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  • 19 de Junho, 2010
  • Por Carlos Esperança
  • AAP

Carta a Saramago

Amigo Saramago

Recebi, desde há umas horas atrás, alguns telefonemas e mensagens de amigos meus espanhóis que te adoram. Uma amiga minha dizia que a qualidade ou virtude que mais admirou em ti, e que mais a marcou, foi a lucidez. Concordo absolutamente com ela. E disse-lhe que tu morreste, segundo me informaram, em plena lucidez e consciência, sem qualquer medo ou surpresa em relação à morte. Foi assim e não podia ser de outra maneira, porque tu tinhas da vida e da morte o conceito antropológico, filosófico e de liberdade com que vivem e morrem os homens que não são homens vulgares.

E tu não foste um homem vulgar. Por isso me enojam as pessoas vulgares que te odeiam, como odeiam tudo o que está para além da fronteira onde a sua mente não consegue chegar. Do ponto de vista literário, tu fizeste o que, ate aí, ninguém fez, talvez depois do Padre António Vieira. Revolucionaste a literatura, quebraste a cristalização da literatura clássica como se tivesses feito explodir um fogo de artifício ao fim da página trinta ou quarenta do teu “Levantado do chão”. Criaste uma profunda influência na maior parte dos escritores portugueses actuais. E não só portugueses. Eu não sou nenhum especialista em literatura nem pretendo armar-me em tal, mas como tu pensavas e bem, a literatura é uma espécie de “Casa de Deus” onde todos cabem e têm o seu lugar. Claro que “Casa de Deus”, aqui, a terás entendido como casa da arte. Deus nada tem a ver contigo nem comigo.

Consta-se que nunca disseste mal ou menosprezaste outro escritor. Por isso, creio que não desprezarás a minha opinião. Passaram perante os meus olhos, nas minhas leituras, além de ti, dezenas, se não centenas de escritores, desde a minha juventude, desde aqueles dezoito anos, em que eu devorava Dostoievski, debaixo dos lençóis, à luz de um foco olho-de-boi para que minha mãe não visse. Sinto que tenho algum direito a falar da tua obra. E a tua obra foi das mais belas que li, das que mais me ensinaram e perturbaram, no construtivo sentido que a perturbação pode trazer, das mais difíceis de construir, das mais penosas a levantar do chão.

E fizeste-o com toda a humildade e sabedoria das grandes mentes que têm a noção da sua pequenez humana. Basta ver que por todos os teus livros vagabundeia um narrador que não és tu nem uma personagem inventada, um fio condutor que não é obra estéril de ficção, mas a voz de um povo, a voz do povo, a voz da humanidade. Quem fala nas entrelinhas de toda a tua obra é a humanidade. Magnífica mensagem, a da humanidade silenciada. Comoves-me, meu amigo, porque entraste profundamente no coração do meu pensamento.

Referes a tua infância, tão bem descrita no discurso de Estocolmo, como a única fase da tua vida, digna de uma autobiografia. A tua pepita de ouro, ali burilada debaixo da figueira com o teu avô. O resto da tua existência, dá-lo tu a entender, não passa de cascalho na ingrata tarefa garimpeira da vida. Entendo-te tão bem, Saramago. Também eu tive uma infância a contar as estrelas e a percorrer com os olhos a Estrada de Santiago. Também eu tive histórias de encantar e aterrar. Também eu me vesti de sol e me despi de luar. Também eu tive uma tigela de café com sopas de pão, no mais belo pequeno almoço da minha vida.

Mas a tua escrita, profunda e admirável escrita, que vai desde a esperança ao descrédito na humanidade, é a tua humanidade. A tua terceira qualidade que em nós penetrou de forma convincente. Irmãs gémeas ou trigémeas inseparáveis. A escrita do pensador, a lucidez do escritor, a humanidade do ser humano, a humanidade do criador de utopias, que consegue ter a coragem de chegar ao fim da vida sorrindo das suas próprias utopias. Morres com um sorriso nos lábios, não pela paz do mundo pela qual lutaste, mas com a paz de quem tudo fez para que assim não fosse, depois de teres dito ou pensado que, no fim de contas, das tuas contas, o homem é uma merda, um vírus que apareceu na cadeia evolutiva, metido à força no gráfico de Hillis, contaminando, irremediavelmente, não só toda a humanidade como toda a ordem natural dos seres vivos. Creio que tens razão, embora mantenha ainda a esperança ou a utopia de a não teres.

Adão Cruz

7 thoughts on “Carta a Saramago”
  • Jorgepiresf

    Por que é que escreve a Saramago? Morreu. Acabou.

