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Equívocos, parte 3

No seu terceiro post acerca dos equívocos do ateísmo o Alfredo Dinis repete que «O maior drama do ateísmo [é] estar estruturalmente impedido de conseguir os seus objectivos: erradicar a religião»(1). A ver se é desta que isto se desdramatiza.

O único sítio de onde é legítimo o meu ateísmo erradicar a religião é a minha vida. E nisso o sucesso foi total. Qualquer Edir Macedo, Joseph Ratzinger ou Alexandra Solnado que me queira vender a sua banha da cobra vai ter de se haver com o meu ateísmo. E o papel social do ateísmo não é o que o Alfredo julga. O ateísmo não é um polícia das crenças. É um cinto de segurança. Não impede os acidentes nem evita asneiras mas reduz os estragos. Em grande parte, é graças à propagação do ateísmo que hoje posso criticar um sacerdote jesuíta, e director de uma faculdade da Universidade Católica, sem ir preso nem sofrer represálias. Quando o meu pai tinha a minha idade isto seria difícil. No tempo do meu avô era impensável.

E mesmo que daqui em diante o ateísmo não avance um milímetro que seja, ainda assim é importante defendê-lo para contrariar a pressão constante da religião. Este equilíbrio não é estático, e se deixamos de pressionar os que vivem convictos de ter a verdade revelada e de saber o que é melhor para si e para os outros, voltamos rapidamente aos “bons velhos tempos” da religião a bem ou a mal.

O que me traz aos novos equívocos do Alfredo. «A religião tem sobretudo a ver com a questão do sentido do universo e da vida. Os não crentes afirmam que não há nenhum sentido para além do que nos é dado pelo conhecimento científico.» Não é isso. O que eu afirmo é que o sentido da minha vida vem de mim. Não me pode ser dado, nem pela ciência, nem pela religião nem por coisa nenhuma. É claro que qualquer actividade humana pode ajudar. O Alfredo menciona a poesia e a arte, mas posso acrescentar a religião, o atletismo, o macramé e a ciência. Qualquer coisa que façamos com paixão ajuda a criar sentido na nossa vida. Uma vida sem sentido é apenas a de quem fica à espera que lhe dêem um.

Assim, não critico a religião por julgar que a vida não tem sentido. Critico-a pelos seus erros factuais e porque o sentido da minha vida me diz respeito a mim e não ao Alfredo ou ao seu deus. Se o Alfredo quer apontar algum equívoco nesta minha posição ateísta, sugiro que me explique porque preciso do deus dele para dar sentido à minha vida. Concordo que é importante «interrogar-se sobre o sentido da existência», mas discordo que a resposta do Alfredo seja relevante para mim.

Finalmente, o Alfredo aponta que a religião não é «fonte do conhecimento dos fenómenos naturais», pois isso é com a ciência, mas insiste que a religião é uma fonte de conhecimento, uma área do saber autónoma da ciência. Infelizmente, não deixa claro o que é suposto ser esse alegado conhecimento religioso. A religião sabe o quê?

O conhecimento é o conjunto dos dados e suas explicações. Sem dados não há nada que saber e sem explicações não há como sabê-lo. E estes aspectos são inseparáveis. Pode parecer que quando vejo chover sei que chove só pelos sentidos, um dado que não precisa de explicação. Mas, na verdade, concluo que está a chover por ser essa a explicação mais plausível para a sensação de ver chuva. Se em vez de chuva vir um elefante amarelo a voar já não concluo que exista tal coisa. Considero como explicação mais plausível ter sofrido um AVC, uma intoxicação alimentar ou psicose.

O Alfredo alega que a religião é fonte de conhecimento que não é científico nem é acerca da natureza. Mas se é conhecimento tem de incluir dados que possa conhecer, e falta indicar que dados tem o Alfredo que estejam fora da natureza e do âmbito da ciência. E se é conhecimento tem de incluir explicações, e não é concebível que haja explicações que não cumpram o que se exige de uma explicação científica: que explique.

Eu não cometo o equívoco de confundir religião com ciência. Sei que são bem diferentes, e nisto concordo com o Alfredo. Discordo é que a religião seja saber. A religião não precisa de dados nem de explicações porque é mera opinião e especulação. Há uns milhares de anos uns tipos inventaram umas profecias, outros mais tarde inventaram umas histórias baseadas nisso e assim por diante. Dos autores do Génesis à teologia moderna tem andado tudo a especular e opinar sobre as opiniões uns dos outros. A religião é autónoma porque inventa o que quiser.

