliar algo que não lhe vem da
      religião.

      Se a sua moral viesse da religião,
      então a sua moral teria de ser tudo aquilo que alguma religião
      evocasse. E a sua moral seria assim apenas porque era assim a
      religião. É isso que eu chamo de fantochada perigosa.

      • Anónimo

        Ludwig

        Há várias formas de fantochada.Por mim nunca abdiquei de pensar criticamente.

        E é por isso mesmo que me insurgi contra o facto de o Ludwig ter generalizado a sua apreciação a toda a moral religiosa, abrangendo-a na caracterização de ” fantochada”.

        Nenhum crente, que não se demita da função de pensar autonomamente, aceita seja o que for que a sua consciência não reconheça como eticamente válido.

        Eu não sou certamente a excepção.

        Provavelmente, o Ludwig só conhece ou invoca uma certa tipologia de crentes.

        Eu, por razões que não vêm agora ao caso, convivo regularmente com pessoas ateias do mais elevado gabarito ético.

        E, infelizmente, também acabei por me deparar com ateus que, do genuíno sentido ético, só conhecem as suas próprias fantochadas, e não é certamente o seu caso.

  • Kavkaz

    Excelente post. Os crentes precisam de aprender a respeitar os “Direitos Humanos”. O facto de pensarem que existe alguém que dispõe da vida dos outros e a pode violar por sua conveniência é, realmente, uma “fantochada perigosa”. Daí partirem para a banalização da agressão e do crime contra outros inocentes é um passo curto que dão, baseados no péssimo exemplo dos seus deuses violentos, agressivos e rancorosos.

    Os chefes religiosos em vez de criticarem e acusarem a banditagem dos deuses, relatada nos livros “sagrados”, acabam por calar-se e/ou até elogiar tais crimes como permissíveis a quem tudo pode, quer e manda. Não pode ser assim. Os deuses relatados nos livros deveriam dar o exemplo. Mas portam-se muito mal e hoje as pessoas podem prescindir bem dos deuses e das religiões para viverem melhor.

  • Alfredodinis Facfil

    Caro Ludwig,Passar da opinião ética de Craig à moral ‘das religiões’ é um salto lógico mortal. Que eu saiba Craig só se representa a si mesmo e as suas ideias estão a anos luz de serem representativas do quer que seja. Eu poderia citar o famoso James Watson para o qual há diferenças de inteligência entre negros e brancos para daí concluir que ‘as ciências’ são racistas. Mas não o farei nunca. Seria logicamente falso. Seria também intelectualmente desonesto.Nem gostaria que alguém me apludisse (‘excelente post!’). Nem iria a lado nenhum.

    Um abraço,

    Alfredo

  • Kavkaz

    Os ateus têm razão em dizer que não há deuses e estes foram criados pela mente humana para dar resposta lógica (mas não verídica) às dúvidas sobre o Universo.

    A evolução da Ciência e as suas crescentes descobertas contradizem tudo o que vem escrito nos “livros sagrados” dos crentes. Estes livros escrevem estórias que nada têm a ver com deuses.

    Os crentes são incapazes de responderem a questões simples relacionadas com os seus deuses, quantos são, como são e onde estão. Os crentes não sabem nada e tudo o que afirmam são “bolas de sabão” feitas de estórias mal contadas.

  • Deus

    Deus não existe

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