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Autoridade

Uma técnica da apologética religiosa é confundir normas, prescrições e descrições. Numa aula de filosofia, quase teologia, ouvi o professor dizer que o fundamento da religião tinha de ser verdade porque senão a vida era muito injusta. O argumento ficava melhor numa aula de lógica, como exemplo de non sequitur. E um tema onde esta confusão sobressai é a autoridade.

A autoridade sobre normas ou prescrições é convencionada. O professor decide como avaliar o exame e o juiz prescreve a pena ao condenado com autoridade conferida pela sociedade que acata estas decisões. Do presidente da junta ao primeiro ministro, muitas autoridades nem precisam de mais qualificação que o mero assentimento da maioria. Daí que seja conferir autoridade normativa ou prescriptiva a um líder religioso, livro sagrado ou classe profissional. O padre manda rezar trinta avé-marias e a Bíblia diz o que se pode ou não pode fazer ao sábado. Mas as religiões exageram logo ao assumir que certas autoridades são inquestionáveis. Por ser convencional, este tipo de autoridade pode ser delegado em qualquer pessoa ou tradição. Mas, também por isso, é revogável, condicional e questionável. O professor pode ser despedido e o presidente impugnado. A ambos pode ser destituída essa autoridade pela mesma convenção que lha conferiu. Uma falha nas religiões é não admitir o mesmo para as suas autoridades máximas.

Já aqui se nota a diferença entre o ateísmo e as religiões. O crente religioso tem de reconhecer uma autoridade suprema que lhe dê normas ou prescrições, seja Corão, Papa ou Buda. O ateu não. O ateu reconhece apenas as autoridades terrenas da sua sociedade. Mas a diferença mais marcante é na autoridade de quem se pronuncia acerca da realidade. Todos reconhecemos a autoridade de cardiologistas, electricistas ou livros de química e física. E esta autoridade tem uma fonte diferente. A autoridade normativa ou prescriptiva é atribuída, ou revogada, por convenção. Até votamos para escolher quem avalie opções políticas e as mande executar. Mas a autoridade do perito não, e dá mau resultado eleger por sufrágio cirurgiões ou engenheiros civis. E se bem que o professor e o juiz possam ser destituídos da sua autoridade normativa ou prescriptiva, ninguém pode ser destituído de ser um perito numa área. Se sabe, sabe. A confiança que temos num perito não vem do título. O título é que vem de ter demonstrado objectivamente que domina essa área.

E aqui as religiões baralham tudo. Os criacionistas atribuem à Bíblia não só a autoridade para avaliar as coisas ou lhes dizer o que fazer mas também a autoridade de perito em geologia, biologia, cosmologia e o que mais calhar. O que é absurdo porque este tipo de autoridade depende de haver uma aferição independente do perito. Os católicos criticam este fundamentalismo mas cometem o mesmo erro com o Papa que, só por ter sido eleito para o cargo fica magicamente infalível em certas coisas. Adquire autoridade de perito na origem do homem, na diferença entre homens e animais, na transubstanciação, na existência de deuses e até na eficácia do preservativo, tudo por obra e graça do espírito santo. Sem prestar qualquer prova da sua fiabilidade nestas matérias.

Alguns crentes afirmam que o ateísmo é uma fé e que os ateus também aceitam acriticamente as suas autoridades. O que é irónico, porque normalmente a fé e a autoridade inquestionável é o que os crentes apontam como pontos fortes da sua crença. Mas, ironia à parte, a afirmação é falsa. O ateu escolhe autoridades de forma muito diferente. Primeiro, porque o ateísmo não dá qualquer autoridade normativa ou prescriptiva. Ser ateu não me subordina ao que o Dawkins manda nem me obriga a aprovar o que o Harris julgue bom. E, principalmente, porque o ateísmo não deixa entrar peritos pela porta do cavalo. Considero o Dawkins um perito em biologia, que ele demonstrou dominar, mas julgo que percebe pouco de filosofia.

Esta atitude contrasta com a atitude dos crentes que consideram profundas vacuidades como «Jesus Cristo purifica e liberta das nossas carências humanas a busca do amor e da verdade e desvenda-nos, em plenitude, a iniciativa de amor e o projecto de vida verdadeira que Deus preparou para nós.» Ou que assumem ser verdade que «Sem Deus, o homem não sabe para onde ir e não consegue sequer compreender quem é.» Não porque tenham evidências desta purificação, projecto de vida ou necessidade daquele deus em particular para sabermos quem somos. Nem porque o suposto perito que o afirma tenha demonstrado saber o que diz. Aceitam isto, e levam-no a sério, apenas porque é uma encíclica do Papa (1). Este foi eleito perito infalível em matérias de facto por quem nem se preocupou em averiguar como é que ele pode saber estas coisas ou como se pode verificar se ele tem razão no que diz.

