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  • 18 de Dezembro, 2010
  • Por Carlos Esperança
  • Literatura

A visita pascal_1 (Crónica)

O Senhor Jesus Ressuscitado viajava, no Domingo de Páscoa, pelas casas da aldeia a recolher o ósculo e a esmola dos devotos. Onde não chegava antes do anoitecer ia no dia seguinte, com desgosto dos paroquianos que o aguardavam. A bênção valia o mesmo, é certo, mas perdia-se o tempo da espera e era diferente. Por isso, para não contrariar os mesmos, todos os anos mudava o itinerário.

Transportava-o o sacristão, que o entregava ao vigário em cada paragem, e era acompanhado por devotos que aliviavam a alma e recolhiam esmolas suplementares para os santos que exornavam a igreja local. Um garoto levava a caldeirinha de água benta que passava ao sacristão enquanto o padre se ocupava da cruz e recolhia-a depois deste despachar a tarefa e de se ocupar do hissope, num movimento de rotação, a aspergir com vigor, em cada lar, um círculo protector das investidas do demo, bênção que não deixaria de acautelar também o vivo que morava na corte, por baixo.
Era um tempo em que não havia vírus nem pneumonias atípicas, as pessoas viviam porque Deus queria e finavam-se quando o Senhor era servido, sem intromissão do médico a estorvar a divina vontade de as chamar.

Em todas as casas as vitualhas aguardavam a visita ao lado de uma garrafa de jeropiga rodeada de cálices. Entrava primeiro o padre, seguido do sacristão e do garoto que conduzia a caldeirinha. Aguardavam nas escadas os outros para depois os revezarem. Genuflectiam-se os da casa, por ordem cronológica, para beijar o pé do Jesus até chegar ao chefe de família que era o último a ajoelhar e o primeiro a soerguer-se. Borrifada de água benta a habitação, recolhida a esmola destinada ao Ressuscitado, a mais substancial, o padre bebia um trago de jeropiga e mordiscava um naco de pão-de-ló, por consideração, enquanto o sacristão aviava o cálice, de um sorvo, e se desforrava nos bolos. Às vezes demoravam-se mais um pouco para que o senhor padre rezasse uns responsos a rogo, geralmente por alma de quem tinha deixado com que pagar o latim.

Havia no séquito que aguardava nas escadas um homem por cada santo que ornava os altares da igreja, disponível para arrecadar a oferenda. Assim, enquanto o padre e o sacristão desciam, subiam eles para recolher, se a houvesse, a esmola que a cada santo cabia, consoante as posses e a devoção dos anfitriões. Creio que os turnos de acesso se estabeleciam em função do espaço e não da liturgia.

Mais de metade da paróquia percorrida, com o padre e o sacristão aguentando o múnus a pão-de-ló e regada a fé a jeropiga, a vingar-se o último, a conter-se o primeiro, a acelerarem todos para as casas que faltavam, o sacristão avaliou mal a distância que o separava das escadas na última casa onde entraram, abalroou o garoto que transportava a caldeirinha que logo a soltou, verteu a água e arremessou o hissope contra a parede. Foi grande o reboliço enquanto o sacristão e a cruz varreram enrolados as escadas sem que alguém do séquito lhes deitasse a mão, impávidos, como se evitassem estorvar se acaso fosse promessa a queda.

O padre, vermelho de raiva e da jeropiga, aguentou-se nas pernas e conteve a língua, ao cimo das escadas, enquanto, sem largar a cruz, se despenhou por entre as alas de acompanhantes o sacristão. Este recuperou rapidamente o alinho e endireitou a cruz, sem ninguém se aleijar, Deus seja louvado, e o padre despachou logo um paroquiano com uma jarra de vidro a caminho da igreja a sortir-se de água benta, com o aviso de se apressar, estava a fazer-se tarde, faltava ainda muito povo para aviar. Se recriminações houve ficaram reservadas para a discrição da sacristia.

No dia seguinte as conversas da aldeia começavam todas por Deus me perdoe, seguidas de persignações apressadas e de risos amplos, terminando em ansiedade pelo pecado cometido ou pelo temor da desobriga, mas ninguém resistiu a contar o sucedido e a comentá-lo, sendo mais forte a tentação do que a piedade.

18 thoughts on “A visita pascal_1 (Crónica)”
  • antoniofernando

    Carlos Esperança, ora deriva para textos tão panfletários, mesquinhos e sectários, a grande maioria, ora, de quando em vez, elabora textos como este, numa clara demonstração de bipolaridade estilística difícil de entender.Talvez oscile entre a ambivalência de um qualquer ressabiamento interior, que a incursão pela área do religioso lhe causou, e uma afectuosidade sincera aos eventos de religiosidade popular. Porventura isso determinará que, num dia, acorde virado para os panfletos generalizantes e injustos. E, no dia a seguir,deseje redimir-se dos seus textos menores. Seja como for, sou incapaz de não censurar o que mereça crítica. E de não louvar o que mereça elogio.Analiso este texto pelo seu intrínseco mérito literário. E a conclusão a que chego, é que Carlos Esperança se devia dedicar à escrita de nível superior, de que já deu várias provas de ser bem capaz, e de que este é também um bom exemplo…

    • Carlos Esperança

      António Fernando:

      Confunde a minha condição de cronista de um semanário prestigiado com a militância ateia.

