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Como sei que não tenho asas.

Ao longo de uns anos de blog várias vezes me têm apontado que a falta de evidências não prova que uma hipótese seja falsa. Por isso, dizem-me, não posso rejeitar a existência de deuses ou de uma alma imortal porque não posso provar que não existem. Em rigor, é verdade que não posso saber se a proposição P é verdadeira ou falsa se não souber nada acerca de P. Mas isto é só uma parte da história. O problema deste argumento é olharem para uma parte de cada vez quando o conhecimento está no encaixe das peças.

Para começar, não posso considerar uma hipótese isolada senão não há nada com que a comparar. Quando me pergunto, por exemplo, se terei asas, devo conceber dois modelos. Num imagino-me com asas a sair das costas. Noutro imagino que tenho as costas sem membros destes. E assim tenho duas hipóteses alternativas, pois só um dos modelos pode estar correcto. Agora parto do zero, sem evidências nem a favor nem contra qualquer das duas, e penso no que cada modelo prevê para reunir dados e testar as hipóteses.

Se o modelo das asas for o correcto espero sentí-las bater nas ombreiras das portas, conseguir vê-las, sentir o seu peso nas costas e assim por diante. Se for o outro não devo notar nada disto. Mas se não vejo asas, nem as sinto e não aparecem nas fotografias posso reformular o primeiro modelo. Tenho asas, mas são invisíveis, passam através dos objectos sólidos e não têm peso. Volto assim ao estado inicial, sem evidências nem a favor nem contra. E continuo os testes, e vou alterando o modelo sempre que as previsões falham. As asas também são invisíveis aos infravermelhos, nunca largam penas, não fazem barulho, são hipoalergénicas, não servem para voar. E sempre que reformulo o modelo volto à situação inicial. Nem evidências a favor, nem evidências contra.

Mas se olho para o percurso vejo uma clara diferença entre os dois modelos. O modelo de mim sem asas acertou sempre em todas as previsões, desde o início. O outro tem cada vez mais remendos porque está sempre a falhar, e cada vez o que prevê é mais parecido com o que prevê o modelo contrário. Que não vou ver asas, nem as vou sentir nem vou conseguir voar. Antes de chegar aqui já qualquer pessoa razoável disse porra, não tenho asas e pronto. A falta de evidência que se lixe. Porque se bem que se possa sempre alterar o modelo das asas para fugir às evidências contrárias, este processo em si é evidência forte que o modelo não presta.

Os modelos iniciais das almas e dos deuses eram modelos a sério. Diziam-nos coisas. Tinham possessão demoníaca, fantasmas, diluvios, doenças para castigar os infiéis e trinta por uma linha. Mas foram-se desvanecendo como as minhas asas e, hoje, não adiantam de nada. É o deus que age sem intervir imanente na indeterminação da contingência que torna necessária pela constante criação, mas do qual não há vestígios. É a alma imortal que, de tão transcendente que é, até fica bêbada, perde a memória com um AVC e muda de personalidade com a esclerose múltipla.

É claro que não há evidências contra estes modelos, pois sempre que se encontra algo que os contradiga metem-lhes mais um remendo. Ainda assim, e precisamente por isso, não valem a farinha de uma hóstia.

Adaptado deste post no Que Treta!

3 thoughts on “Como sei que não tenho asas.”
  • anonimo

    Não se preocupe com a questão de “saber se tem asas”. Quando atingir a idade mental de uns 5 anos perceberá essa questão, facilmente!

  • Baal

    E curiosamente o Kripphal está a ser irónico. São vocês, os “adultos” crentes que acreditam em seres com asas, etéreos, invísíveis, imateriais. Em Anjos, demónios, alminhas que esvoaçam depois da morte, deuses tripartidos, falar com os mortos, etc etc.

    Realmente é mesmo por aí que podes pegar ó grande adulto que acredita em coisas que por acaso são iguaizinhas a contos de fadas….

  • Manuel Freire

    Caro Krippahl,
    Só gostaria de acrescentar uns pequenos pormenores.
    — Asas são braços. Ou se tem uma coisa ou outra. São um produto da adaptação de milénios.
    — Se um homem, digamos de 70 quilos, tivesse asas, elas teriam para aí o tamanho das de um Airbus A-320, ou mais. E com seriam os músculos que movimentariam essas asas? E o sistema cárdio-vascular?
    Um abraço,
    Atenciosamente,
    Manuel Freire

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