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Treta da semana: iguais, mas uns mais que os outros.

Tenho seguido o percurso da associação Portal Ateu – Movimento Ateístas Português (PAMAP) com interesse e preocupação. Interesse porque sou ateu e porque conheço pessoalmente o Helder Sanches e o Ricardo Silvestre. E preocupação, no fundo, pelas mesmas razões, que me colocam próximo das divergências que os levaram a sair da Associação Ateísta Portuguesa (AAP) e fundar a PAMAP. O Helder considerava «obrigação [da AAP] ter uma abordagem positiva do ateísmo e demonstrá-lo à sociedade portuguesa, quer seja através de actos públicos de proximidade, quer seja através da organização e participação em debates, publicação de livros, etc.»(1) E ofereceu-se, com o Ricardo, para organizar estas actividades em nome da AAP. A iniciativa é de louvar, se a título pessoal, mas como nenhum ateu consegue representar adequadamente os ateus em geral, o consenso na direcção da AAP foi que este activismo não deve ter mandatários. A AAP não deve servir para mostrar o ateísmo do presidente da comissão de debates, ou algo do género, mas sim o que há de comum no ateísmo dos portugueses. Isto exige prudência, diálogo e, sobretudo, contenção no protagonismo.

A PAMAP tem uma abordagem diferente. Segundo o Helder, não procuram consenso mas representar apenas «os ateus que se sintam representados por nós»(2). Infelizmente, o nome dá a entender que representam o movimento ateísta português, pelo que me preocupa a ideia de ter uns a liderar o ateísmo dos outros. Principalmente depois de ler o regulamento interno da PAMAP, disponível no Portal Ateu (3). Além de uma gralha engraçada*, sugere uma intenção de chefia que me parece pouco compatível com a representação fiel do ateísmo. Diz o artigo 15º :

«1. Número de votos dos sócios:
a) Os sócios “fundadores” da PAMAP por se tornarem sócios na Assembleia-Geral constituinte da PAMAP terão 10 votos em Assembleia Geral,
b) Os sócios que se inscrevam na PAMAP após a Assembleia Geral Constituinte terão direito a 1 voto em Assembleia Geral. Estes sócios terão a denominação de Sócios Escalão 1,
c) Sócios de Escalão 1 que mostrem dedicação e empenho para o sucesso da PAMAP e da promoção do ateísmo, poderão ser convidados pela Direcção da PAMAP a ascenderem a Sócios Escalão 2, onde passarão a ter 5 votos em Assembleia Geral. Esta mudança de escalão será promulgada pela Mesa da Assembleia Geral,»

A 9 de Setembro os sócios fundadores já elegeram, por cinco anos, os órgãos da associação(4), e só na primeira assembleia geral ordinária serão aceites as propostas para novos associados. Os escalões de associados, uns com mais votos que outros, os mandatos de cinco anos e a eleição da direcção antes de admitir sócios é estranhamente anti-democrático. O Helder explicou-me que «Uma associação ateísta é uma associação como outra qualquer» (5), mas no respeito pela transparência, pela troca livre de ideias e pela diversidade de opiniões, penso que uma associação ateísta devia destacar-se da média.

E não para o lado em que a PAMAP se destaca. Segundo o Helder, «Ao contrário de outras organizações, aqui queremos privilegiar o mérito»(5). Não sei porque estar presente na escritura é dez vezes mais meritório que o que faz qualquer outro ateu. Mas o problema fundamental é “privilegiar o mérito” dando mais votos a quem a direcção decide. Imagino o Primeiro Ministro Sócrates propor que se reconheça o mérito dos cidadãos concedendo, à partida, dez votos a cada militante do PS, com o governo depois promovendo ao “escalão 2”, com cinco votos, quem o governo julgar ter mérito para isso. Não sei se o Helder iria aplaudir tal medida, mas muita gente interpretaria isto mais como uma forma de prolongar este governo do que de promover o mérito. Sei que uma associação não é um país, nem a sua direcção um governo, mas os princípios democráticos são análogos. A forma mais justa de reconhecer o mérito é todos votarem por igual e deixar o mérito de cada proposta ou candidato transparecer no número de votos.

