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Treta da semana: quanto mais me bates…

Caro Joseph,

Por razões inefáveis vai haver um terremoto de magnitude 7.0 perto de Port-au-Prince na próxima Terça-Feira. Será pouco depois das cinco da tarde. Avisa as autoridades para que evacuem a cidade, os católicos locais para que não se preocupem e confiem em Mim, e aos ateus, que não vão acreditar nisto, diz que cá os espero terça à noite para lhes explicar o argumento ontológico.

Que Eu te abençoe,
J, J e E.S.

Esta semana morreram mais de cem mil pessoas com o sismo no Haiti. Muitas mais ainda vão morrer de ferimentos, sede, fome, violência e doença. Se o deus dos católicos existisse, se amasse os haitianos e tivesse contacto com o Papa, seria de esperar pelo menos um aviso. É o mínimo que a decência exige, mesmo que se aceite terremotos onde as pessoas são tão vulneráveis. Ou em qualquer sítio. Bastava que tivesse feito os «pilares da Terra» como deve ser para isto não abanar tanto.

Cristãos diferentes vêem este sismo de forma diferente. Para evangélicos como Pat Robertson, se Deus manda em tudo manda nos terremotos, e se o Haiti levou com um é porque mereceu (1). É doentio, mas segue logicamente das premissas. Por outro lado, os católicos vêem neste sofrimento uma prova do amor de Deus. Cem mil pessoas morrem num sismo, portanto oremos e louvemos o criador dos terremotos. Do cima a baixo da hierarquia os católicos rezam. O mecanismo pelo qual estas preces terão efeito não é claro, mas o Papa convida «toda a gente a juntar-se a mim em oração ao Senhor pelas vítimas desta catástrofe […] implorando de Deus consolo e alívio do seu sofrimento»(2). No Colégio de Lamego, os alunos da primeira classe rezaram «pelos milhares de pessoas que morreram de forma tão trágica», também esperançosos «Que a nossa oração ajude a aliviar tanto sofrimento.»(3)

Esta ideia algo masoquista de ver amor no sofrimento é estranha mas deve ter ajudado o cristianismo a durar tanto. Todos gostaríamos de ser amados pelo grande chefe de tudo, mas o amor não chega para justificar a doutrina, as regras e o poder da hierarquia da Igreja. Para isso é preciso aproveitar doenças, sismos e outras tragédias naturais, por vezes dar uma ajuda com autos de fé e inquisição, e aferir a medida com o sofrimento eterno. Paus que complementam a cenoura do amor divino.

Mas os deuses são ficção e esta tragédia não foi apenas por culpa da geologia. No dia 17 de Outubro 1989, também por volta das cinco da tarde, o sismo de magnitude 7 em São Francisco matou 63 pessoas. É a diferença entre ter betão armado e colar os tijolos com cuspo. E não foi por falta de caridade ou de pena do pobre povo haitiano. Há dez mil organizações de caridade a operar nesse país, uma para cada mil habitantes (4). Só que cada uma tem a sua ideologia e a sua forma de operar, há pouca cooperação entre as almas caridosas e ainda menos cooperação com o governo e com o povo que querem ajudar.

Além disso, a caridade trata sintomas. Em alturas como esta os sintomas são o mais urgente e, neste momento, é preciso tudo. Até caridade*. Mas fora de tragédias e emergências a caridade ajuda o pobre sem o tirar da pobreza. Alivia sem resolver. É preciso ir além da esmolinha para atacar as causas do problema.

Em 1970, 22 dos países mais ricos prometeram na ONU dedicar um mínimo de 0,7% do seu PIB a ajudar os mais pobres. Em 2005 ainda só cinco tinham atingido a marca. Portugal contribuiu 0,21% (1). Este tipo de ajuda governamental, organizada e estruturada, isenta de ideologias e proselitismo, é essencial mas é apenas uma pequena parte do que é preciso. É também preciso melhores políticas de imigração nos países mais ricos, acordos comerciais mais justos, perdoar dívidas incapacitantes (e impossíveis de saldar), facilitar a formação e transferência de tecnologia para quem mais precisam e outras medidas que fomentem o desenvolvimento destes países. Pelo menos até que possam construir casas que não lhes caiam em cima.

E isto não se consegue com pena dos pobrezinhos ou rezando a quem nos maltrata. É um problema que se tem de resolver de forma organizada, sistemática e estrutural e, acima de tudo, contrariando a ideia que a miséria no estrangeiro conta menos que a de cá.

* Se quiserem uma sugestão para ajudar: AMI.

1- Huffington Post, Pat Robertson: Haiti ‘Cursed’ By ‘Pact To The Devil’ (VIDEO)
2- CNS, Pope prays for victims of Haiti quake; archbishop’s body found
3- Colégio de LamegoPelas vítimas do sismo…
4- Tracy Kidder, The New York Times, Country Without a Net
5- Millenium Project, The 0.7% target: An in-depth look

Em simultâneo no Que Treta!