Em suma, o Alfredo aponta como equívocos do ateísmo não servir para nada, não dar valor à vida e confundir ciência com religião. Mas o ateísmo é muito útil aos ateus, é perfeitamente compatível com uma vida realizada e com sentido. E não são os ateus que confundem religião com ciência. O problema é os crentes confundirem fé com conhecimento.

1- Alfredo Dinis, Grandes equívocos do ateísmo contemporâneo

Em simultâneo no Que Treta!

15 thoughts on “Equívocos, parte 3”
  • Carlos Esperança

    «E não são os ateus que confundem religião com ciência. O problema é os crentes confundirem fé com conhecimento.»

    Que bela síntese.

  • ricardodabo

    Sempre me irrita a idéia de que só a religião pode dar um sentido para as nossas vidas. Na verdade, a religião passa longe de dar sentido à vida.

    Um certo William Lane Craig, apologista cristão, escreveu que o sentido da vida depende da crença na imortalidade da alma. Se não existe uma vida depois da morte, então para que pintar um quadro, construir um edifício ou levantar uma ponte? Um dia, quando o Sol se transformar numa grande anã vermelha e consumir tudo o que está a sua volta, tudo isso vai desaparecer. A Monalisa vai desaparecer. A Torre Eiffel vai desaparecer. Todas as nossas realizações irão desaparecer. Tudo vai virar pó.

    É um erro pensar dessa forma, pois não é a durabilidade das coisas que lhes dá sentido, mas a utilidade que elas têm para nós. Todos sabemos que nosso corpo não durará muito tempo. Mesmo assim, tomamos uma série de cuidados com ele, desde moderar a alimentação como procurar um médico quando nos sentimos mal. Muitos fazem tatuagem em seus corpos mesmo sabendo que, depois da morte, elas deixarão de existir.

    Além do mais, dizer que o sentido da vida depende da imortalidade da alma não passa de uma tautologia. É como dizer que esta vida só tem sentido porque existe outra. Mas desde quando inventar uma segunda vida é uma forma de dar sentido para a primeira? Os religiosos parecem não perceber que isso não elimina a pergunta. Tudo bem, existe uma segunda vida. Mas qual é o sentido desta segunda vida? É que existe uma terceira?… E o sentido da terceira vida é que uma existe uma quarta vida?…

    Não me admira que os religiosos expliquem as coisas desse modo. Trocar os termos do enunciado é tudo o que eles fazem. Observe-se a sua explicação para a grande pergunta: como surgiu a vida? Resposta: “Bem, é que existia uma outra vida chamada Deus!”. Pergunta: como da matéria bruta surgiu a consciência? Resposta: “Bem, é que existia uma outra consciência”. A religião não explica nada, apenas muda a localização do mistério.

    Posso conceber muitos sentidos da vida sem recorrer à religião. Por exemplo: eu poderia dizer que o sentido da vida é sair deste mundo deixando-o melhor do que quando o encontramos. Alguém viu Deus nesse enunciado?

    A propósito, não me lembro de ter sido mencionado aqui a existência do segundo texto do Alfredo sobre os equívocos do ateísmo.

  • Alfredo Dinis

    Caro Ricardo,

    Nunca afirmei que só a religião dá sentido à vida.
    A origem da vida e da consciência é a que nos é dada pela ciência.

    Saudações,

    Alfredo Dinis

  • Baal

    Excelente texto.

  • ricardodabo

    Caro Alfredo, eu ainda não tive tempo de ler o seu texto. Quando ler, comento. Por enquanto, só tentei responder ao que o Ludwig diz nessa passagem: “sugiro que me explique porque preciso do deus dele para dar sentido à minha vida”.

    Abraços.

  • Alfredo Dinis

    Caro Carlos,
    Nem só de conhecimento científico vive o ser humano.
    Saudações,

    Alfredo Dinis

  • Zeca Portuga

    Também não tive vagar (nem pachorra) para ler o texto todo.
    Desde logo porque já conheço as treta do LK e sei, à partida, que defende o “acaso” como a principal força do universo, e a mola impulsionadora da vida, da energia cósmica e de harmonia universal.

