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Quando era criança…

Por

Abraão Loureiro

Quando era criança vivia carregado de pesadelos e culpas. Pois a minha família, exceptuando o meu pai, era de formação cristã e era nesse contexto que se figuravam os valores morais e sociais.
Ora isto ensombrou a minha vida até cerca dos 10 anos de idade.
Frequentei a catequese, davam-me santinhos (gravuras tipo flyer) como recompensa de bom menino, aprendia as orações (com dificuldade) e não gostava nada de estar enfiado na igreja sempre ouvindo a mesma retórica cansativa.
Como sempre fui bom de ouvido, parecia-me que as coisas não batiam certinho. Não fomos nunca bombardeados com a leitura da bíblia mas sempre nos diziam coisas que lá estavam escritas do género “que deus disse isto, mais e mais que deus disse aquilo, o código de honra do bom cristão com o nome de OS DEZ MANDAMENTOS e mais aquele ror de coisas que qualquer português foi obrigado a ouvir.

Por achar que tudo aquilo era bastante deprimente, uma bela tarde resolvi sair para brincar no jardim que ladeava a igreja. Azar o meu. Meu pai que nem estava morando na minha vila, não sei porque carga de água apareceu a meio da semana, passou na rua e ao ver-me chamou-me. Fiquei feliz por ver o meu pai mas tive azar mesmo. Depois de me beijar perguntou-me: que andas aqui fora a fazer? Respondi que não gostava de assistir à catequese nem acreditava no que diziam e vim para o jardim brincar. Pois é! Levei uma palmada na cara e mandou-me entrar na igreja imediatamente alegando que na catequese estaria melhor do que na rua porque lá dentro não me ensinavam a ser mal educado nem a roubar. Que quando eu fosse grande e tivesse cabeça suficiente para saber o que está certo e errado então eu seria livre de fazer as minhas escolhas.
Bem, uma atitude tomada por um homem ateu, agora imaginem o que seria se ele fosse crente. Se tivesse acontecido com a minha avó era certo que quando chegasse em casa ela não se ficaria por um chapadinha.

Continuando. Eu não vivia junto com o meu pai por uma razão muito penosa. É que “deus” roubou-me a minha mãe quando eu tinha 6 anos de idade e durante algum tempo vivi com os meus avós maternos. Todos me diziam que ela estava no céu porque deus a chamou e que ela estava sempre a olhar por mim para me proteger de tudo. Infinitas vezes dirigi os olhos ao céu de dia e de noite em busca da minha tão saudosa mãe sem nunca vislumbrar um esboço da sua figura. Deus nunca compreendeu o quanto sofri nem nunca contou as lágrimas que chorei. Não era justo haver um ser sobrenatural tão bom roubar-me quem me amava.

A TUBERCULOSE, ainda não tinha cura e foram muito poucos os que conseguiram sobreviver. Se sobreviviam era MILAGRE se morriam era “deus” que chamava os justos. Os primatas das sotainas tinham resposta certeira para tudo, eram os SÁBIOS mas faltou-lhes sabedoria para raciocinar e a vontade de trabalhar para descobrir o remédio para a cura. Tempo não lhes faltou.

Na escola secundária éramos dois os que rejeitávamos as aulas de religião e moral, eu por não acreditar e o meu colega Marcelino por pertencer à religião Pentecostes. Tanto um como o outro, no horário dessa disciplina, saíamos para a rua mesmo correndo o risco de falta registada. Na verdade aquele padre era um gajo porreiro, mandava uns tantos à nossa procura para nos dizerem que ele não começava a aula sem nós estarmos presentes. Isso causava peso na nossa consciência e acabávamos por ir. Ele sempre nos dizia, vocês podem acreditar ou não mas eu tenho de dar a aula para a turma completa. Salvo raras intervenções nossas, cada um com a sua opinião bem diferente, esta aula era a chamada SECA. Há que dizer também que este padre era ainda jovem e brincalhão. Só ficou chateado uma vez comigo porque contei a anedota do milagre dos pães. Disse-me apenas que não me autorizava mais a contar anedotas contra deus.

Não foi por raiva que virei as costas à religião mas sim porque tive liberdade de pensamento e discernimento para interpretar o que ouvia daqui e dali. Fazia comparações e pensava nas histórias da bíblia. Achava absurdas as escrituras ditas sagradas. Fazia contas de cabeça e os resultados eram sempre os mesmos: Validade nula.