  • Jorgepiresf

    Segundo a lógica ateísta, obviamente.

  • Libre

    Agora vem o “Jornal” do Vaticano apelidar este grande escritor e intelectual de Extremista e Populista.
    http://livros.sapo.pt/noticias/artigo/27926.html

    Propaganda pura? Ou será que a ICAR, numa acção de pesar, decidiu emprestar ao José Saramago dois dos adjectivos que melhor a caracterizam? Mesmo que de “boa vontade” são inaceitáveis.

  • guest

    A obra que enriquece não morre.

  • Catellius

    Morreu ontem, em Lanzarote, um dos últimos remanescentes do stalinismo em pleno século XXI, ao lado de Oscar Niemeyer, Ariano Suassuna, Chico Buarque, Luís Fernando Verissimo. Portugal e o Ocidente todo está chorando a morte do escritor que sempre foi inimigo ferrenho de Portugal e do Ocidente. No Brasil, os jornais estão dedicando suplementos a quem sempre defendeu as atrocidades da URSS e de Cuba e ousou defender o atentado às torres gêmeas. O Ocidente todo foi acometido de amnésia. Com sua morte, o cúmplice de assassinos virou herói. (Janer Cristaldo)

  • Catellius

    A idéia de uma Europa Unida vinha sendo gestada desde 1951, com o Tratado de Paris, teve continuidade em 1957 com os Tratados de Roma e tomou corpo em 92, com o Tratado de Maastricht. Stalinista e anti-europeu até a medula, insensível à vocação histórica de seu país, em 1986 Saramago escreve Jangada de Pedra, um panfleto irracional e gratuito contra o Velho Continente. Enquanto os portugueses aspiravam desde há muito a integração com o universo transpirenaico, o escritor marxista, não contente em separar Portugal da Europa, pretende levar a Espanha nessa viagem insana.

  • Catellius

    Morreu ontem, em Lanzarote, um dos últimos remanescentes do stalinismo em pleno século XXI, ao lado de Oscar Niemeyer, Ariano Suassuna, Chico Buarque, Luís Fernando Verissimo. Portugal e o Ocidente todo está chorando a morte do escritor que sempre foi inimigo ferrenho de Portugal e do Ocidente. No Brasil, os jornais estão dedicando suplementos a quem sempre defendeu as atrocidades da URSS e de Cuba e ousou defender o atentado às torres gêmeas. O Ocidente todo foi acometido de amnésia. Com sua morte, o cúmplice de assassinos virou herói.

    Não vou comentar a literatura de José Saramago. Exceção feita de A Jangada de Pedra, não a li. Mas sobre a jangada posso falar.

    A idéia de uma Europa Unida vinha sendo gestada desde 1951, com o Tratado de Paris, teve continuidade em 1957 com os Tratados de Roma e tomou corpo em 92, com o Tratado de Maastricht. Stalinista e anti-europeu até a medula, insensível à vocação histórica de seu país, em 1986 Saramago escreve Jangada de Pedra, um panfleto irracional e gratuito contra o Velho Continente. Enquanto os portugueses aspiravam desde há muito a integração com o universo transpirenaico, o escritor marxista, não contente em separar Portugal da Europa, pretende levar a Espanha nessa viagem insana.

    A jangada em questão é a península ibérica. Lá pelas tantas, as terras luso-hispânicas começam a fender-se, separam-se gradualmente do continente e saem a navegar pelo mar oceano, rumo ao oeste. Para logo mudar de rumo. “A uns setenta e cinco quilômetros de distância do extremo oriental da ilha de Santa Maria, sem que nada o fizesse anunciar, sem que se sentisse o mais ligeiro abalo, a península começou a navegar em direção ao norte”.

    Se seus habitantes temem encalhar nas planuras gélidas entre a Groenlândia e Islândia, a península tem outros planos. Na altura da mais setentrional ilha dos Açores, o Corvo, vira em linha reta, retomando sua trajetória para o ocidente, numa direção paralela à de sua primeira rota, prosseguindo-a alguns graus acima. A nova rota aponta para Nova York e o presidente americano apressa-se a dizer que a península seria bem-vinda. O mesmo não pensa o Canadá. Enfim, todas estas manifestações prévias de aceitação ou rechaço se revelam inúteis, já que a imensa ilha flutuante, em dado momento, começa a cair rumo ao sul. Para atracar finalmente em seu destino histórico, o mar caribenho e o socialismo cubano.

