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  • 15 de Dezembro, 2010
  • Por Carlos Esperança
  • Literatura

Por quem andas de dó?_1 (Crónica)

Das andanças pelo país que cada promoção implicava na vida de um funcionário de finanças, contava-me meu pai que numa aldeia de Bragança, onde aguardou dois anos o regresso à Guarda e à família, era costume os homens exonerarem Deus da obrigação de os chamar à sua divina presença.

Eles próprios encarregavam-se de o fazer por mor da disputa das estremas de uma vinha ou da serventia que dava acesso a um lameiro; por velhas rivalidades de que os próprios esqueceram a origem e mantinham vivo o ódio; por causa da partilha da presa comum cuja água era escassa e muita a necessidade para o renovo.

Motivos não faltavam, nem vinho à mistura, para azedar os ânimos e brandir o sacho ou a roçadoira após breve troca de palavras e despachar para o outro mundo o menos lesto a sacar da arma ou mais desprevenido de munições.

Soía às vezes acabar conformado um cristão, vítima de moléstia que lhe levava a febre e o consumia, a quem aparecia o pároco com o Viático mas faltava o médico para o aliviar das dores e o salvar.

Não era diferente nas terras da Beira onde as bengaladas, acabado o vinho dos pipos, desfaziam a feira e rachavam cabeças com a facilidade com que nessa mesma manhã se negociaram as rezes e se cobrara o alboroque.

Pior era a navalha de ponta e mola trazida de Espanha, na candonga, e espetada à sorrelfa na confusão dos chapéus que voavam, das cabeças que se abriam e dos trambolhões que o desequilíbrio do corpo avinhado e o acidentado do terreno propiciavam.

Eram tempos duros e valia pouco a vida…

Nesse ambiente rural e violento ganha credibilidade o diálogo, naquela aldeia de Bragança, que meu pai me reproduzia. Perguntaram a uma rapariga que vestia de luto carregado:

– Então por quem andas de dó, Maria?
– Ai, por mê pai.
– Então quem to matou, Maria?
– Ninguém… foi Deus quem no apanhou à falsa fé na cama.

21 thoughts on “Por quem andas de dó?_1 (Crónica)”
  • antoniofernando

    Carlos Esperança na sua fase mais delico-doce.Amanhã se verá…

  • Anónimo

    É SEMORE À FALSA FÉ, SÓ ELA NÃO SABIA QUE DEUS NADA TEM A VER COM A MORTE…

    NEM COM A VIDA.

  • antoniofernando

    Está mais do que visto, CE: o estilo sóbrio não dá votos. Se der ao pessoal o melhor de Schopenhauer,Thomas Huxley, Karl Popper ou Carl Sagan,ou até de um tal Carlos Esperança,eles põem-se a milhas. Mas se lhes dadivar o pior do panfletário e sectário Dawkins, os porreiristas aparecem já aí todos a arengar generalidades e boçalidades e de baldes de pipocas bem recheados para o que der e e vier…

    • Elmano1948

      Estás enganado Tonecas. Revejo-me nesto belo texto do CE. Recupera as minhas memórias de infância em terras beirãs. Partilha de terras quase sempre gerava confltos inter-familiares. Demandas e cachaporrada certa. A partilha das águas era também motivo de desavenças frequentes. Lembro-me que, com seis sete anos, tinha de me levantar ainda de noite e acompanhar o meu pai para fazer a rega das hortas. Porque se não tivessemos vasado a represa até ao romper do sol outros a usariam. Vale a pena frequentar este sítio, mesmo tendo que suportar os Tonecas e os Jairos Coiratos.

      • carpinteiro

        Elmano.

        Efectivamente assim é.
        Numa aldeia raiana do interior do nordeste transmontano a pouco mais de trinta quilómetros de Bragança, Moimenta, no concelho de Vinhais, o problema resolveu-se com a chamada “Lei de Regadio”.
        Esta lei foi aprovada pelos anciãos e a sua origem perdesse no tempo.
        Nela foi estabelecida a distribuição das horas para todos poderem regar.
        E como muito bem dizes, quem não usasse a água em devido tempo, perdia a favor do próximo.