Para quem nasce e cresce no seio de uma família ateia e aprende a viver com a realidade em vez da irrealidade, a vida é simplesmente SIMPLES. Mas para quem tem de se libertar das garras de uma educação baseada em crença, para muitos a coisa é DIFÍCIL.

Caro crente, alguma vez se interrogou se o seu rebento está seguindo a mesma estrada que a sua?
Caso ele se interrogue sobre a existência de deus numa primeira fase, qual a atitude que vai ter com ele?
Se ele um dia lhe disser: Pai, desculpa mas preciso de te dizer que não acredito em deus e não quero frequentar cultos nem quero casar pela igreja.
Que atitude tomará em seguida?

Com respeito por todos, o meu abraço.

12 thoughts on “Quando era criança…”
  • carpinteiro

    «A TUBERCULOSE, ainda não tinha cura e foram muito poucos os que conseguiram sobreviver. Se sobreviviam era MILAGRE se morriam era “deus” que chamava os justos. Os primatas das sotainas tinham resposta certeira para tudo, eram os SÁBIOS mas faltou-lhes sabedoria para raciocinar e a vontade de trabalhar para descobrir o remédio para a cura. Tempo não lhes faltou.»
    – Parabéns pelo texto.
    «Para quem nasce e cresce no seio de uma família ateia e aprende a viver com a realidade em vez da irrealidade, a vida é simplesmente SIMPLES. Mas para quem tem de se libertar das garras de uma educação baseada em crença, para muitos a coisa é DIFÍCIL.»
    – Revejo-me nas suas palavras.
    Também eu fui sujeito a um terrorismo psicológico do qual tive bastante dificuldade em me libertar.
    Deus ama-te! – dizia-me o padre Porfírio.
    Mas eu não quero que me ame, – repondia-lhe.
    Este garoto está possesso, – retorquia o padre enfurecido.
    E assim a minha infância foi ceifada pelos Funcionários-de-Deus mais as suas histórias sobre as penas do fogo do Inferno e o castigo de não ser temente a Deus e amá-lo acima de todas as coisas.
    Deviam ser responsabilizados por isso. Penso muitas vezes com os meus botões. Mas a sua impunidade é tão grande como a do deus que lhes sussurra ao ouvido as coisas mais abomináveis.
    Quando olho para trás, uma frase se me afigura:
    – Que profissão tão malvada!

    • Andreia_i_s

      Carpinteiro:

      “Também eu fui sujeito a um terrorismo psicológico do qual tive bastante dificuldade em me libertar.
      Deus ama-te! – dizia-me o padre Porfírio.
      Mas eu não quero que me ame, – repondia-lhe.
      Este garoto está possesso, – retorquia o padre enfurecido.”
      São destas cosias que muitos não deveriam fazer e que infelizmente ainda o fazem. Pena é que são as crianças que paguem por esse tipo de educação mas também os adultos. E Carpinteiro deixe que lhe diga, a sua resposta foi um máximo 🙂 cinco estrelas.

      Ah e para o autor do texto está de parabéns mais uma vez :), e ao lê-lo voltei um bocado atrás ao meu tempo e revi as minhas passagens de crente, mas que agora me sinto bastante melhor e mais feliz e não quero voltar atrás mas sim continuar em frente firme.

