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Mais equívocos

Ou mais do mesmo. O Alfredo Dinis continua a insistir que «O maior drama do ateísmo [é] estar estruturalmente impedido de […] erradicar a religião» e que as críticas do ateísmo «não beliscam a religião»(1). Se o maior drama é isso estou bem, que o meu ateísmo serve-me para eu viver sem religião. Se há quem acredite em astrologia, Allah ou aparições em Fátima tenho pena. Gostaria que conseguissem livrar-se desses disparates. Mas antes eles que eu. Quando leio esta afirmação do Alfredo sinto como se me dissesse que o maior drama de não fumar é não conseguir que todos os outros deixem de fumar. O objectivo não é bem esse…

E não beliscar “a religião” não tira valor ao ateísmo. Nenhuma religião se belisca com as críticas das outras. São muito resistentes ao diálogo. Além disso a religião, no singular, não existe. Existem religiões. Muitas. Milhentas crendices, rituais, dogmas, hierarquias e superstições da mais variada espécie, cada uma das quais defendida como “A Religião®” pelos seus praticantes. Quando dou exemplos dessa diversidade, o Alfredo diz que critico caricaturas. Como o padre Gabrielle Amorth, exorcista-mor do Vaticano, segundo o qual o filme “O Exorcista” é «substancialmente exacto»(2), os exorcisados cospem pregos e vidros, e Hitler e Estaline estavam possuídos pelo diabo*. Julga este padre que a maior tragédia do século XX podia ter sido evitada com um par de exorcismos. Talvez o Alfredo não chegue a chamar caricatura a isto. Mas se fosse outra religião suspeito que não hesitaria.

E é por isto que o ateísmo não belisca nenhuma religião. Porque cada religioso acha, à partida e sem discussão, que a sua religião é que é a verdadeira e tudo o resto são imitações inferiores. Chamam-lhe fé. Dizem que a fé é a confiança que têm em deuses mas, em rigor, estão enganados. É apenas a confiança exagerada que têm nas suas próprias crenças. O que me traz ao “quarto equívoco” que o Alfredo aponta. Alegadamente, o ateu pensa que «Só os ateus têm a possibilidade de pensar livremente sem constrangimentos de espécie alguma».

Eu não. Pelo contrário. Julgo que os meus interlocutores nestas conversas são capazes de um pensamento tão livre quanto quiserem. Senão nem discutia isto, que não me interessa tentar o impossível. Também não ensino solfejo a caracóis nem dou aulas de biologia ao Jónatas Machado. E concordo com o Alfredo que o nosso pensamento está sempre sob pressões culturais. É precisamente por isso que devemos avaliá-lo tentando sair dessa perspectiva.

Eu confio no meu ateísmo porque assenta em premissas que eu consideraria igualmente válidas se tivesse nascido numa família muçulmana em Kabul, entre hindus em Varanasi ou budistas em Lhasa. Sou ateu porque não me quero submeter a deuses e porque não encontro evidência objectiva de haver algum. E isto vale aqui e vale do outro lado do mundo. Em contraste, o Alfredo várias vezes justificou a sua fé pela tradição cristã, prendendo-se precisamente àquelas restrições culturais que nos limitam o pensamento se não tentarmos ver mais além. Não por ser incapaz de o fazer. Ao contrário do que o Alfredo sugere, eu tenho confiança que, se ele quisesse, poderia pensar no problema do ateísmo e das religiões de uma forma menos constrangida pela sua cultura e formação. Mas talvez seja por isso que tem relutância em fazê-lo, reconhecendo que se tivéssemos nascido noutra parte do mundo o meu ateísmo seria o mesmo mas a religião dele seria muito diferente.

Tentando contrariar a ideia da fé como uma prisão intelectual, o Alfredo faz notar que a sua religião tem mudado ao longo do tempo. «A compreensão da doutrina e dos dogmas do cristianismo tem sido reformulada de acordo com a evolução da língua e da cultura, bem como dos conhecimentos que se vão adquirindo através da ciência.» Mas isto apenas demonstra o problema que o Alfredo apontou, que a maneira de pensar é pressionada pela cultura e educação. Como diz Dennett, as religiões adaptam-se porque precisam convencer as congregações (3). É por isso que se modificam «de acordo com a evolução da língua e da cultura» e de acordo com a percepção popular da ciência. Não mudam quando descobrem coisas novas. Mudam quando os bancos começam a ficar vazios. Mudam, ou desaparecem.