        • Anonimo

          “Esta lei foi aprovada pelos anciãos e a sua origem perdesse no tempo.”

          Parece que neste caso, ser aprovada por anciãos e em tempo longínquo é sinal de respeitabilidade.

          Mas falta dizer que há dois tipos de uso da água: “rega” (de verão) e “lima” de (inverno).

      • antoniofernando

        Outro que espuma raiva pelas beiçolas.Eis a ” superioridade” intelectual do pensamento ateísta, evocada pelo seu elmano representante…:)

        • Elmano1948

          Sou ateu. Já tive pensamentos e comportamentos anti-clericais mas, por obra do DA e dos seus pacientes colunistas, encaro hoje as vítimas das religiões com muito mais tolerância. Porque também eu fui sua vítima. Se há aqui alguém que espume raiva pelas beiçolas és tu meu pobre “diabo”!

    • Anónimo

      Exactamente, Toino. A única diferença é que você não espera oportunidade para arengar boçalidades e banalidades. Aproveita todas as ocasiões, sejam oportunas ou não.
      O que foi que, de interessante, você defecou até ao momento? Schopenhauer,Thomas Huxley, Karl Popper ou Carl Sagan? Bah! muito batido. Não conhece mais ninguém? Ou dá-se bem com a pescadinha-de-rabo-na-boca?

      • antoniofernando

        Olha o putativo psi voltou a dar um ar de sua graça. Já não o via desde que esteve acamado numa caminha de um hospital público a ruminar vinganças anti-clericais. Para quando mais uma das suas “pérolas” literárias, ó douta Eminência ?…

  • antoniofernando

    Está mais do que visto, CE: o estilo sóbrio não dá votos. Se der ao pessoal o melhor de Schopenhauer,Thomas Huxley, Karl Popper ou Carl Sagan,ou até de um tal Carlos Esperança,eles põem-se a milhas. Mas se lhes dadivar o pior do panfletário e sectário Dawkins, os porreiristas aparecem já aí todos a arengar generalidades e boçalidades e de baldes de pipocas bem recheados para o que der e e vier…

  • carpinteiro

    É o Tony no DA e o emplastro nas câmaras de televisão detrás do Pinto da Costa.

  • Comboio_correio

    – Então por quem andas de dó, Maria?
    – Ai, por mê pai.
    – Então quem to matou, Maria?
    – Ninguém… foi Deus quem no apanhou à falsa fé na cama.

    “Deus” se ao menos matasse… Se ressuscitasse um morto… Se… Se… Faria prova da sua existência.
    Mas os SES escapam-se. Mas…
    Enfim, um bom texto. Bom…
    E o blogue?… Ateu?
    E os comentadores?… Ao que vejo, militantes das chagas de um cristo morto e enterrado – se é que alguma vez morreu. Para haver um morto terá que ter morrido. E se morreu, é porque existiu… Se não existiu… Não pode ter morrido.
    Pois.
    E eu a passear por aqui e… A fome de encontros ateístas não se acalma.
    OS SACRISTAS SÃO UMA PRAGA…!

    Com DUM DUM… Sim, talvez com DUM DUM.

    • Santissimatrindade

      Em plena sintonia, quanto à qualidade do texto (sim…), quanto aos “sacristas” é que discordo. DUM DUM?… Nãaaa!… Eles só fogem com preservativos. Sugiro que o fundo do blogue deixe de ser branco. Arranjem um grafismo com preservativos. Verão os gajos a baldarem-se à força toda.

    • Anomino

      E não reparou o comboio nº 20 (vulgo correio, no meu tempo), que a pergunta feita é estupidamente absurda:

      “Então, quem to matou Maria?”

      Alguém, não supondo que houve assassínio, faz esta pergunta, ou questiona antes:

      ” E de que morreu, Maria?”

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