  • antoniofernando

    Caro Abraão Loureiro

    Não apreciei nada o seu anterior texto. Mas deste gostei muito. Considero essencial, independentemente das nossas crenças ou descrenças, separarmos sempre o trigo do joio e tentarmos não sermos sectários nas nossas apreciações. Este texto está cheio de sensibilidade e,de alguma forma revejo-me nele.Passei a acreditar em Deus ainda muito criança e antes mesmo de ir para a catequese.Em miúdo costumava ir para a aldeia passar férias e gostava imenso de contemplar as estrelas.Recordo-me que foi nessas contemplações que acreditei na existência de um Criador.Na catequese havia muita coisa que não batia certo com a concepção bondosa do Deus que, em criança, apreendi.Mas, entre o que diziam os livros e o que me revelava o sentimento, optei sempre por seguir o que me ditava o coração. Há cerca de três anos, passei uma grande crise de fé ,por razões que tiveram a ver com o desmoronar de parte significativa da minha vida. Sofri aquilo que é muito doloroso para qualquer ser humano: o travo amargo da injustiça e da ingratidão.Nessa altura, compreendi perfeitamente o grito pungente de Cristo na cruz: ” Meu Deus Porque Me Abandonaste ?”. Minha querida mulher ateia, e membro da Associação Ateísta Portuguesa, temeu que eu deixasse de ser crente. Ela gostaria de acreditar em Deus mas não consegue ultrapassar o crivo de um pensamento racional muito céptico. E perguntou-me se não seria a minha concepção de Deus que estava errada. A vida tem destas imensas ironias. A minha mulher ateia foi elemento decisivo na superação da minha crise de fé. Hoje, não rezo a Deus, no sentido de lhe pedir especiais benesses para mim. Aprendi que a vida é Evolução, mas não apenas na vertente de Charles Darwin. Também, e essencialmente na vertente espiritual. Há razões para passarmos pelas nossas vivências, as mais felizes e as infelizes, assim o penso. Fiquei a reflectir no que a minha mulher me dissera. Se não seria a minha concepção de um Deus interventor na realidade humana que estaria errada. E depois dessa interpelação, encontrando-me a meditar em plena Natureza, perguntei-Lhe: ” Meu Deus, onde estás ?”. Surpreendentemente, como uma inesperada rajada de Luz, recebi imediatamente no interior da minha consciência esta resposta tão inesperada quanto surpreendente: ” Procura-Me no silêncio”. Deus não lhe roubou a sua amada mãe. Se me permite esta reflexão meramente pessoal,a alma é eterna e sua mãe vive num outro etéreo plano, longe dos olhos da vista, mas muito perto de si e do seu coração. Cristo disse aos apóstolos que havia alguns mistérios que não podia revelar-lhes, porque eles não estavam preparados para os perceber. Modestamente, depois de muitos anos a procurar aprimorar o meu conceito de Deus, julgo pressentir para que domínio da percepção mais ampla da realidade apontava o Nazareno. Mas é assunto de tal forma pessoal que guardo para mim.Como quer que a sua vida evolua, na crença ou na descrença,fico -lhe imensamente grato por ter connosco partilhado este tão belo e tocante texto…

    • Abraão

      Caro Antonio Fernando

      As suas palavras tocaram o meu sentimento. Obrigado.
      Mas deixe-me apenas esclarecer uma coisa. Usei a palavra ROUBOU-ME a minha mãe mas aceite-a como sendo dita por uma criança de 6 anos. Hoje jamais ousaria escrevê-la pelo simples facto de tanto eu como muitos outros que estamos sincronizados na mesma linha de pensamento e atitude, que deus não rouba nem dá.

      Um abraço

  • Antonioporto

    Esse é o jugo dos homens.
    Jesus disse: o meu jugo é suave e o meu fardo é leve.
    Abraão Loureiro ( nome de profeta) tornou-se ateu, não pela raiva ,
    como disse, mas por causa do testemunhos das pessoas
    que lhe rodeavam, incusive seu pai.
    A opressão familiar é grande nesse assunto.
    Eu não obrigo meus filhos a frequentar a igreja comigo e minha esposa,
    mas jamais deixo de ensinar a eles o que é certo ou errado.
    A pior coisa que pode acontecer a pessoas em formação na vida,
    ou em momentos de perda, é dar a elas respostas simples a coisas mais
    complexas que não tem resposta.
    Na bíblia, não se encontra a solução de todos os problemas
    da vida, nem nos livros científicos têm.
    Perder pessoas na vida é comum, quem nunca perdeu.
    A morte é o maior mistério desta vida.
    Não sei nada sobre ela.
    Apenas creio que virá algo melhor depois dela.
    Apesar de nascer emfamília católica, meus pais nunca me trataram
    da maneira que o autor disse de si mesmo.
    Hoje, minha fé cristâ é outra, e me permite questionar tudo,
    inclusive Deus.
    A vida de pessoas que crêm em Deus não é fácil,
    mas a dos ateus também não é.
    Afinal de contas, todos pasamos por dificuldades e tribulações na vida.

    • Abraão

      Caro Antonioporto

      Acho que não leu atentamente o meu texto pelo seguinte:

      1º – Não me tornei ateu por causa das pessoas que me rodeavam, isso resultaria no inverso, continuar crente.
      2º – No texto está claro que o meu pai era ateu. Ele nunca me disse que deus existia nem que não existia. Apenas me reprimiu por faltar à catequese. Eu sabia que ele não acreditava em deus por ouvir conversas dele entre amigos. Nessa idade nem me lembro de ouvir falar em ateísmo. Mas deu-me uma óptima educação para ser uma pessoa digna e respeitadora de tudo e todos incluindo a natureza.

      Num ponto estamos ambos de acordo quando diz: ”A vida de pessoas que crêm em Deus não é fácil, mas a dos ateus também não é.”