      Boas festividades natalaicas. (Laicas e do solstício)

      • antoniofernando

        Deixe-me só acrescentar-lhe esta nota complementar:

        1-Há dias em que Carlos Esperança se aprimora para escrever num ” semanário prestigiado”;

        2- Há outros dias em que se rebaixa ao nível panfletário para escrevinhar no “D.A.”;

        3- O” semanário prestigiado” é, pela amostra da diferenciação estilística, muito mais importante para CE do que o “D.A”;

        4- Ou seja:por contraposição às exigências discursivas do dito ” semanário prestigiado”, o “D.A.” não é um blogue conceituado,como implicitamente se retira do próprio raciocínio silogístico de CE.;

        5- Também já me parecia que você tem muito mais de crente ressabiado do que de verdadeiro ateu.Você só o veio confirmar…

        • carpinteiro

          Também já me parecia que você tem muito mais de crente ressabiado do que de verdadeiro ateu.Você só o veio confirmar… ÉS UM TROLL!!!

          • jmc

            do not feed

          • antoniofernando

            Cala a boca ó javardo e capataz subserviente.E aprende a ser limpinho ó merdoso:

            http://www.youtube.com/watch?v=EtQxhCiIKIM

        • Trol Ateu Verdadeiro

          Também já me parecia que você tem muito mais de crente ressabiado do que de verdadeiro ateu.

          Quem conhece o Carlos Esperança sabe que esta é a frase que melhor o caracteriza.
          E ele não nega, diga-se!

      • Troll Ateu Verdadeiro

        E se escreves coisas destas num semanário, quem é o redactor que te dá espaço?

        Se a Páscoa na tua terra era assim, sempre te digo: percebo porque és tão atrasado!

        Jeropiga em todas as casas… beber ao raio que vos parta!

    • Carlos Esperança

      António Fernando:

      Confunde a minha condição de cronista de um semanário prestigiado com a militância ateia.

      Boas festividades natalaicas. (Laicas e do solstício)

  • antoniofernando

    Não confundo, não. Acho que você é que anda interiormente dividido, entre o aprimoramento discursivo e o panfletarismo menorizante.E depois ainda há quem não acredite em “demónios interiores”…

    Em todo o caso,porque é que também não havia de lhe desejar um Feliz Natal, na vertente certamente mais laica e solsticial que você apreciará ?

    E a propósito de boas festividades natalícias,para os meus companheiros de debate crentes deixo aqui,o acesso a este link, que presumo muito também apreciarão, com a especial recomendação que cliquem na imagem do lado direito,logo a seguir à abertura da página:

    http://holyfaceofmanoppello.blogspot.com/2010/10/holy-facebook-wwwfaceofgodcom.html

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  • carpinteiro

    Ó Tony, vai-te encher de moscas…

    • antoniofernando

      Pena que o nojento do carpinteiro não se mantenha aprisionado na sua reles estrumeira.Sempre poderia poupar este decadente “D.A” ao seu pestilento odor.Mas o merdoso não descansa enquanto o CE não cair na tentação de o eleger para permanente capataz de serviço. O rapaz bem se vem esforçando há 1031 tentativas mas CE ainda tem,por enquanto, um assomo de lucidez de não lhe fazer as vontadinhas.Ainda bem, senão este nojento acabaria por enterrar definitivamente este panfletário blogue.Entretanto, para usar uma fraseologia que o carpinteiresco bem conhecerá, ele vai-se cagando e peidando à tripa forra…

  • Antonio Porto

    O conhecimento do carlos esperança sobre o catolicismo é profundo,
    isso não me admira por ter se tornado ateu e crítico do catolicismo.
    Mas fico imaginando quantas hóstias foi “obrigado” a engulir, e a
    quantas procissões “obrigado” a seguir antes
    de se libertar e conhecer a “verdade”.
    O ateísmo (podem falar o contrário) é mais uma ideologia sentimental do que intelectual.

    • jmc

      compreendo que veja o ateísmo como forma de revolta contra a doutrina que foi pregada a muitos quando eram jovens em países como o nosso

      não é caso absoluto, porém. considero-me em alguma fortuna comparativamente, pois nunca me foi imposta “à força” uma religião. nunca percebi bem a lógica de um deus, acreditava apenas quando era criança mas quando comecei a pensar mais nisso simplesmente achei absurdo o conceito.

      neste sentido, vejo o meu ateísmo muito mais como uma ideologia intelectual do que sentimental. não sei se o mesmo se pode dizer sobre as religiões.

      • Troll Ateu Verdadeiro

        nunca percebi bem a lógica de um deus,

        E alguma percebeste a lógica de alguma coisa?

        • jmc

          de todas as matérias de filosofia que estudei no secundário, foi a lógica que tive a melhor nota, por isso acho que sim

  • Elmano1948

    Mais um belo texto do CE. E mais uma vez a trazer-me à memória, recordações da infância em terras beirãs. Os meus pais eram muito pobres. Mas cumpriam todos os pagamentos exigidos. Pagavam a congrua…cumpriam as promessas. Não havia dinheiro para comprar amêndoas para os filhos. Foi assim que num domingo de Páscoa depois das benzeduras, o padre e comitiva foram convidados para comerem o pão de trigo (nós comíamos broa, feita com farelo e tudo) e uns nacos de presunto. De repente vi mu pires cheio de amêndoas em cima da mesa. Os meus olhitos de criança ali ficaram fixados na expectativa de alguma sobrasse para mim. Qual quê. Depois de atacarem o pão de trigo e os nacos de presunto, o padre e o sacristão atiraram-se a elas. As que sobraram foram”religiosamente” arrecadas nos bolsos enquanto a criança que eu era largava umas lágrimas de desilusão.

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