8 thoughts on “Treta da semana: quanto mais me bates…”
  • Pedro

    Muito bom o post.

    Mas, também poderia começar da seguinte maneira:

    “Queridos habitantes do Haiti,

    Nós ateus, que acreditamos que, sem fé, conseguimos ser mais perfeitos na nossa ciência e imbatíveis nas nossas previsões, vimos anunciar-vos que amanhã, pelas 17h, sereis atingidos por um enorme sismo.”…

    🙂

    Já agora, das 10 mil organizações que trabalham no Haiti, quantas é que são dirigidas por ateus? (não são 10 mil organizações… nem 1/3 disso, mas não é para levar à letra, pois não?) 🙂

  • Ludwig

    Pedro,

    A nossa ciência não é imbatível nas previsões. Mas é bem melhor que a oração. Veja, por exemplo, que resgatam as pessoas dos escombros com escavadoras e técnicos treinados, e não com padres e milagres do espírito santo.

    Quanto às 10 mil organizações, está no artigo que referi (4):

    «Hence the current state of affairs: at least 10,000 private organizations perform supposedly humanitarian missions in Haiti, yet it remains one of the world’s poorest countries.»

    A maioria deve ser dirigida por religiosos, e esse é um dos problemas, porque os objectivos das organizações religiosas são, em primeiro lugar, os da religião…

  • Pedro

    Ludwig,

    O facto de estarem registadas 10.000 organizações, não significa que, de facto, lá trabalhem de facto 10.000 organizações. Era a isto que me referia no meu comentário.

    Mas, voltando aos dados do artigo (que nunca refere que as organizações sejam religiosas, o que faz concluir que essa é uma suposição sua), acho esclarecedor que a maioria das organizações a trabalhar no Haiti sejam religiosas. Pelos vistos, essa gente que acredita em Deus não precisa de tragédias para ajudar um dos países mais pobres do mundo. Se essas organizações poderiam colaborar de uma maneira mais eficaz? Talvez sim. Mas há algo que o Ludwig conheça que não possa ser melhor e mais eficaz?

    A a minha pergunta ficou sem resposta: quantas organizações dirigidas por ateus trabalhavam no Haiti antes da tragédia? São mais ou menos do que aquelas dirigidas por instituições religiosas?

    Ainda bem que existem os meios técnicos para salvarem o maior número de pessoas daquela catástrofe. A premissa que uma pessoa de fé despreza a ciência é um mito. E um ateu acreditar num mito é uma coisa bastante irracional 🙂

  • 1atento

    O “religioso católico” Bill Gates patrão da Microsoft vai doar US $ 1,25 milhão para os esforços humanitários no terremoto Haiti devastado e está pedindo aos seus empregados também para doar, disse a empresa.

    http://blog.seattlepi.com/microsoft/archives/19

  • JoseMoreira

    Pedro:
    Eu gostava que, de uma vez por todas, os membros da seita católica começassem a ser coerentes. Aliás, quando digo seita católica estou a fazer um exercício de retórica, já que as minhas palavras são, perfeitamente aplicáveis a qualquer seita religiosa. Claro que pedir coerência é o mesmo que pedir para os cabelos crescerem nos ovos, mas não custa nada tentar – a coerência, não o cabelo nos ovos.
    Quando dá jeito, minimizam os ateus dizendo que são um grupo residual; mas não se coíbem de perguntar quais as organizações ateístas que blá-blá-blá. Desde quando é que um grupo “residual” pode ter “organizações”?
    Honestidade intelectual, se faz favor. E nem é preciso muita; uma amostra chega, se forem capazes.

  • pedro

    -|-
    M Michael

    Não creio que se possa culpar o divino pelos erros do homem …

    Não creio que um milagre se considere algo anti nature.

    Igreija Católica não é uma ceita, faz parte da história da humanidade tanto que foi te tal modo com impacto na humanidade que contamos os anos depois de Jesus Cristo inclusive.

  • Baal

    Entre as várias definições de seita está a de grupo organizado com ideologia própria. Está também a de grupo que se demarca do resto da sociedade por suas ideias e organização. Por isso a igreja católica pode ser considerada uma seita religiosa em relação ao resto da humanidade.

    Quanto ao “argumento” de que as seitas não fazem parte da história, não vou comentar. Vou arquivar nas inúmeras pastas das coisas sem sentido que vocês estão sempre a debitar.

  • Baal

    Entre as várias definições de seita está a de grupo organizado com ideologia própria. Está também a de grupo que se demarca do resto da sociedade por suas ideias e organização. Por isso a igreja católica pode ser considerada uma seita religiosa em relação ao resto da humanidade.

    Quanto ao “argumento” de que as seitas não fazem parte da história, não vou comentar. Vou arquivar nas inúmeras pastas das coisas sem sentido que vocês estão sempre a debitar.

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