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  • 20 de Agosto, 2009
  • Por Carlos Esperança
  • Literatura

Com a corda na garganta (crónica)

O cavador, vergado ao peso da enxada e da fé, descansava ao domingo por imposição canónica e dos outros paroquianos. Choravam-lhe os filhos, com fome, e doía-lhe o mutismo da mulher. Vivia em aflição e, enquanto o padre transformava em benta a água vulgar e em hóstias consagradas as rodelas de pão ázimo, ia duvidando da fé.

Não o empolgava o latim, não se condoía do martírio de seu deus e descria da virtude do padre.

No domingo ansiava pela segunda-feira, esperando que um lavrador o chamasse para os trabalhos agrícolas, à espera de oito mil réis e da canada de vinho com que criava forças para, com a côdea de pão e o escasso peguilho, aguentar a jorna e a família.

Já por várias vezes temera ter de vender as cabrinhas que os filhos apascentavam à beira dos caminhos. Sem leite, queijo e cabritos que dali vinham, sem o toucinho que ficava da venda dos lombos e dos presuntos do porco que a mulher criava, como iria alimentar os seis filhos que ainda restavam dos dez que Deus quisera?

No Inverno não havia trabalho e era escassa a comida. Na panela fervia um coirato que acabaria repartido por todos para acompanhar as magras fatias do pão duro que restava da última fornada. O naco de toucinho, que saíra da salgadeira, escoltava o coirato para dar paladar às couves e batatas que ferviam na panela de ferro. Que raio de vida, a dos pobres. Era a vontade de deus que, assim, se cumpria.

Uma tarde, a mocha, a cabra que dava mais leite, pareceu doente. De manhã acharam-na morta, barriga inchada, quem sabe o que comera. O cavador teve de carregar com ela e enterrá-la, nem a pele lhe aproveitou.
Dois dias depois os sinos da aldeia tocaram a sinais. Perguntei quem tinha morrido, foi o Zé da Catrina, menino, devia estar doido, com mulher e seis filhos, fazer uma coisa dessas, não andava bom da cabeça. Prendeu na trave da casa a corda que lhe ficou da cabra e, com ela, fez um laço. Subiu a um banco e meteu-se dentro. Quando voltaram da missa, a mulher e os filhos foram dar com ele, com os olhos muito abertos, a língua de fora e o banco caído.

Ficou assim no dia seguinte, as moscas a poisarem nele, até chegarem as autoridades. Foi o maligno, murmurou-se na aldeia, só podia ser, o Zé era pouco devoto, abandonou deus, entraram nele os espíritos.

O padre recusou fazer o enterro. A Catrina  ajoelhou-se a implorar que o acompanhasse mas o sacerdote invocou o direito canónico. O coveiro abriu-lhe a cova longe dos outros mortos, num talhão ainda sem campas e por benzer, talvez para não atormentar os que morreram confortados com todos os sacramentos.

Já lá vão seis décadas, não sei se a terra comeu o Zé da Catrina de forma diferente dos que temeram a deus e cumpriram os mandamentos.

14 thoughts on “Com a corda na garganta (crónica)”
  • Jogos Para Celular

    Thanks for the interesting article brother thanks for sharing

  • Carpinteiro

    Caixão de suicida não podia entrar pela porta do cemitério, era passado por cima do muro, enquanto uns o empurravam, outros apanhavam-no do outro lado. Era assim na minha aldeia.

  • Nelson A.

    Interessante…

    Um Blog que se dedica não a promver ideias próprias mas apenas a dizer mal de quem pensa diferentemente…
    Um Blog que olha para a História e a julga com o olhar do Presente…

    Onde está afinal o interesse…?
    Apenas mais um sinal do vazio que ecoa nestas brilhantes mentes…

  • Carlos Esperança

    Nelson A:

    Não se distraia da salvação da alma. Deixe estes sítios que o seu deus escrutina a babar-se de raiva.

  • 1atento

    A Igreja evoluiu; presentemente já não é assim.
    Será que deus agora é outro, está mais tolerante, ou a igreja adapta-se, como o camaleão, para não perder clientes?

