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  • 31 de Janeiro, 2011
  • Por Carlos Esperança
  • Literatura

Foram-se as indulgências (Conto)

Jerónimo Felizardo estava a aliviar o luto a que a perda da amantíssima esposa, Deolinda, o obrigara. Não se pode dizer que lhe fora muito dedicado em vida nem excessivamente fiel. Mas habituara-se a ela como um rafeiro ao dono que o acolhe.

Sentia-lhe agora a falta. Deolinda de Jesus dera-lhe tudo. Mesmo tudo. Até o que é obrigação e nela nunca foi devoção e, muito menos, entusiasmo. Deu-lhe independência económica, boa mesa, respeito e uma filha. Deixou-lhe uma pensão de professora, metade do ordenado do 10.o escalão, que acrescentava a outros proventos e o punham ao abrigo de sobressaltos.

Com a filha não podia contar. Fora para Lisboa frequentar a Universidade Católica, a cujo curso e influência deve hoje o desafogo em que vive e o lugar importante no Ministério. Metera-se no Opus Dei e enjeitou a família. Mesmo a mãe, a quem fora muito chegada, só lhe merecera duas breves visitas nos três anos de doença prolongada com que Deus quis redimi-la do pecado original.

Era natural que substituísse as visitas por orações, que não exigiam deslocações nem hora certa, que haviam de prolongar a vida e o sofrimento, assim Deus a ouvisse. E ouvi-la-ia de certeza porque, além de omnipotente e omnisciente, vinham duma devota fiel à instituição que o Papa amava quase tanto como à bem-aventurada Virgem Maria.

A poucos meses de fazer meio século Jerónimo empanturrava-se de comida que Carolina, afilhada do crisma de D. Deolinda, se esmerava a cozinhar com um desvelo que a filha nunca revelara. Bem sabia que a gula era um pecado capital mas que a prática e o exemplo eclesiástico largamente tinham despenalizado. Nem mesmo o Prefeito para a Sagrada Congregação da Fé, tão cioso guardião da moral e dos bons costumes, o valorizava demasiado. A gula não é propriamente a luxúria, que é das maiores ofensas feitas a Deus, pecado dos maiores e, de todos, o que mais contribui para a perdição da alma.

Em tudo o mais era Jerónimo um viuvo exemplar. Dera-se à tristeza e à oração. Arrependia-se das vezes em que não cumpriu o dever da desobriga, da frequência escassa à eucaristia, das missas a que faltou, em suma, das obrigações de cristão que não cumpriu com a intensidade, duração e frequência que recomendava a Santa Madre Igreja. Mas, de tudo, o objecto maior de arrependimento era o adultério que cometera e em que, sempre confessado, reincidiu.

Mas isso terminara há muitos anos. A infeliz que seduzira casara e virara fiel ao marido a quem agradecia tê-la recebido canonicamente apesar de saber que já não ia como devia. Conformado, não se importando de ficar com mulher que já não ia inteira, nunca suspeitou de ornamentos de homem casado, sempre julgou que o autor era um antigo namorado que a morte por acidente impediu de reparar a desonra.
Desse pecado se redimira já, pela confissão, penitência e promessa de nunca mais pecar. Agora, à castidade que se impunha, ao cumprimento dos mandamentos a que se devotara, juntava uma vontade forte de conquistar indulgências nesse ano 2000 do Grande Jubileu.

Bem sabia que as indulgências requerem sempre a confissão sacramental, a comunhão eucarística e a oração pelas intenções do Papa, condições sine qua non para a sua obtenção. Quanto às disposições para a sua aquisição não era difícil cumpri-las. Bastava peregrinar a uma Basílica, Igreja ou Santuário designado para o efeito, e eram várias as opções na diocese, e rezar o Pai-nosso, recitar o Credo em profissão de fé e orar à bem-aventurada Virgem Maria, tarefas de que se desobrigava com prazer e entusiasmo. Mesmo a recomendável contribuição significativa para obras de carácter religioso ou social estava ao seu alcance e não deixaria de fazê-lo.

Embora gozando de excelente saúde e de razoáveis análises nunca é demasiado cedo para o sincero arrependimento e cuidar da alma. Veio a calhar o ano do Grande Jubileu que Sua Santidade avisadamente instituiu nesse Ano da Graça de 2000.