Isto vem a propósito dum post do Alfredo Dinis, onde ele afirma que os ateus «aceitam incondicionalmente o que dizem» pessoas como Dawkins e Harris, que «os ateus têm pouco espírito crítico, ou mesmo nenhum»(2), e sugere que os crentes é que têm uma atitude crítica. Pois eu sugiro que nenhum ateu será acrítico por causa do seu ateísmo. Se o for, será por outras razões. E o crente só poderá criticar os dogmas fundamentais da sua religião se conseguir ser mais crítico que crente. Porque a religião depende sempre do magister dixit. Em contraste, o ateísmo é fruto quase inevitável do nullius in verba.

1- Caritas in Veritate
2- Alfredo Dinis, Religião, ateísmo, e espírito crítico

Em simultâneo no Que Treta!

10 thoughts on “Autoridade”
  • Carlos Esperança

    Mais um post demolidor para a irracionalidade da fé.

  • 1atento

    Este texto merece ser incluído na matéria curricular, das escolas públicas.
    Parabéns!

  • ricardoalves

    É um excelente texto. Um dos pontos fundamentais da religião é, efectivamente, a autoridade. Eu até diria que a maior diferença entre o crente e o ateu não está no conteúdo daquilo em que acreditam, mas sim no método para decidirem no que devem acreditar.

    Ainda por cima, os crentes atribuem à mesma autoridade capacidade para se pronunciar sobre ética, ciência e política. Misturando tudo. O que dá, por exemplo, aquelas encíclicas papais que começam nos mitos católicos da Criação e da Ressurreição e vão por aí fora, com umas considerações éticas de caminho, rumo a considerações políticas complexas.

  • satanaz

    “Uma técnica da apologética religiosa é confundir normas, prescrições e descrições”

    E a tua é baralhar tudo senm teres a minima noção do que dizes.

    “A autoridade sobre normas ou prescrições é convencionada”

    Tudo no mundo é convencionado. Absolutamente tudo!

    Aquilo que dizes (infelizmente sem saber o quê, aquilo que aceitamos ou refutamos. Tudo.

    Das ciêncais exactas ao mero devaneio (como estes artigos sem sumo e baseados do delírio da ignorância)… tudo são meras convenções.

    Por exemplo, a certeza matemática de que a menor distância entre dois pontos era uma linha recta, agora negada e demonstrada que é falso, dá um bom exemplo do delírio de alguns agentes, tipo este.

    Usando o que diz um comentador : ” Este texto merece ser incluído na matéria curricular, das escolas públicas”, para demonstar onde a ignorancia misturada com uma certa estupidez, resulta num excelente exemplo de como ninguém se pode fiar naqueles que escrevem mais do que o que saem.

  • Carpinteiro

    Claro senhor padre Zé, e a terra é plana, e o dia e a noite foram criados ao terceiro dia… Não há nada como a bíblia para esclarecer a plebe ignara.

  • Ludwig

    Satanaz,

    «Tudo no mundo é convencionado. Absolutamente tudo!»

    Se isso fosse verdade, seria só por mera convenção.

    «Por exemplo, a certeza matemática de que a menor distância entre dois pontos era uma linha recta, agora negada e demonstrada que é falso, dá um bom exemplo do delírio de alguns agentes, tipo este.»

    Isso sim é convenção porque se trata de um axioma — uma premissa onde se assenta deduções.

    Por outro lado, sugiro que da próxima vez que estiveres num prédio alto, tentes desafiar a convenção pela qual saímos pela porta em vez de pela janela, e verás que há certos factos mais resistentes à convenção.

  • amiltonsilva200809

    Eu adotei uma frase de uma música do Renato Russo onde ele diz “não sou escravo de ninguém, ninguém senhor do meu domínio”. Por isso sou ateu.
    Pra não ter que dar satisfação nem estar sujeito a repreensões por parte de ninguém.
    Claro que tenho que respeitar as leis a que todos estão sujeitos, mas não tenho que temer nenhum inferno. As únicas coisas que eu temo, tenho que estar vivo para temê-las. Nada temo para além da vida.

  • ricardoalves

    «Tudo no mundo é convencionado. Absolutamente tudo!»

    Atire uma pedra ao ar com a mão. E depois pense se a queda dela é uma convenção ou uma realidade.

    «a certeza matemática de que a menor distância entre dois pontos era uma linha recta, agora negada e demonstrada que é falso»

    A menor distância entre dois pontos ser uma recta, continua a ser uma afirmação verdadeira se o espaço for plano. Se o espaço for curvo, a distância mais curta entre dois pontos é uma geodésica.