A ciência faz previsões concretas que, quando falham, a obrigam a mudar. Por isso a teorias da relatividade, da evolução e da mecânica quântica, a astronomia, a bioquímica e a cosmologia, não foram mudando ao sabor de “língua e cultura”. Pelo contrário. Mudaram perante os factos e isso fez mudar muito a nossa cultura, a nossa visão do mundo e até a nossa língua. É este o processo que o ateísmo segue. Olhar para os dados em vez de seguir crenças e tradições.

E como os dados exigem modelos para os interpretar, há que considerar vários. Quanto mais melhor. Considerar a possibilidade do universo ter sido criado por Shiva, por Cronos, pelo Homem-Aranha, por Jeová ou por processos físicos. Depois comparar o desempenho desses modelos e escolher o que melhor explica o que se observa. Esse processo, com os dados que temos, dá em ateísmo. Para se chegar a qualquer alternativa religiosa é preciso escolher essa logo à partida e ignorar o processo por completo. E, nesse caso, a escolha é provavelmente determinada pela cultura na qual se nasceu.

*É curioso que não tenha mencionado Mussolini…
1- Alfredo Dinis, Grandes equívocos do ateísmo contemporâneo
2- Times online, 11-3-2010 Chief exorcist Father Gabriele Amorth says Devil is in the Vatican
3- Neste debate, por exemplo: Debate – Hitchens, Harris, Dennett vs Boteach, D’Souza, Wright, Cuidad de las ideas

6 thoughts on “Mais equívocos”
  • Alfredo Dinis

    Caro Ludwig,
    Acredito que o maior drama das instituições que conduzem campanhas para que os fumadores deixem de fumar é mesmo que muitos não sigma os seus conselhos.

    As religiões, pelo menos algumas, beliscam-se com as críticas objectivas, informada e inteligentes e isso só lhes faz bem. É o que tem acontecido ao cristianismo ao longo da sua história. As grandes revoluções científicas têm levado o cristianismo a mudanças na compreensão e formulação de alguns dos seus elementos. Neste aspecto, qual dos dois é mais imune a críticas, o ateísmo ou o cristianismo?

    O P. Gabrielle Amorth não tem qualquer autoridade para se pronunciar sobre os aspectos que referes. Posso encontrar muito outros padres que afirmam exactamente o oposto. Por que razão a crítica dos crentes deverá escolher cirurgicamente alguns depoimentos e não outros? O facto de o presidente do Irão afirmar que não houve holocausto dos judeus não lhe dá nenhuma autoridade sobre o assunto, nem isso me leva a concluir que a sua opinião é representativa do mundo islâmico. Este é porém o género de argumentação que os não crentes praticam, que não esclarece nada e que encerra não apenas uma mas várias das falácias clássicas. Basta consultar o elenco das mais comuns.

    Afirmas que os crentes “dizem que a fé é a confiança que têm em deuses mas, em rigor, estão enganados. É apenas a confiança exagerada que têm nas suas próprias crenças.” Este género de afirmações é muito repetido pelos não crentes. Acontece que a repetição pura e simples de uma afirmação não é um argumento a seu favor.

    Afirmas: “os meus interlocutores nestas conversas são capazes de um pensamento tão livre quanto quiserem”. Esta afirmação está evidentemente equivocada. O que significa a expressão ‘quanto quiserem?’ Os constrangimentos que limitam a nossa liberdade de pensamento são muitos, e isso não tem nada de mal. Não se trata apenas da cultura. Os meus conhecimentos científicos limitam o que eu posso dizer sobre a natureza. As leis da lógica limitam o que eu posso dizer para não incorrer em falácias, contradições, etc. A necessidade de manter a coerência do quadro conceptual em que nos movemos é outro constrangimento. Neste sentido, eu não sou tão livre quanto quero, a não ser que nesta afirmação os conceitos de ‘liberdade’ e ‘querer’ sejam qualificados em função dos constrangimentos que referi. Mas o que vejo é que os não crentes contrapõem o seu livre-pensamento ao pensamento dos crentes precisamente no aspecto de se considerarem livres de qualquer constrangimento [“os meus interlocutores nestas conversas são capazes de um pensamento tão livre quanto quiserem”] enquanto que os crentes se sujeitam a constrangimentos. Não me parece que seja esta o confronto a fazer, Dir-me-ás provavelmente que os constrangimento são diferentes e que isso faz toda a diferença. Mas então isso já é outra questão.