  • Carpinteiro

    «A Igreja adapta-se como o camaleão», – sim, é pura verdade, mas só por isso: – para não perder clientes.

    Para tal, foi inventada uma figura que se chama, – Teólogo. A teologia não é mais nem menos que o exercício da demagogia. Mesmo assim tem pretensões a ciência.
    São eles que armadilham as várias formas de temer a deus, apesar de sobejamente provado que tal facto nunca impediu os crentes de cometerem os crimes mais atrozes. O medo, mesmo que a deus, cria personalidades débeis e perturbadas.
    São os teólogos que dizem que o que está escrito, é o que realmente deus queria dizer, para logo de seguida afirmarem que o que está escrito não é bem aquilo que deus queria, pois deus, tal como o seu filho (que é ele mesmo, mais o espírito santo) express-se por parábolas.

  • Carpinteiro

    O Nelson acha que estamos contra a Igreja católica. Por mim falo; é verdade. Num país predominantemente católico, estou contra o catolicismo assim como se estivesse na Índia seria anti-hinduísta. Ser um ateu activo é isso mesmo.

    Como diz 1atento e muito bem, – a igreja evoluiu, ou será que deus é outro?
    Realmente a igreja evoluiu através dos tempos, nem sempre para melhor.
    Longe vai o tempo em que Constantino convocava os concílios e até ditava os dogmas.
    Será por isso que Tertuliano e Orígenes nunca foram canonizados, porque não estavam de acordo com o cristianismo que mais tarde se chamou de Romano?

    Que diríamos primeiros cristãos, de dogmas como o da Imaculada Concepção, da Ascensão aos Céus, ou da Infalibilidade do Papa?
    Como explicar que o Concílio Vaticano Segundo contradiga tanto o Primeiro?
    Na realidade o Cristianismo não tem nada de Intemporal. Por um lado acomoda-se aos bens terrenos, por outro lado joga com a doutrina conforme as conveniências do momento.

    Ser ateu não é dizer mal de quem pensa diferente, como afirma o Nelson, ser ateu é denunciar um poder religioso acomodado, contraditório e parasitário:
    Acomodado, porque coabita com o poder político.
    Contraditório, porque, não se pode condenar o socialismo e o liberalismo no século XIX e negar tal facto no século XX, perseguir judeus até ao holocausto para depois atacar o anti-semitismo.
    Parasitário, porque ainda hoje, através do estado, vai ao bolso dos ateus, buscar dinheiro para o seu proselitismo.

    Dizia noutro post o, Nome, «Confesso que para ateu, a sua obsessão com as religiões, ultrapassa em muito a minha que sou católico. »
    Este comentador confundiu obsessão com informação.
    O ateu lê porque quer ter conhecimento. Como não crê, informa-se. Os crentes que por aqui comentam, (salvo raras excepções) não se informam, basta-lhes crer.

  • HomemHonest

    “Ficou assim no dia seguinte, as moscas a poisarem nele, até chegarem as autoridades. Foi o maligno, murmurou-se na aldeia, só podia ser, o Zé era pouco devoto, abandonou deus, entraram nele os espíritos.”

    Segundo dizem os especialistas noassunto, os ateus quando se acham inuteis e sem forças, por obra da velhice ou da doença, optam, quase sempre por uma de duas vias: Ou se suicidam ou se convertem a uma religião.

    Este, da seita que compõe a esfera de amigos de um ateu, lá se ficou por aque opção que a sua parca formação permitia.

    A vida dos ateus, sem esperança e com transtornos mentais, deve ser um grande sofrimento.

    Não menos visivel é a insanidade patente na forma mórbida com que os ateus se regozijam com a morte dos seus pares!