    Por mais que lhe digam que a ciência não faz mais do que ler aquilo que o Deus Criador colocou no Mundo e no Universo, isso revolta-o pela pequeneza da sua ciência e pela incapacidade de demonstrar que Deus é o grande arquitecto e artífice de toda a harmonia do universo. Quando a ciência ainda só conhece uma ínfima parte já ele cai de cu, de espanto, imaginando que Deus não podia ter tão grande poder.

    Conheço bem a sua teoria: “ a ciência explica como isto funciona, logo Deus não existe!”

    Um dias destes ouviremos da sua boca expressões como: “já percebemos como o leite se forma e como é composto, logo a vaca não existe”; ou então: “já sabemos tudo sobre os ovos, logo a galinha não existe!”

    Este rapaz é um cómico.

    Mas , concordo com a sua primeira expressão : “O único sítio de onde é legítimo o meu ateísmo erradicar a religião é a minha vida.
    Depois de ter erradicado tantas coisas: o bom senso, a cultura, o tino, o raciocínio lógico, a visão humana do mundo a capacidade de ver para além do “seu quintal”, erradicar a religião é algo normal.
    Ela sabe que um dos piores problemas dos míopes é dizer que as coisas estão mal dimensionadas e não ver as limitações da suas visão!
    O LK é, reconhecidamente, uma pessoas muito limitada. Dai que tanto se esforce por mostrar os erros dos demais, achando que ele tem razão e os outros, o mundo inteiro, são uns palermas cegos!!!!

  • ricardodabo

    Caro Alfredo, eu tinha escrito sobre o sentido da vida de forma genérica, sem fazer referências ao seu texto. Agora que o li, vou comentá-lo.

    Dias atrás, a ISTO É, uma revista brasileira, publicou uma matéria sobre religião, por ocasião do lançamento do novo livro da Karen Armstrong. Pelo que pude entender, ela defende a mesma tese que você. O papel da religião não é explicar a origem da vida ou do universo. Isso é com a ciencia. O papel da religião é dar um sentido à vida.

    Pessoalmente não acho que a religião dê algum sentido para as nossas vidas. Neste assunto como em qualquer outro, ela apenas mistifica. Já expliquei isso no comentário que fiz anteriormente. Não há por que repisar o assunto.

    Vou, portanto, mudar o eixo da critica. Dizer que a religião não existe para explicar os mistérios do mundo, mas para dar um sentido à nossa vida não passa de um eufemismo. É só um modo elegante de dizer que a religião não é verdadeira, mas apenas útil.

    Há um outro aspecto do seu texto que me parece equivocado. É a premissa de que as explicações cientificas esgotam a curiosidade e as necessidades dos ateus. Isso fica claro quando você escreve que “os não crentes afirmam que não há nenhum sentido para além do que nos é dado pelo conhecimento científico”. Depois quando completa dizendo que a arte e a poesia não têm nada a ver com a ciência, mas com “a dimensão do sentido”.

    Acontece que nós, ateus, podemos fazer perguntas que jamais poderão ser respondidas pela ciência. Por exemplo: por que existe alguma coisa e não nada? Ou: o que é a vida? Ou mesmo: qual o sentido da vida? A diferença é que nós, em vez de recorrermos a religião para responder essas perguntas, preferimos a Filosofia.

  • sxzoeyjbrhg

    “The meaning of life is 42”

    http://rs640l33.rapidshare.com/files/348393866/

    The Hitchhiker's Guide to the Galaxy

    http://en.wikipedia.org/wiki/The_Hitchhiker%27s

  • Alfredo Dinis

    Caro Ricardo,

    O útil não se opõe necessariamente ao verdadeiro.
    As questões que coloca como ateu, e cuja resposta não procura na ciência, são algumas das questões que também os crentes se colocam. O Ricardo procura as respostas na filosofia. Eu estudei cinco anos de filosofia na Faculdade de Filosofia de Braga e sou professor de filosofia. Mas não encontro nela a resposta às grandes questões que me coloco, alguma das quais o Ricardo também se coloca. Com esta afirmação em nada pretendo diminuir o valor da filosofia. Quero apenas partilhar a minha experiência, como o Ricardo partilhou a sua.