    Afirmas: “se tivéssemos nascido noutra parte do mundo o meu ateísmo seria o mesmo mas a religião dele seria muito diferente”. Isto é muito discutível. Há hindus e budistas que se convertem ao cristianismo, e vice-versa.

    Afirmas que as religiões “mudam quando os bancos começam a ficar vazios. Mudam, ou desaparecem.” Isto não se aplica no caso do cristianismo. Muitas das mudanças que se verificaram ao longo dos séculos aconteceram quando as Igrejas estavam superlotadas.

    Afirmas: “É este o processo que o ateísmo segue. Olhar para os dados em vez de seguir crenças e tradições.” Sabes muito bem que não há dados ‘puros’ e que qualquer dado é sempre avaliado ou interpretado no interior de uma dada tradição.

    Afirmas que o que devemos fazer é “comparar o desempenho desses modelos e escolher o que melhor explica o que se observa. Esse processo, com os dados que temos, dá em ateísmo.” Creio que é inaceitável colocar ao mesmo nível a tradição histórica e cultural do Deus dos cristãos e o de muitos outros deuses de que está cheia a história humana. Esse processo, com os dados que temos, dá em ateísmo para algumas pessoas, mas não dá em ateísmo para muitas outras, incluindo cientistas. Por muito que isto te custe a aceitar.

    Um abraço,

    Alfredo

  • ricardodabo

    O texto do Alfredo está repleto de omissões, incorreções, eufemismos e afirmações questionáveis. Vou comentar só algumas.

    Um exemplo de omissão: O Alfredo afirma que “os debates nos primeiros séculos do cristianismo tinham a ver com as naturezas humana e divina de Cristo, com a compreensão da unidade das três Pessoas Divinas, com o papel de Maria como Mãe de Jesus, etc.” Só faltou dizer que cada questiúncula teológica dessas foi resolvida com um banho de sangue.

    Um exemplo de incorreção: Para o Alfredo, “o diálogo entre as diversas religiões tem sido possível e proveitoso”. Bem, não existe diálogo entre religiões, pois, como diz o Carlos, cada religião tem o seu deus, e eles não toleram concorrência. Se as calamidades produzidas pela religião diariamente são um reflexo do diálogo que existe entre elas, tenho até medo de pensar no que será de nós quando elas resolveram se engalfinhar pelo controle do mundo.

    Um exemplo de eufemismo: Quando o Alfredo escreve que “o diálogo ecumênico entre as várias religiões cristãs tem levado ao confronto construtivo de algumas concepções teológicas”, ele está se valendo de um eufemismo. Quando duas nações decidem interromper um conflito, nós chamamos isso de “armistício” ou “cessar-fogo”. Quando se trata de religião, aí nós chamamos de ecumenismo”.

    Um exemplo de afirmação questionável: O Alfredo diz que “todas essas mudanças científicas têm sido extremamente benéficas para a religião, certamente para o cristianismo”. Não acho que isso seja verdade. As descobertas científicas referidas pelo Alfredo demonstraram a nossa insignificância na ordem do universo e tiveram o efeito de nos tornar humildes. Com Copérnico, aprendemos que não vivemos no centro do universo. Com Darwin, que não somos criaturas especiais, sem qualquer relação com as outras espécies, mas que, ao contrário, temos um parentesco com todas elas. Com o big bang, soubemos que estamos aqui há muito pouco tempo para nos considerarmos tão importantes. Ao que parece, se a idade do universo – 4,5 bilhões – fosse convertida em um ano, o aparecimento do homem só ocorreria no dia 31 de dezembro, e mesmo assim só no começo da noite. A partir desses exemplos, quase poderíamos estabelecer um critério de verdade para as afirmações científicas. Uma afirmação científica é verdadeira quando contraria as nossas pretensões, quando humilha a nossa vaidade, quando destrói a nossa auto-estima. Não vejo como isso pode ser benéfico para as religiões. Aquilo que a ciência solapa cada vez que faz uma descoberta é justamente aquilo de que se alimenta a religião. O religioso é aquele sujeito que se considera o centro dos interesses e das preocupações divinas. Ele está tão convencido de que Deus vela pela sua vida e pelo seu bem-estar que, se alguém lhe disser que Deus não dá a mínima para o que acontece aqui na Terra, ele jamais conseguirá incorporar essa idéia ao seu sistema de crenças. Em vez disso, deixará de acreditar em Deus. A Terra foi criada para que ele pudesse habitá-la. Os animais foram criados para que ele pudesse domesticá-los e ter do que se alimentar. Todo o universo existe em função de suas necessidades e de seus interesses. Em resumo: a ciência, quando avança, destrói os alicerces da religião.