  • HomemHonest

    Não me chamo Nelson, mas não posso deixar de me rir, com esta anedótica e lerda resposta

    “O Nelson acha que estamos contra a Igreja católica.” – na verdade não estão porque não têm força ou visibilidade para isso. A grande maioria do povo vê os ateus como os “bobos da corte” da nossa sociedade. São umas peças risíveis do ridículo teatral que a sociedade tolera sem lhes dar importância (ao que ouço de quem sabe, começam a ser vigiados por começarem a representar algum perigo para a sociedade). São tão insignificantes contra a Igreja católica, e sua existência corresponde a colocar um copo de água no mar – ninguém da Igreja lhes dá troca, a não ser para se divertir ou mostrar a demência e o cariz criminoso dos propósitos dos gurus da seita.
    Muito menos entre os Evangélicos, posso assegurar-lhe.

    O pleno desconhecimento do História do Cristianismo (e da História Universal), visto nestas respostas, supostamente baseadas em verdades históricas, é algo da mais aberrante ignorância de factos históricos profusamente conhecidos, por qualquer pessoa medianamente informada, mas não pelos ateus, pelos vistos.

    Ver um ateu completamente ignorante no assunto a discutir matéria de religião, torna-se tão ridículo como uma cena que estes dias me ia dando um colapso de riso: um orador de uma palestra (que se dizia psicólogo) a comentar a o conteúdo jurídico de um acórdão do TC sobre o casamento de duas raparigas tresloucadas.
    Não resisti. Tive que rir tão alto que a sessão parou.
    (aqui faço o mesmo… pena é que não ouçam!)

    ”Ser ateu não é dizer mal de quem pensa diferente” – Mostra-me um só artigo deste site que não seja para dizer mal de quem (99% da sociedade) não pensa como vós. Mostra-me onde está!!!

    “ser ateu é denunciar um poder religioso” – O poder religioso é “intempório” e sacramental. Nunca vi nada aqui escrito que denunciasse as capacidades ou as realizações desse poder. Tenho visto observações mais ou menos indecentes e malcriadas a enxovalhar os crentes (toda a Igreja e todas as religiões). Este site prima pelo ódio aos crentes, seja qual for a sua condição. Isso só mostra o execrável comportamento dos ateus e a sua conduta de uma intolerância (e discriminação) criminosa.
    Mas, denunciar nunca vi nada escrito. Até porque nada há que denunciar. Tudo o que os cristãos fazem é público, legal e aceita pela quase totalidade das pessoas sãs da nossa sociedade.

    Os cristãos e as Igrejas (sobretudo a católica e a evangélica), nunca estiveram acomodados. Tantas e tão vastas tem sido as usas obras. Tantas e tão conhecidas são as suas obras hoje em dia. Não coabitam com o poder político (isso seria desonroso), exigem o que têm direito, e têm-se ficado pela metade daquilo que deveriam exigir.
    “Contraditório” – só se for sinónimo de incompatível com a estupidez moderna que tudo tenta desculpar. Mas, contraditório é ver falar de anti-semitismo aqueles que defende a aniquilação de todas as religiões e dos seus crentes. Isso é doentio!!!
    A prova disso é o sofrimento atroz que gera em vós, os últimos especímenes dessas famílias de parasitas raros do marxismo ateu, do comunismo parasitário ateu, do nazismo parasita destrutor de religiões, ou do “socialismo” esclavagista ateu.
    Basta ver os bons frutos da execução do projecto ateu da “revolução cultural chinesa”.

    “Parasitário” – quem mais defende o parasitismos mórbido do que os ateus que defendem que aqueles que são pela vida paguem com os eus impostos os profissionais da morte no caso do aborto!? Pagamos aos carrascos e às abortadeiras profissionais que em dois anos abortaram duas vezes para receber as benesses. Matar para ganhar dinheiro e paga com os meus impostos, que os ateus ajudam a roubar.

    Não são os ateus uns parasitas locais, colados ao fenómeno universal da religião?

    O problema dos ateus, não é ler e escrever.
    Escrevem um rosário de burricadas todos os dias. E, pelo que dizem, até lêem. Não sabem é o que lêem ou que escrevem.
    Ao contrário dos ateus, no crivo da hermenêutica de um crente, não passa a bosta que os ateus papam como sendo ciência.
    Muito menos cabem romances de ficção tidos por científicos como os romances de dawkins e afins.