      Um abraço

  • Jeferson de Almeida

    Muito bom este texto.
    De uma forma singela, sem amargura ou raiva, o autor falou de sua experiência de infância com a religião.
    Eu gostaria muito que os religiosos também tivessem o mesmo respeito por aqueles que não comparilham de suas ilusões.

  • Anónimo

    Grande texto, tal como o Carpinteiro e a Andreia e muito provavelmente outros ateus eu revejo-me na sua experiência de vida, pois eu também tive uma educação religiosa e até frequentei um colégio católico, só que não tive a sua coragem em rejeitar as aulas de educação moral e religiosa pois na minha escola o ateísmo era ainda mais tabu que o sexo….!

    Nas inscrições escolares todos os alunos eram obrigados a colocar uma cruz onde dizia educação moral e religiosa, nem era dada como facultativa. No mês de maio éramos obrigados a ir à missa da escola todos os dias após o almoço, que apesar de me escapar e fugir para as casas de banho da escola os funcionários encontravam-me sempre…

    Andei numa longa guerra com a minha mãe para não me obrigar a ir à missa e ainda hoje não aceita muito bem o meu ateísmo.

    Apesar disso estou muito grato por ter frequentado a catequese e esse colégio pois permitiu-me fundamentar o meu antigo agnosticismo e o meu actual ateísmo.

    • Andreia_i_s

      Liio:

      “Nas inscrições escolares todos os alunos eram obrigados a colocar uma cruz onde dizia educação moral e religiosa, nem era dada como facultativa. No mês de maio éramos obrigados a ir à missa da escola todos os dias após o almoço(…)”
      A isto eu chamo verdadeiro inferno O.O.

  • Anónimo

    PS: qual é a anedota do milagre dos pães?

    • Abraão

      Tá bom, aqui vai a anedota contada por uma criança.

      Num dia em que o povo de Deus não tinha nada para comer, Jesus Cristo disse aos seus seguidores e apóstolos que iria matar a fome a todos eles.
      Para realizar esse milagre pediu que todos carregassem pedras e as levassem a ele no alto da montanha para as transformar em pão. Quanto maiores forem as pedras, maiores serão os pães, disse.

      Ao ouvir as palavras do Rei, todos se apressaram a procurar pedras e cada um tentava achar a maior possível. Mas, Judas desconfiado não acreditou e deixou-se ficar a ver os outros a apanhar as pedras e acompanhou o pessoal na subida íngreme da montanha sem nada levar. Todos subiam com enorme dificuldade, escorregando, tropeçando, suando e o Judas olhava-os e lançava-lhes um sorriso irónico como quem diz: vocês são malucos vão lá chegar totalmente desgastados e não vai acontecer nada.

      Chegados ao topo e todos na frente de Jesus ele lhes disse: Poisai as vossas pedras que as vou transformar em pão.
      Todos poisaram as pedras e ficaram com os olhos fixados no mestre.

      O mestre levantou os braços ao céu e gritou: QUE ESTAS PEDRAS SE TRANSFORMEM EM PÃO PARA QUE ESTE POVO SE ALIMENTE.

      E pronto, de repente as pedras se transformaram em pão e todos mataram a fome.

      Judas ficou deslumbrado com o que viu e sentiu-se arrependido porque também estava esfomeado e não comeu nada porque os outros não lhe deram.

      No dia seguinte nada mais havia para comer e o mestre depois de tanta súplica resolveu fazer novo milagre e mandou que lhe levassem pedras.

      Judas desta vez não se deixou enganar e então correu, correu, correu até conseguir um pedregulho enorme para ter que comer durante mais dias.
      Todos se fizeram à montanha e Judas já deitava sangue pela boca de tanto esforço mas a fome era tanta que ele não desistiu e continuou até ao cimo.

      Jesus ao vê-los chegar com todas aquelas pedras olhou para eles e disse:
      Meus filhos, podeis deitar fora essas pedras porque hoje trouxe carcaças.

  • Egovas

    Querido amigo, me emocionei lendo o seu texto.Fiquei impressionada, pois conhecendo vc como eu conheço, falar de coisas “tão suas”,externar fatos de sua vida me fizeram ver um Abraão que eu achava impossível existir;simples e aberto para partilhar com o outro, na tentativa de explicar aquilo em que vc acredita.
    Aos poucos vou lendo e conhecendo um pouco mais sobre a sua filosofia.Te admiro muito e continue escrevendo….Um abraço forte e saudades sempre

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