Loading

Treta da semana: com esses meninos não brinco.

Recebi por email a notícia que o Conselho Pontífice para a Cultura vai encetar um “diálogo aberto” entre o Vaticano e os ateus, «criando uma fundação para focar as relações com ateus e agnósticos» (1). À partida a ideia é boa. Quando duas partes discordam faz falta uma conversa franca onde cada uma possa apontar as premissas que rejeita, justificar as suas de forma que a outra aceite e esteja disposta a mudar a sua posição se a justificação contrária for melhor.

Mas o Vaticano tem uma ideia diferente de “diálogo aberto”. Mais habituados à missa que ao debate, querem deixar a conclusão assente logo de início. A iniciativa responde ao desafio do Papa para que a Igreja Católica venha «renovar o diálogo com homens e mulheres que não acreditam mas que querem aproximar-se de Deus». Parece-me que será uma amostra pequena e tendenciosa do universo de ateus e agnósticos. Além disso, o objectivo não é determinar quem tem razão ou sequer encontrar pontos consensuais. É «ajudar as pessoas a sair de uma concepção pobre da crença e promover a compreensão que a teologia tem dignidade científica». Começar por dizer “diálogo aberto” e chegar a isto faz-me lembrar as velhinhas com a revista Despertai debaixo do braço que começam por perguntar “Jovem, gosta de ler?”. O que se segue está para o gosto pela leitura como esta iniciativa está para o diálogo aberto.

Para reforçar que isto é só para quem quer ouvir o sermão e não para quem quer debater, deixam claro que só estão interessados no «ateísmo ou agnosticismo nobre, não no polémico», e que não querem debater com «ateus como [Piergiorgio] Odifreddi na Itália, [Michel] Onfray na França, [Christopher] Hitchens e [Richard] Dawkins». Querem um diálogo aberto mas sem polémica.

Talvez seja um problema de generation gap. O topo da hierarquia da Igreja Católica tem apenas homens do tempo em que se levava o catolicismo tão a sério que ninguém apontava estes disparates. Mas hoje, por muito que lhes custe a admitir, as coisas mudaram. Se organizam um “diálogo aberto” só com fantoches, «para criar uma rede de pessoas agnósticas ou ateístas que aceitem o diálogo e entrar como membros na fundação e, portanto, no nosso dicastério», vão ser é gozados.

Se querem dialogar com os ateus então organizem os debates com aqueles que os ateus consideram resumir melhor a sua posição. Se só escolherem os “ateus nobres” que querem fazer parte da Igreja Católica e aproximar-se desse deus o diálogo vai ser notável apenas pelo caricato da iniciativa.

1- Catholic News Agency, Atheists invited to join Vatican Council for outreach initiative
2- The Independent, Vatican reaches out to atheists – but not you, Richard Dawkins

Também no Que Treta!.

7 thoughts on “Treta da semana: com esses meninos não brinco.”
  • antoniofernando

    A hierarquia da Igreja Católica tem do debate e do diálogo uma perspectiva eufemística e eivada de reserva mental do tipo ” ecumenismo ? sim, mas se aderirem à nossa dogmática “, ” diálogo entre igrejas cristãs ? sim, mas só se reconhecerem a católica como a única verdadeira de Cristo “, ” Diálogo inter-cultural ? Sim, mas só se reconhecerem que a mundividência ética e cultural da ICAR é a certa “. Quanto ao diálogo com os ateus, sim, mas só se se converterem à crença teísta e se for àquela que a Igreja Católica sustenta.Mas, para ser justo,também não vejo pessoas como Richard Dawkins estarem interessadas em qualquer diálogo directo com crentes. Já alguma vez alguém assistiu a um debate público entre Dawkins e crentes ? Não, sabem porquê ? Porque Dawkins nunca o aceitou.Prefere os solilóquios, do estilo escever livros e monólogos no You Tube. Por ora, ele ainda deve andar muito atarefado a tentar prender o papa.Mas se não andasse nessa demanda, gosta é de falar sozinho,tão importante que se julga…

  • ricardodabo

    “(…) isto faz-me lembrar as velhinhas com a revista Despertai debaixo do braço que começam por perguntar 'Jovem, gosta de ler?'”

    Rsrsrsrsrsrs. Já passei por essa experiência inúmeras vezes. Se eu não tivesse dinheiro para comprar a revistinha, podia pagar com sabonete, pasta de dentes ou qualquer coisa do gênero. Ainda bem que me mudei para um apartamento.

  • jovem1983

    Caríssimo antoniofernando:

    Não está a ser justo em relação às intervenções de Richard Dawkins no domínio público, pois este participou em diversos debates pertinentes, sobretudo na Grã-Bretanha.

    Por exemplo, está disponível no youtube a sua participação no programa televisivo britânico 'Big Debate' (com formato similar ao nosso 'Prós e Contras') onde, juntamente com indivíduos de diferentes quadrantes religiosos, se debateu seriamente a questão do impacto das escolas confessionais na actual sociedade britânica.

    Se assistir ao debate na integra não só comprovará a sua pertinência como verificará que existem preconceitos infundados em relação a Dawkins, alimentados que por desconhecimento, quer pela reacção imediata à sua linha de pensamento antagónica perante todas as formas de crença, sobretudo nas criticas em relação à apropriação da ciência por parte da religião.