    Saudações,

    Alfredo Dinis

  • cademinhashavaianas

    esse zeca portuga é o mesmo do blog anti ateu e do circo luso?

  • Baal

    “Um dias destes ouviremos da sua boca expressões como: “já percebemos como o leite se forma e como é composto, logo a vaca não existe”; ou então: “já sabemos tudo sobre os ovos, logo a galinha não existe!”

    De facto nunca encontrei qualquer argumento lógico contra a existência de deus. Nada do que se possa dizer implica a sua inexistência. Evolução das espécies, big bang, universos paralelos, nada impede que deus exista ou até que seja responsável por essas coisas.

    Atirar com a ciência para a frente da questão de deus é tão ilógico como tentar usá-la para provar a sua existência. Simplesmente não tem nada a ver.

    Só que, neste caso, o autor até não o fez, limita-se a dizer que o seu sentido da vida, construído por si próprio sem a necessidade de deuses lhe basta é tão legítimo como proclamar que o sentido da sua vida é baseado na sua crença num deus qualquer.

    Por isso não vejo porque tenhas de ficar tão espigado. Às vezes parece que tens um problema com a liberdade dos outros. Nem que seja a intelectual.

  • ricardodabo

    Caro Alfredo, concordo com você que o útil não se opõe ao verdadeiro. Mas também está longe de demonstrá-lo.

    Quanto a Filosofia, essa é uma questão particular. Encontro nela o que preciso e o que me satisfaz. Você não. De qualquer forma, o mais importante é desmistificar a idéia que os religiosos costumam difundir. Em geral, eles contrapõem ciência e religião, pelo menos no que se refere à atribuição das funções. A ciência serve para explicar os mistérios do mundo. A religião para dar sentido à vida. Fica-se com a impressão de que quem quiser buscar um sentido para a vida deve necessariamente recorrer à religião, como se ela tivesse o monopólio da questão e só ela estivesse habilitada a opinar sobre o assunto. Essa é uma idéia que a Karen Armstrong não se cansa de defender. Leia pelo menos a Introdução de Em nome de Deus. Oferecer a alternativa da Filosofia é uma forma de resgatar um tema que a religião sequestrou.

    Coloque um link com o seu segundo texto para que eu possa lê-lo.

  • Baal

    “Um dias destes ouviremos da sua boca expressões como: “já percebemos como o leite se forma e como é composto, logo a vaca não existe”; ou então: “já sabemos tudo sobre os ovos, logo a galinha não existe!”

    De facto nunca encontrei qualquer argumento lógico contra a existência de deus. Nada do que se possa dizer implica a sua inexistência. Evolução das espécies, big bang, universos paralelos, nada impede que deus exista ou até que seja responsável por essas coisas.

    Atirar com a ciência para a frente da questão de deus é tão ilógico como tentar usá-la para provar a sua existência. Simplesmente não tem nada a ver.

    Só que, neste caso, o autor até não o fez, limita-se a dizer que o seu sentido da vida, construído por si próprio sem a necessidade de deuses lhe basta é tão legítimo como proclamar que o sentido da sua vida é baseado na sua crença num deus qualquer.

    Por isso não vejo porque tenhas de ficar tão espigado. Às vezes parece que tens um problema com a liberdade dos outros. Nem que seja a intelectual.

  • ricardodabo

    Caro Alfredo, concordo com você que o útil não se opõe ao verdadeiro. Mas também está longe de demonstrá-lo.

    Quanto a Filosofia, essa é uma questão particular. Encontro nela o que preciso e o que me satisfaz. Você não. De qualquer forma, o mais importante é desmistificar a idéia que os religiosos costumam difundir. Em geral, eles contrapõem ciência e religião, pelo menos no que se refere à atribuição das funções. A ciência serve para explicar os mistérios do mundo. A religião para dar sentido à vida. Fica-se com a impressão de que quem quiser buscar um sentido para a vida deve necessariamente recorrer à religião, como se ela tivesse o monopólio da questão e só ela estivesse habilitada a opinar sobre o assunto. Essa é uma idéia que a Karen Armstrong não se cansa de defender. Leia pelo menos a Introdução de Em nome de Deus. Oferecer a alternativa da Filosofia é uma forma de resgatar um tema que a religião sequestrou.

    Coloque um link com o seu segundo texto para que eu possa lê-lo.

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