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Viagem de autocarro (Crónica)

Há tempos entrei num autocarro, tendo-me sentado no banco ao lado de um padre católico, do outro lado da coxia.

Olhei aquele rosto triste de um homem de 70 anos, com o colar romano a apertar-lhe o pescoço como o cincho onde se espremia o queijo para extrair o soro. Há muito que não via tal adereço na via pública. O uso deve ter-se mantido com a resignada dedicação ao múnus.
Não pude deixar de apreciar aquele homem só, a caminho de alguma casa da Igreja ou de um ritual qualquer que já perdeu o sentido, ou nunca o terá tido, e de que a sociedade se desinteressou.

Que sofrimento ajudou a desenhar aquelas rugas? Quantos desejos reprimidos e anos perdidos com o pescoço apertado por um colar e a lapela ornada com uma cruz?

Terá amado? Teve sonhos? Realizou-os? Próximo de mim estava um cidadão solitário, com olhos vagos e o ar de quem cumpriu a vida sem a viver.
Seria preciso ser cínico ou mau para não sentir compaixão por quem dedicou o tempo e a juventude a uma quimera, perdeu a vida perseguindo o sonho do Paraíso e se aproxima do fim da estrada sem saber porque a percorreu.

Somos ambos da mesma massa. Com poucos anos de distância ensinaram-nos a ajoelhar e a rezar. Eu levantei-me, ele ficou de joelhos. Eu vivi a vida, amei e passei incógnito na estúrdia, sem um colar que pressupõe a trela e sem a cruz a que não terão faltado espinhos. Ele imolou a vida por um mito e esqueceu-se de si próprio por coisa nenhuma.

Um homem nunca anda só, é certo, traz consigo as memórias que guarda e os sonhos que acalenta; mas, com o passar dos anos, sobram memórias e mingua o tempo para sonhar.

É injusto que aquele homem que sofreu o que eu não sofri e trocou a vida que recordará por outra que lhe inventaram, tenha os mesmos sete palmos de terra à espera, sem um filho que o recorde, sem alguém que o chore. Por um deus que inventaram para lhe tramar a vida.

Suportou jejuns, abstinências e mortificações, e passou os dias guardando horas para a leitura do breviário. Quanto terá sofrido na convicção de que podia atenuar o martírio do seu Deus?

(Publicada no Jornal do Fundão de 08-04-2010)

10 thoughts on “Viagem de autocarro (Crónica)”
  • Carpinteiro

    São textos como este que me fazem ser um leitor assíduo do Diário Ateísta. Devia ser distribuido na porta da igreja à saída da missa dominical. Alguns crentes entenderiam porque é que “uns se levantam e outros continuam a esfolar os joelhos”.
    Ser ateu é isso mesmo, ser capaz de se levantar quando a maioria nos manda ajoelhar.
    Parabéns pelo texto.

  • Baal

    Pois.

    Mas tudo é um bocado relativo.

    Será que o homem não gosta da vida que tem ?

    Estou a lembrar-me dos milhares de homens “felizes” por terem mulheres e família que acabam por dar um tiro nos cornos ou por mandar a cara metade para o hospital passando a engrossar a lista da violência doméstica.

    Eu, quando era jovem, também pensava ser um gtande privilegiado por ter companheira etc.

    Até que aprendi o que é a vida e que tudo se paga, caro, muito caro. Mesmo a aparência de felicidade.

    Claro que é bom ter onde descarregar as necessidades fisiológicas. Embora haja um preço.

    As putas pagam-se de uma maneira, as outras de outra. Vou só citar um caso, para n estar a falar de mim.

    Um conhecido meu tinha um casamento do costume – fudido – discussões da treta a toda a hora, por tudo e por nada, agressividades e insultos. Uma vida de inferno.

    De repente fez-se a luz – na forma de uma brasileira escultural que levou o bicho a mandar ás malvas a mal-criada e agressiva mulher. Doce, bela, comprensiva etc etc etc. Um sonho.

    O indivíduo, relativamente bem na vida sustentou-a e apaparicou-a, apaixonado e orgulhoso ,odo ternuras e salamaleques.

    Entretanto, passados uns três anos de viverem juntos o homem teve de ir tratar de uns assuntos a outra cidade. beijinhos filha, não demoro, pensa em mim etc etc etc.

    Quando voltou, a brasileira tinha-se pirado com o dinheiro, a mobília, a roupa dele, o esquentador, tudo tinha sido vendido ao kilo. A casa estava vazia ao ponto de ter os canos à mostra.

    O homem ficou a bater mal. Envelhecido, depressivo, a sua vida converteu-se num inferno de recordações humilhantes.

    Como este há milhões.

    Será que são mais infelizes que o senhor padre ? Duvido.

  • Baal

    Para mim é tudo igual. O padre é solitário. Ok. Quantos milhões de sociáveis não são destruídos pelas suas alegres “companhias”? Não podemos saber só por ver alguém no autocarro.

  • Julio

    Nada de confusões! Padres são agentes perigosos de uma das maiores seitas do planeta, com um passado sangrento quando tinha poder político e acesso as armas letais do Estado!
    Não ajude a dita SEITA a prosperar com o seu dinheiro.

  • Carpinteiro

    Ora Baal, o que está em causa não são os padres, as brasileiras ou os espanhois. Isso são relações humanas, e do humano se trata . O texto é uma delícia; o resto é poesia;)

  • facebook-100000537755041

    GOSTEI DA CRÓNICA. Os comentários? Nem por isso!

  • Carlos Esperança

    Carpinteiro:

    Obrigado pelos seus comentários. Tenho outros leitores no Jornal do Fundão que apreciam os textos que aí escrevo. Aqui, no Diário Ateísta, foi o único. Basta 1, no entanto, para me dedicar à escrita literária.

  • Baal

    Também o “Assim foi temperado o aço” o “Triunfo da vontade” o “Nascimento de uma nação” o “Couraçado Potemkine” etc etc são verdadeiras delícias literárias ou cinematográficas.

    Entretanto também são peças de propaganda das respectivas ideologias que partem de generalizações para chegar a conclusões incomprovadas. Posso apreciar o texto mas fazer notar que não sou parvo.

    A “viagem de autocarro” podia ser usada exactamente ao contrário, aí sendo um padre a lucubrar acerca da garantida infelicidade de um gajo, que ele não conhece de lado nenhum, mas que, por acaso, leva um emblema ateu na lapela.

  • jsousa

    em absoluto acordo com “facebook-100000537755041”

  • AST

    Estas respostas do Baal merecem cotação máxima.

    Surpreendeste-me com o teu desempenho nestes comentários.
    Porra! Tu quando queres, mesmo mantendo a tua linha de pensamento, arrasas os hipócritas (sejam eles crentes ou ateus).
    Aqui, enxovalhaste a hipocrisia do autor. A hipocrisia, a vaidade, a imodéstia e a auto-promoção.
    Além de mais, o semblante arruinado do autor, não anda muito para além daquele do padreco capado compulsivamente, pedófilo em potência. O semblante do autor também mete pena. E, pelo discurso, também ele carrega a uma elevada doze de testosterona aprisionada que, como se sabe, regula muitos dos comportamentos humanos. No caso do autor, parece que já resultou numa hipertrofia prostática que o traz aperreado.

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