    Perdeu uma boa ocasião de ficar calado.

  • satanaz

    Estás enganado, meu caro!

    Mais uma vez confundes as forças ou leis da natureza com as criações humana.
    A gravidade existe, independentemente do seu reconhecimento pelas leis da física, ou do seu conhecimento e avaliação pela ciência.
    A tua filosofia é que te leva a crer que aquilo que tu não consegues ver ou demonstrar já não existe. És, portanto, um ser limitado às experiências e sensações.

    Muitas coisas na vida estão para além do que vemos sentimos. Um crente reserva sempre um espaço para eventualidade de que essas coisas existam. Um crente é um Homem precavido.

    Tudo o que é humano é contingente. Por isso, a ideia de que sabes tudo, não é só uma ilusão, mas é também uma forma demonstrares a incapacidade de perceber o mundo.
    Repara que Newton não acrescentou nem retirou nada à gravidade. Ela era igual antes e depois de Newton.
    Sabendo que a gravidade foi obra do Arquitecto do Universo, em aspecto é que a descoberta de Newton contraria a origem ou a vontade do criador.

    “O ateu não. O ateu reconhece apenas as autoridades terrenas da sua sociedade.”

    Não é verdade. Todos os ateus têm sonhos e correm no sentido de os realizar, acreditam que a forte lhes há-se sorrir, jogam no euromilhões, e procuram a felicidade, sacrificando algumas cosias, e alguns prazeres para a obter, etc. Tudo coisas que não são imposições legais e resultam do espaço para a crença. Todos tentam construir uma imagem pública de si que não sendo real é aquela que eles querem que as pessoas acreditem. Uma crença desordenada, incompleta, até sem sentido, mas que muitas vezes é tão poderosa que determina toda a sua vida.

    Ao contrário do que dizes, os técnicos de algo não fazem valer a sua força para impor nada. Um electricista não é o agente da electricidade. A corrente eléctrica é inerente à natureza. Este apenas foi treinado (melhor ou pior) para a saber aproveitar. Um ignorante no assunto não faz a mínima ideia do que se passa.

    Uma pessoa instruída religiosamente conhece a realidade de Deus. Um ateu é analfabeto no assunto.

    Porém, é a própria sociedade que faz o escrutínio dos mais capazes e lhes dá autoridade em casa área. Os de mente rasa ficam pelo ateísmo.

  • satanaz

    Estás enganado, meu caro!

    Mais uma vez confundes as forças ou leis da natureza com as criações humana.
    A gravidade existe, independentemente do seu reconhecimento pelas leis da física, ou do seu conhecimento e avaliação pela ciência.
    A tua filosofia é que te leva a crer que aquilo que tu não consegues ver ou demonstrar já não existe. És, portanto, um ser limitado às experiências e sensações.

    Muitas coisas na vida estão para além do que vemos sentimos. Um crente reserva sempre um espaço para eventualidade de que essas coisas existam. Um crente é um Homem precavido.

    Tudo o que é humano é contingente. Por isso, a ideia de que sabes tudo, não é só uma ilusão, mas é também uma forma demonstrares a incapacidade de perceber o mundo.
    Repara que Newton não acrescentou nem retirou nada à gravidade. Ela era igual antes e depois de Newton.
    Sabendo que a gravidade foi obra do Arquitecto do Universo, em aspecto é que a descoberta de Newton contraria a origem ou a vontade do criador.

    “O ateu não. O ateu reconhece apenas as autoridades terrenas da sua sociedade.”

    Não é verdade. Todos os ateus têm sonhos e correm no sentido de os realizar, acreditam que a forte lhes há-se sorrir, jogam no euromilhões, e procuram a felicidade, sacrificando algumas cosias, e alguns prazeres para a obter, etc. Tudo coisas que não são imposições legais e resultam do espaço para a crença. Todos tentam construir uma imagem pública de si que não sendo real é aquela que eles querem que as pessoas acreditem. Uma crença desordenada, incompleta, até sem sentido, mas que muitas vezes é tão poderosa que determina toda a sua vida.

    Ao contrário do que dizes, os técnicos de algo não fazem valer a sua força para impor nada. Um electricista não é o agente da electricidade. A corrente eléctrica é inerente à natureza. Este apenas foi treinado (melhor ou pior) para a saber aproveitar. Um ignorante no assunto não faz a mínima ideia do que se passa.

    Uma pessoa instruída religiosamente conhece a realidade de Deus. Um ateu é analfabeto no assunto.

    Porém, é a própria sociedade que faz o escrutínio dos mais capazes e lhes dá autoridade em casa área. Os de mente rasa ficam pelo ateísmo.

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