    Em entrevista durante uma de suas visitas ao Brasil, Saramago falava em vocação atlântica da península ibérica. É grosso sofisma. Para começar, a península já está no Atlântico. Continuando, Saramago a desloca para o Caribe. Sua metáfora pretende mostrar uma vocação cubana, socialista, que Portugal nunca alimentou. A dita Revolução dos Cravos, liderada por Otelo Saraiva de Carvalho, morreu na casca. Portugal, após o salazarismo, tornou-se um próspero país capitalista, perfeitamente integrado à economia – também capitalista – da Europa. Isto o velho comunista não consegue admitir.

    Nos dias em que Portugal e Espanha faziam os preparativos para seu enlace definitivo – e muito bem sucedido, como hoje pode ver-se – com a Europa, o escritor português, fazendo eco ao ancestral ódio marxista à Europa, separa estes dois países de seu futuro. E os empurra um século para trás, rumo ao socialismo cubano. Nunca uma obra literária, sob o inocente disfarce de um divertissement, foi tão anti-ocidental, anti-européia, anti-lusitana e anti-espanhola. Ao autor deste panfleto imediatamente desmentido pelos fatos, a Kungliga Akademie de Estocolmo conferiu o galardão máximo das letras ocidentais. Vista destes dias em que portugueses, espanhóis e demais europeus se regozijam com o euro, esta obra de Saramago revela-se um merencório equívoco.

    Uma vez conquistado o Nobel, o detentor da láurea permitiu-se o luxo de afirmar qualquer impropriedade. Comentando o conflito entre Oriente e Ocidente por ocasião do atentado às torres do World Trade Center, em artigo para a Folha de S. Paulo, Saramago toma o partido dos terroristas. Para defendê-los, empunha antigas atrocidades de uma Europa passada, hindus atados à boca de canhões. “No primeiro plano da fotografia um oficial britânico ergue a espada e vai dar ordem de fogo. Não dispomos de imagens do efeito dos disparos, mas até a mais obtusa das imaginações poderá ver cabeças e troncos dispersos pelo campo de tiro, restos sanguinolentos, vísceras, membros amputados. Os homens eram rebeldes”.

    O prêmio Nobel evoca também Angola, onde algures “dois soldados portugueses levantam pelos braços um negro que talvez não esteja morto, outro soldado empunha um machete e prepara-se para lhe separar a cabeça do corpo. Esta é a primeira fotografia. Na segunda, a cabeça já foi cortada, está espetada num pau, e os soldados riem. O negro era um guerrilheiro”. Isto é: se ingleses explodem hindus, se portugueses decapitam angolanos, é perfeitamente permissível que um saudita, homiziado no Afeganistão e imbuído da missão de vingador universal, detone dois prédios em Nova York matando não só malvados civis americanos, mas também cidadãos de 62 países do planetinha.

    Como um jornalista novato que vê a História como um lago raso, sem antes nem depois, Saramago mistura geografia e fatos de épocas passadas para absolver o terrorismo presente. Se algo se perdeu definitivamente neste atentado, parece ter sido a boa lógica. Numa tentativa de explicar o terror, o autor português joga a culpa no “fator Deus”. Tudo, menos responsabilizar fanáticos muçulmanos.

    Com sua autoridade de Nobel, escreve: “Disse Nietzsche que tudo seria permitido se Deus não existisse…”. Isto é, atribuiu ao pensador alemão frase que, por equívoco, é normalmente atribuída a Dostoievski, por leitores de orelhas de livros. Em verdade, tal frase, assim como é proposta, não se encontra em momento algum do escritor russo. É Sartre que a atribui a Dostoievski, tentando interpretar seu pensamento. Que mais não fosse, tal aforismo só poderia nascer no cérebro de um católico e de católico Nietzsche nada tinha. Ao fazer tal afirmação, Saramago demonstra que, para um laureado pela Kungliga Akademie, qualquer bobagem será sempre bem paga.

    Não contente em defender o terror que destruiu as torres de Nova York, Saramago atacou Israel e sua reação aos atentados suicidas palestinos. Por ocasião do recrudescimento dos atentados cometidos por homens-bomba, comparou as ações do Exército israelense nos territórios palestinos ao sofrimento dos judeus no campo de concentração de Auschwitz na Segunda Guerra Mundial. “É a mesma coisa, ainda que levemos em conta as diferenças de espaço e tempo”, afirmou em Ramallah (Cisjordânia), onde se encontrou com o líder palestino Yasser Arafat. “É preciso tocar todos os sinos do mundo para dizer que o que está ocorrendo na Palestina é um crime que podemos impedir”, disse. Para os civis israelenses que morrem aleatoriamente, nenhuma palavra de conforto.

    Este é o homem que o Ocidente hoje homenageia.

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