  • Carpinteiro

    Homemhonéscio:

    Você muda de nick mais depressa que um garoto descasca rebuçado.

    «A grande maioria do povo vê os ateus como os “bobos da corte” da nossa sociedade.»

    Se não ser bobo é acreditar que um judeu do outro mundo que era seu próprio pai, pode fazer com que você tenha vida eterna se simbolicamente comer a sua carne e telepaticamente disser que o aceita como seu mestre para que ele possa remover o pecado da sua alma, o qual está presente em toda a humanidade porque uma mulher que foi criada a partir da costela de um homem, foi convencida por uma cobra falante a comer uma maçã de uma árvore mágica…

    – Então eu quero ser bobo.

  • José Simões

    “Não são os ateus uns parasitas locais, colados ao fenómeno universal da religião?”

    Parasita é você, eu não vivo de chantagem e extorsão, com base nos medos infernais, como os católicos.

    Católicos? Em Portugal? Católicos a sério que vão + que 50 vezes por ano à missa, comungão 1 vez por ano e não usam nenhum método anti-conceptivo não permitido pela H Vitae?

    Ainda são menos que os ateus.

    Têm algum poder porque funcionam como um bando de malfeitores que rouba às claras e às escuras e têm uma organização para fazer subornos/ameaças a todo o conjunto da população.

    José Simões

  • Carpinteiro

    Só um mal intencionado insiste em conotar comunismo com ateísmo.
    Só um ignorante não sabe que há vinte e cinco séculos atrás, viveu Teodoro o Ateu, e que Anaxágoras, um físico, foi processado por ateísmo, tal como o sofista Protágoras ou Diágoras. O caso é interessante já que Diágoras foi discípulo de Demócrito, o primeiro atomista ou seja, o primeiro materialista.

    O ateísmo existe desde que existe o homem. O ser humano não nasce muçulmano, judeu ou mórmon. Ele nasce ateu, só depois é travestido pela religião dominante ou outra.
    Existe o ateísmo desde o primeiro momento, desde que o homem começa a pensar livremente sem pressões da religião e dos mitos.

  • ccastanho

    Carlos Esperança: Parabéns ! Crónica extraordinária esta! Levou-me a recuar 5 décadas até há minha infância,em que me foi dada a oportunidade( por altura das férias escolares) de assistir há chegada dos «ganhões» cada um com sua parelha de muares ,depois de uma jornada de 15 horas de trabalho de lavoura, sob um alentejano sol escaldante ,na maravilhosa ardente planìcie alentejana.Recordo: 30 ou 40 «ganhões» de marrocate( pão de trigo de útima escolha, para ganhões comer) na mão para, á vez, cada um migar uma sopa numa enorme «barranhola» com água fría, uns olhos de azeite, sal, acompanhado com azeitonas( o que se chama gaspacho dos pobres).Não sei se algum se enforcou? Provávelmente sim, porque era a saída mais nobre para os (esquecidos de Deus) ZÉS das CATRINAS! UM ABRAÇO Carlos Esperança ,de Carlos Castanho.

  • ccastanho

    Carlos Esperança: Parabéns ! Crónica extraordinária esta! Levou-me a recuar 5 décadas até há minha infância,em que me foi dada a oportunidade( por altura das férias escolares) de assistir há chegada dos «ganhões» cada um com sua parelha de muares ,depois de uma jornada de 15 horas de trabalho de lavoura, sob um alentejano sol escaldante ,na maravilhosa ardente planìcie alentejana.Recordo: 30 ou 40 «ganhões» de marrocate( pão de trigo de útima escolha, para ganhões comer) na mão para, á vez, cada um migar uma sopa numa enorme «barranhola» com água fría, uns olhos de azeite, sal, acompanhado com azeitonas( o que se chama gaspacho dos pobres).Não sei se algum se enforcou? Provávelmente sim, porque era a saída mais nobre para os (esquecidos de Deus) ZÉS das CATRINAS! UM ABRAÇO Carlos Esperança ,de Carlos Castanho.

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