    Há outro problema na argumentação do Alfredo. Mesmo que as descobertas científicas beneficiassem a religião, seria um erro supervalorizar a sua influência no estabelecimento das crenças religiosas. O sucesso da religião não foi conquistado com argumentos filosóficos, nem com descobertas cientificas. Ele é resultado da violência. Veja-se, por exemplo, o que aconteceu na América. Pode-se dizer hoje que a América é cristã. Mas isso não aconteceu porque os dogmas do cristianismo, sendo dignos de crédito, foram assimilados pelos indígenas americanos de boa vontade e pacificamente. A história é outra. Portugueses e espanhóis cruzaram o Atlântico, dizimaram culturas e populações inteiras, roubaram seus tesouros e legaram o cristianismo. Se portugueses e espanhóis não tivesse se lançado ao mar, hoje a América renderia louvores a Viracocha, Quetzalcoalt, Gucumatz, entre outros. A Europa se tornou cristã mais ou menos da mesma maneira. Foi preciso derramar muito sangue para realizar a transição do paganismo para o cristianismo. O cristianismo deve muito pouco a Agostinho, Aquino, Pascal, Kant ou Newton, mas deve muito a carniceiros como Pizarro e Cortez.

  • dichio

    Essa do pizarro e do cortez nao. fogo, dar cabo dos corta-cabeças e dos stefanos foi um bom trabalho

  • Alfredo Dinis

    Caro Ricardo,
    O seu texto e uma longa interpretação de factos. É livre de fazer as interpretações que bem entender, mas não basta fazer afirmações, sobretudo quando há outras tão ou mais aceitáveis.

    Saudações,

    Alfredo Dinis

  • Sinn-Klyss

    Portanto, numa coisa todos os fiéis e suas crenças estão certos e não há como discordar deles: Se perguntarmos a cada um sobre a fé de outros, todos eles morrem de pés juntos dizendo que as outras estão erradas e são falsas e enganosas. Se juntarmos todas essas afirmações ditas por cada um com convicção, então estão todos certos. Como nossa espécie já por experiência notou que ao olhar um problema de fora pode se ter uma visão melhor sobre ele, então, pela “língua e pela cultura” temos de sobra motivos pra banir totalmente as crenças e suas igrejas de nossas culturas.
    Vejam: mendigos caindo aos pedaços pelas ruas, não um pouquinho deles não (não unzinho salvo pra fazer uma midiazinha pras tvs), mas uma renca deles; muitos mesmo.
    As cidades já prostam-se em cima de um volume imenso de esgõto, poluição à base de cinco quintilhões de partes de dejetos de cães por centímetro cúbico em bairros médios), sem falar nos outros poluentes.
    Ali, bem em frente aos nossos narizes, bonequinhos sentadinhos, na maior “paz”, no maior “sossêgo”, arreganhando os ouvidos pros parasitas encherem com as mais calhordas besteiras.
    Hipocrisia, cinismo, podridão. O pastor, o padre, pegam uma garotinha de 2 aninhos (seis anos já tá velhinha pra ELES, o que os fiéis fazem?
    Vamos, vamos assim, nessa balada cercada, vestindo nossos abadás de escravinhos vigiados, olhando de dentro de nossas escolas, pelas grades, as ruas que já não podemos andar.
    Porque afinal, fiel é igual a môsca de cocô, adora se esvoraçar num bolinho.
    Por tudo isso, lamentando muito, é preciso dizer: Crença é carniça-podre.

  • fantasmaateu

    Bom comentário, lúcido, sensato e também tipico de quem deseja enfrentar os “medos” mundanos à luz da sua própria faculdade cognitiva. Só lamento é a insistência prosélita de quem insiste em resistir à mudança dos tempos, para manter o legado obscurantista. Nós não pretendemos erradicar o fenómeno religioso porque ele cairá por si. A religião druídica prevaleceu 4 mil anos, até que uma convulsão mais moderna se aproveitou do estado político do Império Romano para introduzir a deificação e culto de mais um guru do médio oriente. Cuidado com as crenças… cuidado com os fascismos. Os fenómenos de longa duração custam a desenraizar, principalmente quando são lucrativos

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