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Jean Meslier, o padre anarquista (1664-1724)


«No início do século das Luzes, entre os verdadeiros precursores do anarquismo conta-se uma personagem admirável, Jean Meslier. Padre na aldeia de Étrépigny, na região francesa de Champanha, deixou à data da sua morte um volumoso manuscrito que contém a confissão do mais resoluto dos ateísmos e uma crítica às autoridades religiosas e políticas. Em 1762, Voltaire publicaria extractos do Testamento de Meslier, destacando, sobretudo, a sua faceta irreligiosa. Contudo, os ataques de Meslier visam tanto o poder político como a autoridade religiosa. Para ele, a religião e a política ajudam-se mutuamente: “Entendem-se como gatunos. […] A religião apoia o governo político, por pior que este possa ser. O governo político apoia a religião, por mais estúpida e vã que esta possa ser.“.

Este sacerdote desejava que “todos os poderosos da Terra e todos os nobres fossem enforcados com as tripas dos padres“. […] A casta política, reis, nobres ou detentores de cargos, ou seja, aqueles que hoje se designam por burocratas, grandes ou pequenos, bem como o alto clero e os ricos ociosos, são violentamente atacados.

Aliás, o nosso padre conta bastante com o assassinato político como forma de livrar o bom povo dos seus dirigentes: “Onde estão aqueles generais matadores de tiranos que vimos nos séculos passados? Onde estão os Brutos ou os Cássios? Onde estão os generais que mataram Calígula e tantos outros monstros semelhantes? […] Onde estão os Jacques Clément e os Ravaillac da nossa França? Deviam viver ainda no nosso século, […] para espancarem ou apunhalarem todos esses detestáveis monstros e inimigos do género humano e, deste modo, libertarem todos os povos da Terra do seu domínio tirânico!“.

Meslier protesta também contra a apropriação individual dos bens e das riquezas da terra e preconiza o comunismo social. Nos seus escritos, lança um verdadeiro apelo ao povo, que deve agir: “A salvação está nas vossas mãos. A vossa liberdade só depende de vós, se todos souberdes entender-vos. […] Uni-vos, pois, povos, se sois sábios. […] Começai por comunicar entre vós secretamente os vossos pensamentos e desejos. Divulgai por toda a parte, e o mais habilmente possível, os escritos deste tipo, por exemplo, que dêem a conhecer a todo o mundo a vanidade dos erros e das superstições da religião e que tornem odioso o governo tirânico dos príncipes e dos reis da Terra.“.

Jean Meslier chega até a considerar a greve dos trabalhadores e dos produtores, de maneira a levar as autoridades – políticas e religiosas – e os seus serviçais ao arrependimento, privando-os daquilo que lhes é necessário.

Solitário e clandestino, o padre Meslier aparece retrospectiva­mente como um autêntico espírito libertário. Ao redigir em segredo, no silêncio do presbitério rural, o seu Testamento, teve certamente o sentimento de ser um precursor e, apesar da sua visão pessimista do género humano, acreditou que as suas ideias poderiam ter alguma influência póstuma, como o prova a adver­tência que anexou ao papel que envolvia o seu manuscrito, como nos é relatado por Voltaire: “Vi e reconheci os erros, os abusos, as vaidades, as loucuras e as maldades dos homens; odiei-os e detestei-os. Não o ousei dizer durante a vida, mas di-lo-ei pelo menos ao morrer e depois da morte; e é para que se saiba isto que faço e escrevo a presente memória, para que possa servir de testemunho de verdade a todos os que a virem e a lerem, se a acharem boa.”.»

Préposiet, Jean, História do Anarquismo, Edições 70 (p. 32-34)

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2 thoughts on “Jean Meslier, o padre anarquista (1664-1724)”
  • Claudio_bonatti

    Um personagem realmente intrigante este padre com idéias anarquistas. Como deve ter sido triste sua vida, sempre tendo suas idéias oprimidas pelas consequências que poderiam ocorrer ao serem reveladas. Oprimidas por uma sociedade hipócrita injusta e tirana.

  • Cbaqueiro

    Ele viveu ao lado de camponeses. Pouco ia a Paris. E, de quebra, ainda teve uma “empregada” novinha, que, segundo as más línguas, era na realidade sua companheira. Ou seja, ele tentou viver com as possibilidades de felicidade que todos nós tentamos, em qualquer tempo.

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