Jerónimo tomou como bênção do Céu ter ficado Carolina a cuidar dele. Antes de se recolher ao quarto rezavam os dois, todos os dias, por D. Deolinda, Esposa e Madrinha, respectivamente, para que a sua alma mais célere entrasse no Paraíso, aliviada das penas do Purgatório.
Passava os meses dedicado à oração, à penitência e à agricultura, outra forma de penitência que alguns teólogos interpretam como a mensagem do anjo do 3.o segredo de Fátima. Disse-me um crente praticante, e não incréu militante, que a penitência que o anjo três vezes pediu era uma forma de exigir dedicação à agricultura, modo de empobrecer e salvar a alma, vacina contra os sectores secundário e terciário onde os homens perdem a fé e a Igreja os fiéis.

No primeiro dia de Maio, a seguir ao jantar, horas depois dos comunistas ateus se terem manifestado nas ruas de Lisboa e Porto, enquanto Carolina ficou a arrumar a cozinha, foi Jerónimo ao mês de Maria, acto litúrgico que na sua cidade de província sobreviveu à conversão da Rússia e à consagração do Mundo ao Imaculado Coração de Maria.

À saída da igreja entrou no carro, dirigiu-se à quinta que distava duas léguas da cidade, deu um bocado de conversa ao caseiro e uma olhadela às vitelas, distribuiu-lhes ele próprio um pouco de ração, mandou verificar a pedra que tapava o buraco das galinhas para protegê-las da raposa, deu a bênção aos afilhados, filhos do caseiro, e regressou à cidade onde viveu em vida de D. Deolinda, por vontade dela que detestava a lavoura e o campo, e vivia agora por hábito e fidelidade à memória da falecida.

Ao regressar a casa admirou-se de ver todas as luzes acesas, excepção para o seu quarto que a luz do corredor iluminava discretamente.
Ia entrar em busca da santa Bíblia quando, sobre uma colcha de seda, na cama, deparou com o corpo esbelto de Carolina, esplendorosa escultura de 20 anos à espera de ser percorrida, vestida apenas de penumbra e longos cabelos castanhos esparsos sobre o peito, donde brotavam túmidos mamilos à espera de afago.

O quarto parecia iluminar-se progressivamente. Já uns lábios carnudos se ofereciam sequiosos e um corpo arfava em pulsações rápidas, num incontido furor de ser possuído, numa ânsia insuportável de ser saciado, primícias ávidas em busca de serem saboreadas.
Jerónimo sentiu sobrar-lhe roupa e minguar-lhe a resistência.