A outra justificação do Helder é que «Dar o mesmo poder a quem não faz ou não deixa fazer é um tiro no pé da própria associação.»(5) É uma ideia interessante, esta do “poder”. Traz-me à mente uma reunião de ateus. Como as da AAP, nas quais o Helder também participou. Um almoço amigável, todos entusiasmados a discutir ideias, a pensar, a discordar e a criticar mas, em conjunto, a debater e a afinar propostas. Nisto, sai-se um com meus amigos, isso é tudo muito bonito, mas como eu é que tenho dez votos vai-se fazer como eu quero.

Um momento de silêncio. Um garfo bate levemente no prato. E desata tudo à gargalhada, uns a bater nas costas do desgraçado que se engasgou com o pão e outros a limpar as lágrimas de riso com o canto do guardanapo. Não sei em que ateus é que o Helder quer usar este “poder” dos dez votos. Os ateus são muito diferentes nas suas opiniões, atitudes e personalidades, mas como ninguém recebe o ateísmo por revelação, os ateus não têm profetas, nem bispos nem papas. No que toca à autoridade sobre o ateísmo, todos os ateus são iguais. Mesmo que alguns digam ser mais iguais que os outros.

*O artigo nono do regulamento interno da PAMAP, pelo menos à data em que escrevo este post, diz «Serão considerados «sócios fundadores» da Associação Ateísta Portuguesa todos os sócios que se tenham inscrito como tal até à data da realização da primeira Assembleia Geral.» Os perigos do copy-paste….

1- Helder Sanches, 19-1-09, Carta aberta à Direcção da AAP
2- A outra.
3- Portal Ateu, PAMAP
4- Portal Ateu, Nasceu a associação Portal Ateu – Movimento Ateísta Português
5- Portal Ateu, Convocatória para a 1ª Assembleia Geral ordinária da PAMAP

Publicado também no Que Treta!

8 thoughts on “Treta da semana: iguais, mas uns mais que os outros.”
  • Vasco Carmona

    Fiquei triste ao ler este texto. Triste porque sei que ser ateu tem consequências políticas. Isto porque o poder estabelecido nos escolhe e escolheu sempre como alvo a abater com a desculpa de sermos subversivos… O facto de nem esquerdas, nem ateus, nem muitos outros conseguirem, apesar das divergências, manter-se unidos é uma das razões porque o poder estabelecido tem tanta forca e “nós” nenhuma. Ao contrário deles “nós” não estamos unidos… aparece então a ideia de movimento organizado que também encerra os seus perigos… no entanto, temos que nos manter unidos se queremos sobreviver e lutar. E a única forma é na diversidade manter a união, engolir os egos e trabalhar com as ideias, respeitando-as, com ou sem movimentos organizados. Este caso de divisão na AAP mostra o quão difícil é lutar… contra quem naturalmente está unido e sempre estará. O Ludwig Krippahl tem razão, mas que pode ele fazer? Nada… os egos e o protagonismo, o poder, são tramados… talvez um dia…

  • lenaberardo

    Parece que se está a formar a mesa para a ceia com Jesus e os seus Apóstolos… Quem é a Maria Madalena?

    Não gosto de fazer parte de grupos, associações, clubes… mas andava a pensar em me inscrever nalguma associação ateia, já há algum tempo.
    Hoje fiquei sem dúvidas.
    Obrigada pelo esclarecimento.
    Lena Berardo

  • realista

    portal ateu é horrivel

  • Ludwig

    Vasco Carmona,

    É verdade que não estamos unidos por uma ideologia, ou sequer por um objectivo único e bem definido. Porque a característica mais saliente dos ateus é a sua autonomia de pensamento e de opinião. É isso que nos torna ateus, na maior parte dos casos. Desunidos por um ponto comum.