    Parte 1 – http://www.youtube.com/watch?v=F-S7M0KZTsU
    Parte 2 – http://www.youtube.com/watch?v=ZllHfSLsRZg&feat
    Parte 3 – http://www.youtube.com/watch?v=yzjnL4HVoMU&feat
    Parte 4 – http://www.youtube.com/watch?v=HtUd7-tha_w&feat
    Parte 5 – http://www.youtube.com/watch?v=1MPS_GLoNDk&feat
    Parte 6 – http://www.youtube.com/watch?v=ndXYip6pdco&feat

  • jovem1983

    Perante as directivas anunciadas nesses artigos, o que foi anunciado são os princípios de um monólogo. Excluir as pessoas que estão habilitadas para representar a relação entre a descrença e a Ciência fragiliza o que resta do pressuposto diálogo desta iniciativa, influenciando a oposição no suposto debate.

    A justificar estas iniciativas, como qualquer iniciativa de uma instituição, estão os desenvolvimentos da sua acção e os seus impactos.
    A descrença continua a aumentar em proporção com o aumento da educação, e pretender excluir pessoas qualificadas para representar a outra facção pode só representar uma de duas coisas:

    1) a escolha de indivíduos desqualificados e pouco preparados para intervir e representar devidamente a outra parte, para obter vantagem no mesmo;
    2) uma acção de fachada, com representantes contratados, de forma a legitimar a religião perante os descrentes e crentes a diversos níveis de cordialidade intelectual.

    Creio que será uma mistura de ambos, uma dimensão que só será desvendada consoante os futuros desenvolvimentos.

    Se a escolha for promovida em prol do diálogo habilitado de parte a parte certamente estes dois pontos deixam de ser equacionados, mas voltamos à questão de partida: a proposta de diálogo surgiu claramente enviesada.

  • antoniofernando

    Jovem 1983:

    Há alguns anos, li o Richard Dawkins afirmar que não se dava ao trabalho de discutir directamente com crentes porque, cito de memória, não os queria promover. Recordo-me dessa frase dele, embora não consiga,de momento,localizá-la. Mas apraz-me registar que tenha mudado de posição.Dele li o ” Gene Egoísta” que considero uma obra meritória, mas com aspectos contraditórios e inconsistentes. Seria interessante debatermos aqui um texto específico sobre essa tese do Dawkins. Dele, retiro duas frases. Esta.”O mundo e o universo são lugares extremamente belos, e quanto mais os compreendemos mais belos eles parecem”. Há, de facto, no Macro-Cosmos uma dimensão muito bela. Uns dizem simplesmente que é muito bela. E essa apreciação deriva da natureza do Sentimento, única forma de creditar a dimensão da Beleza que sentimos. Outros dizem que o Macro-Cosmos é divinamente muito belo. Essa aferição também é feita pela natureza do sentir.Outra frase, que dele retive, foi esta:
    “Para não acreditar na evolução você deve ser ignorante, estúpido ou insano”. Na evolução não se acredita. Ou é ou não é.Temos elementos científicos para concluir que a Humanidade adveio do processo evolutivo que se desencadeou após o Big Bang. Mas isso não retira que a eclosão do início do Universo não possa ter sido determinada por um Criador.Se o Dawkins, com essa frase, está a postular que a evolução ” demonstra” a inexistência de Deus e que todos que acreditem na dimensão divina são ” ignorantes, estúpidos ou insanos”, está ,desse modo, a categorizar homens como Pitágoras, Descartes, Pascal, Galileu e o próprio Einstein…

  • jovem1983

    Caríssimo antoniofernando:

    Tenho vaga lembrança do emprego dessa frase e do contexto em que foi aplicada. Faltando contudo a devida verificação, creio que Dawkins referia-se especificamente ao debate com criacionistas, sobretudo da corrente evangélica norte-americana.

    De Dawkins devemos distinguir dois tipos de intervenção/produção; o trabalho académico, entre a investigação e leccionação em reputadas universidades inglesas, com trabalhos pioneiros e premiados; de uma produção intervencionista, essencialmente fundamentada na primeira dimensão, para um público heterogéneo, de forma a cumprir os objectivos da sua fundação, em prol da razão e da ciência.
    É precisamente nestas dimensões que devemos entender das suas frases que anteriormente citou, sobre a beleza do mundo e do universo, essencialmente assentes e informadas pelo conhecimento concreto, que por sua vez seria a base de considerações sentimentais ou apreciações de beleza.

    Sobre a suposta origem primordial, Dawkins toma a atitude mais honesta e acertada, fundada no conhecimento humano até à data produzido e compilado, reconhece simplesmente que não sabe; mas quanto à evolução das espécies simplesmente reproduz com toda a propriedade o “ABC” científico, apresentando provas que várias cientistas e comunidades científicas provaram, providas de vários elementos de distintos ramos do saber, experiências essas que todos pudemos observar, replicar e verificar novamente, e que corroboram a validade factual daquilo que em tempos foi uma teoria controversa. Infelizmente existem correntes de pensamento religioso que procuram ainda invalidar essas evidências, sobretudo nos Estados do Sul dos EUA.

    Sempre que ouvi Dawkins falar de outros cientistas nunca assisti a qualquer insinuação ofensiva, pelo contrário, sempre centrou a sua apreciação no contributo que esses deram para o desenvolvimento do conhecimento e da qualidade de vida humanidade.

  • Baal

    Realmente, só discutir com quem “quer aproximar-se de Deus” é o mesmo que dizer que só querem discutir com quem se queira converter. Só querer discutir com quem garanta, logo à partida não tocar em assuntos polémicos não é discutir, é juntar um coro de apoiantes.

    Isto não é diálogo nenhum, quanto muito serão aulas de preparação para o baptismo…

You must be logged in to post a comment.