Foram-se as indulgências…

3 thoughts on “Foram-se as indulgências (Conto)”
  • Athan3

    Tais são as hipocrisias da vida, dessa falida vida, a que entregamos a outros meter-se nela, e ditá-la, e nos oferecer migalhas e rasas chances de jogar todas as baboseiras fora; porque enfim falta-nos arrojo para aventurar uma mudança que precisamos e não apenas as ilusões que nunca em estado miserável e reprimido (por forcas socialmente insanas) vivenciamos.
    Estamos num local de fiés-pedantes, com a porca no lugar do nariz (lugar do tipo em que um padre bota um derrotado todo desgraçado a ficar com uma garrafa de cerveja na mesa horas a fio só vigiando quem passa em troca de um resto de comida, uns trocados, ou uma masturbação; ou que um pastor bota uma derrotada toda desgraçada a ficar a vigiar as pessoas nas praças e nas ruas dos bairros em troca de um resto de um cupom de esmola de comida, ou enquanto come a filha, o filho, dela antes de assassiná-los);e em lugares assim acontece isso:
    Prestem atenção no que a mentalidade chafurdade em crença faz a si mesma, individual e socilamente:
    Há um córrego, entre casas e edifícios ditos de “modernos” (alguns — dentro da putaria da corja divina de esgulhepar o dinheiro e a vida das pessoas — não passam de uma caixa tipo pombal); o riacho passa então frente à casas, prédios, e até escola frequentada por gente que tem dinheiro.
    Tá bom.
    Na rua já tem logo duas igrejas (as duas, como todas as outras, com farta denúncia na mídia de suas “práticas”) e uma seita tipo ‘paz e amor’. Aí entra a cabeça com muita porcaria de divinices e nenhum proveito civil com o que teríamos que aprender na escola e USAR na nossa vida na Sociedade.
    Estão TAPANDO o riacho, cimento puro,arbustos que ficaram ao longo tem só uns quarenta centímetros de lado de um quadradinho enforcando o tronco; tá ótimo. Sombra para os passantes? Pra quê?
    O negócio é tapar aquele canal porque ‘ele enfeia’, e ‘não-condiz’ com a pompa dos fiéis-pedantes que se arrostam em mostrar pros outros que “moram bem”.
    Que bom!
    Essa não é a tecnologia para cuidar de córregos, sabemos que não é.
    Vamos aos problemas? Querem saber o que é que esse cara tem a ver com isso? Seus filhos de padrecos canalhas e pastutos safados …
    a) tem entradinhas ali, mas como vão limpar? Pedras são arrastadas aos poucos atravancando o caminho da água.
    Os enxames de baratas aumentam desmesuradamente num âmbito assim abafado, úmido, escuro. Vão, jogar veneno violento ali dentro?
    b) Vai continuar a crescer plante ali, e? Ao entupir com as chuvas o esgôto vai estagnar dentro das casas, além de provocar enchente maior e pior nas ruas.
    E o mais lindo:
    As plantas que se multiplicam nessas condições consomem oxigênio e liberam gáz carbônico.
    Vamos dar um pulinho no Rio de Janerio. os caras estão construindo uns prédios-pombal em lugar “chique” ou tornado chiqueiro de bestice; e antes do concreto secar, eles já estão pisando em cima, ms na hora do almoço já tem lá os sérvus-fiéis pregando a “palavra da vida”.
    A “óbra” deles é LAMBONA. Lá tá infestado de igrejas dessa desgraçada maneira de ganhar dinheiro.
    Porque que esses caras não vão pro ‘céu’ e deixam os outros fazerem as coisas bem feitas, pra se viver um pouco com o direito à dignidade aqui na Terra.
    Os garotos e garotas ao invés de estarem se divertindo e estudando, estão servindo para fazer palhaçada se jogando em ‘peças-boçais-pregadoras’, em calçadas sujas nas ruas, enquanto uns espetalhões, se fazendo de alma-penadas, se mascaram “tomando conta das iscas”. Usando uma ‘jogada de prostituição’ para levar outros espertalhões que queiram ser “abençoados” pras igrejas.
    Se você empesteia as escolas de canalhas-divinos e suas canalhices, se você enfia esses a divinice desgraçada nas construções, nos serviços de infra-estrutura social, se você acha tão bonitinho seus filhos beijando cachorros e afastando-se das pessoas (que vc considera ruins, não-confiáveis, pois só se pode confiar em jeosusu, no Bunda, no Xaveco, etc); olhando com desprezo mortal para os mendigos e enchendo o rabo de parasitas-divinos de dinheiro, então meu caro desprezível arremêdo de gente: Você é um FALIDO. Um desgraçador da vida civil, um fracassado pessoalmente, e tem toda essa desgraça social que tá aí bem colocada nas suas costas. E toda hora vc vai ver em cima de você o que você faz.
    Que se dane, que a enchurrada levou aquelas casas todas lá longe, sua televisão tá ligada não é? O arrombado canastrão tá lá “pregando” e manda você se ajoelhar. Alguém tá se masturbando no bigbrother … isso é o que interessa, não é?
    Cabe-nos botar a cara no espelho e ver o que temos sido diante de tudo na Natureza.

  • antoniofernando

    Agora temos um Carlos Esperança mais mansinho, mais literato e menos panfletário.Você, devia dedicar-se à escrita de bom nível como esta e mandar o seu alter ego sectário às malvas. Mas, cá para mim, você não consegue mesmo pôr em sentido os seus demónios interiores, que o instigam a bochechar todos os dias com malvas do pior sectarismo ideológico.Conte comigo para o pôr em causa sempre que for preciso…

  • Athan3

    o caso desse pústula sem-noção se resolve rápido cara a cara, é só o esperança dar o IP desse infeliz; mas o escrúpulo civil o impede; apenas esperar que a sua paciência esgote, pois o crápulazinho invade seu sítio e esculacha tudo, e grunhe o que quer em cima do que ele escreve.
    Talvez o Esperança deixe, para vermos esse boçal como um dos mais podres exemplos da desfaçatez de alguém infectado por crença.

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