    Mas penso que isto já não é a desvantagem que era. Até recentemente a comunicação em sociedade era unidireccional. Uma pessoa falava, muitas ouviam. Numa sociedade dominada por figuras públicas e ideologias institucionalizadas, o ateísmo ficava marginalizado. Mas hoje a comunicação em sociedade é cada vez mais em diálogo. Não só em blogs e afins, mas até os jornais e programas de televisão têm comentários online. E nessas circunstâncias as ideologias monolíticas e os líderes adorados, parece-me, começam a tornar-se uma desvantagem. Mais fonte de embaraço que de motivação.

    Nas últimas legislativas vi várias vezes as imagens, no final dos comícios, dos militantes a gritar as siglas dos seus partidos. Uma manifestação repetitiva, monotónica e deprimente de uma mentalidade que, espero, depressa passe à história.

  • Vasco Carmona

    Eu não sou assim tão optimista. A História mostra-nos claramente que é em épocas de crises profundas como a que estamos a viver (e que não desaparecerá tão depressa como anunciado…) que os extremismos de toda a espécie reaparecem… e extremismo não pressupõe automaticamente a existência de um líder. Lembro que muitas vezes comentários on-line são alterados despojando-os do seu conteúdo… já me aconteceu. A censura ainda existe… mais disfarcada mas ela anda por aí… as religiões e suas igrejas tornam-se mais agressivas a cada dia que passa… e não esquecer que a legalidade é uma conveniência do poder estabelecido e pode mudar a qualquer momento. Não quero dizer que os ateus serão necessariamente o alvo mas muitas das cabecas esclarecidas por esse mundo fora “militam” naturalmente neste… e a contestacão sempre teve tendência para ser reprimida. Bem sei que esta se suavizou nas últimas décadas, mas isso não é garantia de que a realidade não possa mudar, não mude. Nada é eterno. O maior problema de hoje? Os média de massas estão nas mãos de grandes corporacões. Lugares como o Diario Ateísta, e tantos outros, são marginais… E para agravar a coisa, estamos reféns do politicamente correcto.

    Mas também é nestes tempos conturbados que se reúnem as condicões para que algo aconteca. Nesses momentos a minha esperanca é que os homens que se chegam à frente, sempre os há, sejam inteligentes e descomprometidos, sérios. Se o não forem, estamos tramados. Mas bom, tudo se constrói com avancos e recuos não é verdade?

    Felicidades.

  • jsousa

    Ser-se associado de um projecto associativo é uma questão que a cada um cabe… (se me associo é porque estou de acordo com os objectivos do projecto – não mais…).

    Não. Não sou associado, mas sou ateu. E não sou associado porque não me revejo no(s) projecto(s).

    Para além de se ser ateu há um número incalculável de formas de estar na vida independentemente de negar ou recusar a existência de algo superior – deus ou supremos arquitectos.

    É aceitável que alguém se reveja numa associação que funciona como uma empresa que distribui votos proporcionais às suas acções… É. Mas também é verdade que ser-se ateu é uma forma de se estar em conformidade com o seu pensar (ideológico?…). Um marxista é, em principio (só pode), ateu. Um anarquista se-lo-à também… muitos republicanos o serão. E, entre estes 3 exemplos de estares ideológicos há diferenças abismais – logo à partida o reconhecer a autoridade, qualquer autoridade.

    Daí que Grouxo Marx tenha tido toda a razão quando disse: – “Não posso ser sócio de um clube que me aceita como sócio!…”

  • Zeca Portuga

    Estou com o Realista!

    Está à vista que os frequentadores da Tasca Ataísta Suburbana da Lisboa (e suburbanos adjacentes) já se zangaram durante o jogo da bisca.

    Quem esperava mais deles!?

  • Zeca Portuga

    Estou com o Realista!

    Está à vista que os frequentadores da Tasca Ataísta Suburbana da Lisboa (e suburbanos adjacentes) já se zangaram durante o jogo da bisca.

    Quem esperava mais deles!?

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